quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Alcautraz [4]

Bem-vindos ao nem sempre animado tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Depois das tonturas causadas pela aproximação com a cela de Dona Redoma, o convite para visitar as masmorras vem agora acompanhado da exigência de menos pressa e de mais contexto. Visitas mais exclusivas, feitas de uma contemplação mastigada para facilitar a digestão. Para que os organismos se habituem com leveza aos piores perigos e não sucumbam a eles. Qualquer preso daqui em diante é bastante caupaz de dementar um punhado grande de (ou toda a) energia que ilumina e dá força ao Caustelo ao menor deslize.
Todos eles, mas especialmente os seguintes, deste ponto até o fundo, esperam ávidos por uma brecha que lhes facilite a fuga. Teme-se, inclusive, que alguns deles possam ser caupazes de uma espécie de transfusão de almas com o visitante pouco alerta ou, na pior hipótese, inconsciente. Aconselha-se, portanto, que os senhores cauminhem em silêncio. Sem dar-lhes muita prosa, sem muito riso à toa, sem muita deferência. Ouçam bem e acreditem. Perguntas ao final. Por precaução, vistam logo as máscauras de gás e evitem a paralisação completa de seus sistemas.
O barulho de motor que vem da cela com aviso luminoso na parede, um cone na frente e esta fita listrada de preto e amarelo anunciando uma poça de sangue escorrendo por baixo da porta é do Trânsito. Um serial killer. Muito muito muito mau e outro tanto necessário, o Trânsito oferece o risco sempre iminente de uma colisão, um choque, um atropelamento, um perigo fatal: cachorro surdo, criança atrás de bola, motoqueiro na contramão, idosa de bengala, ciclista em cima da pista, camionete no centro da cidade, baliza com gente olhando, caminhoneiro virado de rebite, notificação no celular, arrombado que não dá seta, cruzamento no semáforo, pista recém molhada de chuva, serra sem sinal, GPS mandando pra rua sem saída, um grave problema mecânico ou uma ultrapassagem na curva. Nunca se sabe. Não há cautela nem direção defensiva suficientes para afastar os horrores do Trânsito, suspeitado, necessariamente sempre à espreita.
Quando criança, o Trânsito matava crianças que andavam de bicicleta morro abaixo no bairro. Nunca via nenhuma dando marcha à ré, sempre lhe faltavam os freios, nunca lhe eram confiáveis os retrovisores. O Trânsito sempre andou pelas sombras dos pontos cegos. Quando adolescente, foi vítima de suas próprias necessidades de locomover-se - para o lazer, pior. Nos ônibus, o Trânsito se escondia embaixo do assento de qualquer dos bancos do meio para a frente - do lado do motorista, pior. O Trânsito já era perigoso com gente amiga - na carona de desconhecido, pior. O Trânsito nos feriados ou fins de semana sempre envolvia muita bebida e, quanto mais bebida, menor o reflexo - e quanto menor o reflexo, pior. Foi assim que o Trânsito se tornou um dos piores de todos aqui.
Quando foi trazido para cá, já tinha caurro próprio. Fingiu que não tinha mais perigo em arranhar ou colidir um veículo que não fosse seu e, minimamente diminuídas suas forças, foi finalmente detido. Mas essa máscaura não lhes foi oferecida à toa. Ainda emana do Trânsito um vapor barato e inebriante de combustível, como o que se sente nos postos de gasolina. Quem inala até imagina, mas se deixa seduzir pelo ar envenenado das promessas de chegar mais rápido e mais longe. O Trânsito tem um cheiro forte, muito característico, que mistura pré e pós combustão. Como é necessário atravessar esta cela para ir adiante, na memória olfativa do visitante é este cheiro que exala de todos os caundenados mais antigos. Parece com liberdade.
Mas olhem bem ao redor, senhores. Nada parece menos com liberdade do que este Caulabouço.