sábado, 17 de agosto de 2024

Oitava maior

5a.

Meu peito está descascando. Cada farelo desaba um hábito diário perdido. Ontem saíram as rosquinhas do trato com a diarista e a casa toda escura da noite na minha chegada. Hoje a pele que me sai é a do placar do jogo de mais cedo. Repito: gostaria de meditar a saída. Uma ideia providencial que recompusesse essa partezinha fina da derme que torrou muito e sem proteção, avermelhou e ardeu no sol dessa dúvida. Seria o caso de hidratar um silêncio nesse peito para ver se a cútis regenera e me ensina qualquer coisa que eu possa aprender? Ainda ocupo o mesmo lado da cama. Se quero abrir, tenho que abrir. Se quero apagar, tenho que apagar. Buscar a água. As coisas de ontem à noite ficaram onde eu as deixei. Essa casa é só metade e, mesmo eu tendo provocado essa circunstância, a falta esbarra no mofinho do teto de todos os cômodos que hoje não foram abertos.

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O primeiro minuto da manhã acordada é um dos piores. Meu despertador não dá conta da minha vontade de voltar a dormir - de preferência o dia todo, porque em sonho nada mudou e não preciso pensar, remoer, martirizar, decidir. A impressão de que vou perder a hora de levantar porque só os meus alarmes estão ativos e agora sou a única pessoa que amanhece zelando por mim amedronta. A ideia de que não dividiremos mais a preguiça de virar para lá e para cá muitas vezes com os corpos em parêntese aberto aberto ou fechado fechado, também. Essa mesma rotina que esmagou muitas doçuras precisaria, de qualquer modo, de uma reinvenção. Qual sou capaz e quero fazer? Preciso ser franca comigo. Agora não tem ninguém para eu educar a começar as atividades do dia com o exemplo e eu não levanto mais “primeiro” - eu levanto “ou não”. Ontem cheguei cedo e tinha uma ponta de paz a ser puxada no silêncio absoluto. Mas logo foram ditas coisas duras - entre as quais, a de que eu sou dura. Logo eu, que me sinto decompondo. Essa espiral de medo, amor, pavor e indignação me arrasta muito rápido para uma culpa circular sem fim, centrípeta, que me cega acordada. Seria melhor lidar com os sentimentos em doses: primeiro um, de uma cor, limpo, num frasco. O outro ao lado, isolado, em outro frasco. O outro etiquetado em recipiente bem vedado, nele escrito Remorso, cuidado para não extravasar. Todos paralelos. No fim um gráfico - que possibilitasse medir o saldo e chegar ao resultado dessa equação de quinta. Mas meu amor e minhas amarguras estão todos muito unidos, como quando as crianças juntam todas as massinhas de modelar e fazem uma grande bola. Que acordou grudada como durepox na boca do meu estômago. E cuja densidade não cabe na exatidão da matemática.

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Cuidar de mim como se só eu pudesse. Organizar de fora para dentro. Fazer de novo a cama, criando um ritual. Guardar dobrado o pijama. Conferir se as toalhas finalmente secaram e dar a isso um grau de importância. Recolher as últimas roupas de verão do varal nesse inverno com sol. Varrer ou aspirar a sacada. Costurar paciente a alça do vestido de bolinhas com linha preta, como quem é capaz de costurar o coração que rompeu e desistiu de funcionar. Finalmente tirar o esmalte desbotado amarelado descascado das unhas roídas da mão e usar um alicate para aparar todos os cantos arrepiados que não suporto mais puxar com os dentes e deixar em carne viva. Não desistir de curar e não prezar por doer. Encarar o fundo dos poros dos cravos espremidos do rosto inflamando sem ter mais muito o que fazer com as marcas. Lamentar que a estratégia de cortar na carne para eliminar o fungo do dedão do pé aparentemente não tenha funcionado. Providência: cortar ainda mais na carne e acreditar que agora sim. Lavar as mãos para que a água sagrada da pia assepsie a possibilidade de outro dia um pouco mais limpo de autodepreciação ou autocomiseração. Reciclar os pãezinhos endurecidos na sanduicheira com manteiga como quem firma o compromisso de não desistir de se manter alimentada e viva. Comer tomando chá. Lembrar da calma doce de um stroopwafel. Exaurir o sono da acordada durante a noite em bocejos. Reinventar um calendário solar no qual os dias passem iluminados e nas noites haja menos vontade de sumir. Encarar no espelho a palavra escolha ouvida em repetição e tatuada na testa do imaginário. Respeitar o tempo

 que tudo leva. Torcer por ser prática cruel viva alegre só não refém da vida - esta coisinha inteiramente suscetível às bençãos e maldições da chance e possibilidade de mudar de ideia de uma hora para outra. Ter que lidar com isso.

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Nas encruzilhadas, não são vistos os dois caminhos. Deve-se procurar com o faro. Antes de atravessar a bifurcação não se vê quase nada. Depois, tudo eram sinais. Como o corpo sangrando escuro pelo menos dez dias antes do tempo. Não, antes: a pergunta certeira que não possibilitou negativa, mas cuja resposta também não era a raiz de toda a verdade. O questionamento remoído cuidadoso, sem margem para fugir, que amaldiçoarei por ter me desvelado e do qual me lembrarei por toda a minha vida, especialmente pelo tempo que tardei. Não, antes: o pacote de dados do voo de volta. Não, antes: trocar de bolsa de praia e esquecer de por nela o cartão-chave do quarto. Ali já devia saber, mas não fui capaz. Não, antes: inventei de tirar o dia para ler. Coisa perigosa de se fazer, eu devia imaginar, mas não fui capaz. Ler pode dar uma epifania ou duas - levar às lágrimas ou às gargalhadas. No meu caso, às duas coisas. E à escuta atenta de uma comunicação do que gritava o peito. Não, antes: sonhar que se conheciam e acordar perturbada, sedenta pelo Elogio da Loucura do Rotterdam até amanhecer. Se Murphy tinha algo a me ensinar, convinha que não o fizesse tudo num dia só e numa ilha cuja pedra azul clara convoca a uma obrigação quase coercitiva de só amar, ser feliz e solar. E me constranjo ainda mais de, num mar lindo de coisas tão certas, quem sabe ter me detido nas erradas para decidir. Não, antes: adiar a transferência pelo alto valor dos encargos e com ele tentar resgatar as paixões - muito antes de assegurar o patrimônio - porque era destas, e só destas, que esta casa deveria ser feita. Mas o amor não assina a carteira. Não faz fundo de garantia. Só deposita décimas e terceiras expectativas. Cria um vínculo, sim, cria um vínculo, mas que às vezes se desfaz com avisos prévios de apenas trinta dias. Que são cantados em voz muito baixa e cheia de lágrimas enquanto se toma banho para limpar a sujeira dos pensamentos. Devo rebobinar, em silêncio, a fita dessa história sem final feliz.