segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Desilusão

Queria ser bailarina. Se tivesse podido escolher, talvez houvesse usado collants e sapatilhas para viver muito mais do que parido e ensinado. Os cinco filhos que gerei, os netos que vieram depois e ajudei ativamente a criar, os afilhados que nos deram a batizar e os alunos a quem dei a conhecer e a disciplina. Guardam em si partículas minhas que, de tão embaralhadas, agora quase se dissolvem. A todos distribuí generosas parcelas de minha alegria vivaz, mas também de meu tímido ressentimento por ter nascido em certa condição de minha época.
Nasci pobre e nobre. E mulher.
Estudei. Rezo muito. Aprendi quase tudo que eu sei com a escassez órfã do Colégio. A ter bons modos. A ler. A ser cordial. A regressar ao interior daqueles velhos hábitos de nosso tempo sem saber que voltava destinada às coincidências do estudo e das escolhas que em toda a minha vida dali por diante não pareceram mais exatamente escolhas, mas sentenças que me foram dadas a cumprir. E eu cumpri bem. O melhor que posso.
Não houvesse sido eu a primogênita, teria viajado o mundo: conhecido a Itália, minha nossa!, sobretudo a minha amada Itália. Para tomar vinhos ainda melhores do que os que fazia Papai e me assombrar sorridente com todas as belezas. A elas responder no dialeto que me ensinaram em casa. Queria ter entendido antes que podia subverter a ordem das coisas que me foram oferecidas como se fossem dádivas. Que podia ficar em meia ponta. Partir para longe, estendida em pose. Viver aventuras. Ter e contar, também eu, novidades de encher os olhos daquela minha irmã. Distribuir em público pliés delicados e graciosos em vez de me curvar ao que me esperava: um casamento em estado bruto. Não sei quanto mais de prazer e contentamento com a vida teria se tivesse sabido que o sexo não é sórdido e os homens não são necessariamente sujos.
Não me entenda mal, eu sou muito feliz. Eu só não fui bailarina. Disso tenho certeza. E se olho à frente agora há muito menos do que o que já ficou pra trás. O que já foi faz coreografia dentro da minha cabeça. Primeiro foge para a coxia, depois o fato me volta num giro. Rodopia. Recordo sem muita linearidade se almocei ou se devo cozer o almoço, embora ainda queira visitar aquela minha amiga. Que já morreu? Como assim, morreu? Tenho a impressão de que essa informação me é novidade. Não me contaram uma porção de coisas e, por alguma razão, saber delas me chateia mais do que anima, porque me olham como se eu já devesse saber. Mais uma das minhas obrigações.
Prefiro digerir calada. É o tempo de que, deitada aqui, eu me pergunte se a pele lisa e clara que me cobre a barriga e a parte do peito que nunca vê o sol também poderia cobrir, alva, o meu corpo inteiro, se eu tivesse sido bailarina. Meus braços teriam a pele fina e macia? O rosto menos manchado. Foi sempre no quintal escaldante do meio-dia que me encontrei com meus pensamentos e sonhos, agora um tanto distantes. 
De dentro dos teatros, em cima dos palcos, prestes à plateia e às palmas, eu teria qualquer espécie de saudade de enfiar minhas mãos neste solo da terra escura onde me criei? Será que eu sentiria alguma falta de aguar as plantas com o regador verde, se não as tivesse, da minha máquina de costura, se ela nunca tivesse sido vermelha, de arrancar as ervas, se pelo meio não crescessem daninhas, de plantar filhas vivas para agora colher estes cuidados em revezamento? Fazem, sim, o melhor que podem. Muito me orgulham. Quase me escapa que divirjam tanto entre si e tentem controlar meus hábitos e até as economias. O que eu certamente não admito, se me dão a saber.
E por que agora me olha com espanto essa cunhada a quem de bom grado mostro minhas artes recentes e os pensamentos que escrevi no verso? Volto aqui em seguida para dar-lhe a chance de reagir melhor. E depois outra vez. E depois mais outra. Quatro vezes ou mais, num ciclo que se repete invisível misturado nas veias que carregam o sangue inescapável de minha família, e se entrelaçam com os meus nervos, que por sua vez fazem dança no meu cérebro. De tanto viver
envelhecer
e demenciar
quase sem lembrar
de que um dia haveremos todos de morrer.

Só sei que nunca fui bailarina. A juventude não chegou a me dar uma ilusão verossímil de que poderia tudo, mas a velhice ainda assim me desilude
até me esquecer
até
de tudo que não pude.