quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Eco [30]


Uma semana antes, Laura me convencia a fazer snorkeling pela primeira vez. Vem, ela disse. Não tens curiosidade? Vai ser bom. Eu não queria descer da lancha, mas fui impelido de vontade pela força motriz da língua dela movendo o convite molhado entre os dentes. Sob pretextos sanitários, não nos deram o tubo de encaixar na boca - apenas os óculos. Resisti ao medo de me afogar e fui. Não nado bem, só bóio e mal. E não me é intuitivo o conjunto desses comandos coordenados: esqueça que tem um nariz, levante e desça quando os pulmões exigirem e permitirem, mantenha os olhos bem abertos e curiosos. Ainda assim, ou talvez por isso, o desconhecido de qualquer profundeza viva abaixo do nível do mar é pra mim uma das coisas mais bonitas de todas da natureza. Os peixes, que zanzam onde quiserem. As estrelas, que coincidem e conectam no mar um céu. Os recifes, que azulam-esverdeiam e translucidam a água. O calor tropical incidindo sobre as outras coisas. Já que a isso eu me dispus, queria ver conhecer tudo ao máximo, explorar me deter compreender ter clareza. Mergulhar a fronte da cabeça, com a água na altura do meu peito, pra deixar a visão inteiramente atenta. Ver os pés. Perto deles, uma fauna. Eu achei que usar um snorkel fosse assim, mas pra mim não foi exatamente. Além do controle da respiração, é necessária uma procura ostensiva. Uma atenção demasiado detida. Um vencer o medo da água salgada - que é tanta - entrar pra cegar as lentes de contato. Uma certa proximidade do desconhecido. E uma sorte se houver encontro e ele for agradável. Eu queria ter só clareza, mas acabou que pra mim foi tudo meio turvo, bom, mas turvo. Enxerguei só duas estrelas: fincadas no fundo da areia, numa distância aquática cúbica uma da outra. Distantes, mas ainda iguais. Como se tratadas por taxidermia. Embaixo d'água, em intervalos de poucos segundos a cada submersão para tomar ar, eu me perguntei como se movimentariam e para onde. Com que velocidade. Como acasalariam e se reproduziriam. Sobretudo como e se durariam paradas no mesmo lugar de sempre. E como eu não pisaria em nenhuma, se quisesse caminhar para honrar os meus caprichos? Respirei fundo, depois, e fiz poema:

Depois de um mar,
secamos.
Mantivemos secos
porque um pouco loucos
quase todo o tempo
Esses dois de nós
lavando tudo a limpo
Que de um lado dizem: não não não
por isso isso e isso
E do outro dizem: pensa pensa pensa,
meu bem,
na chance disso disso e disso.

Tateando com os pés
uma praticidade inventada
De já se supor mais racional
- pronto e claro -
do que se está
Neste exato momento,
em que tudo ainda é
tão 
d o l o r o s a m e n t e
turvo.

Depois o abraço
a barba que cresceu calculada
o pescoço
os narizes
o hálito
os encaixes
e as mãos
em proximidade finalmente visceral,
bronzeadamente coordenada
e assombrosamente latina.

Uma concha quente
um pouco apaziguados
relembrando antes do furacão
- e emprestando,
para esta espécie de cura,
ainda que com novos cheiros
o mesmo conhecido calor do corpo
Que há de ser sempre o mesmo corpo
Que um dia escolheu ser só do outro

Depois sujamos mais dessa água que nos rodeia
ao nos atravessarmos
ainda sangrando
- em corpo, dor e dúvida -
Nessa vontade de ver:
através
o que virá
Nessa necessidade de respirar:
o ar de deixar vivo
só não sei quando
Depois?