Bem-vindos a mais um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Outra imperdível oportunidade de acompanhar os trabalhos iniciais da gerência na elaboração de uma espécie de inventário dos prisioneiros - o que, com sorte, futuramente possibilitará categorizar e apinhar em apenas quatro grandes celas os Traumas junto com os Traumas, Ojerizas com Ojerizas, Paranoias com Paranoias, Medos com Medos. Para quem sabe então estabelecer a contento o grau de suas periculosidades individuais, para quem sabe então ressocializá-los com maior frequência e efetividade ao invés de simplesmente trancafiá-los aqui por anos para ir administrando com terapia um por um, quadrilha por quadrilha.
O desafio é saber como isso será, ao final, possível. Os esforços, porém, são intensos. A começar porque há nesta instituição penitenciária um rígido e curioso método na recepção dos caulouros. Porque não se pode revistá-los por muito tempo no momento da caustódia, sob pena de que algum deles tenha o poder sobrenatural de contaminar tudo ao seu redor (e além disso teme-se que sejam os novatos capazes de incitar a fúria dos mais antigos), os que chegaram por último sempre ocupam as primeiras celas, mais pra frente de quem entra. De modo que são alimentados com comida mais fresca. Este esforço em série de realocação para as celas seguintes, necessário de tempos em tempos, faz com que os mais antigos acabem se tornando também os mais pros-fundos.
Pode até não parecer às vezes, mas a rotina diária entre todos eles é até que harmoniosa, embora burocrática, e acredita-se que quando finalmente for possível entender a que classe cada qual dos presos pertence, e estiverem todos acomodados com seus pares, será possível criar pequenas comunidades autogeridas e sustentáveis. Possivelmente os momentos de recreação também se tornem mais fáceis, pois se saberá qual sentinela por em guarda para que não escapem todos juntos nem ateiem fogo no Caustelo inteiro, fazendo dele O Caustelo de Traumas, ou O Caustelo de Ojerizas, ou etc. É pela escrita que eles se banham no sol. Vamos andando, por favor.
Aqui à direita, ainda mais pro começo do corredor, logo após o Classe Média Típico e a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, há duas celas gêmeas nas quais estão acomodadas as Filípicas. As Filípicas são duas lobismulheres de garras afiadas sempre cuidadosamente pintadas de renda ou, no máximo, uma francesinha. É comum vê-las lendo e comentando com fervor um livro de aventuras sangrentas que sempre carregam debaixo dos braços. Quem as vê de dia imagina que sejam exatamente iguais às mulheres ditas comuns: têm TPM, ambição, vaidades, defeitos, desejos lascivos, invejas grandes e pequenas. Mas elas supõem que são diferenciadas, praticamente uma casta à parte. E em toda lua cheia, e às vezes nem precisa ser lua nem cheia, mudam de forma para a Tá-Amarrado version, quando começa a lhes escorrer uma baba do canto da boca enquanto vociferam sobre o que lhes desagrada e uivam juízos de valor sobre como os outros presos (e principalmente as outras presas), justamente porque não leem o livro de aventuras comum às duas, comportam-se muito mal e elas bem. As Filípicas são arquirrivais das Fadas Ceticínicas - mas isso é outra história.
À esquerda, em uma cela ampla e bem iluminada, acomoda-se o Preferidor de Pets. Embora nitidamente bípede, teima em tentar andar com o apoio também das mãos, para simular um trote em quatro patas. Pouco se sabe sobre ele até o momento, além de que é muito verde e nunca teve filhos. Filhote de Figueiredo, ele repete em público que os hábitos, o afeto e até o cheiro de qualquer bicho é melhor do que o dos seres humanos. Em desastres naturais, quaisquer causas de caridade e até para justificar a própria ausência nas atividades comuns, o Preferidor de Pets está sempre pensando primeiro nos animais que estão lá fora, ó, pobres coitados, verbalizando de vez em quando estar incomodado que o Caulabouço não esteja adaptado e equipado para eles.
Na cela seguinte, o Aproveitador. Uma criatura em formato da cara do cara e coroa, inclusos os louros presos aos cabelos, só que inteiro feito de madeira e com marcas de esganação na altura do pescoço, o que faz com que alguns o chamem pelas costas também de Esganado. Talvez o que de mais característico se possa dizer acerca do Aproveitador é que ele não deixa nenhuma oportunidade passar. Se deixar, ele se aproveita - inclusive das coroas. O Aproveitador foi preso aqui porque ele não perdoa um real, mas também não devolve o troco a maior. Em relação a ele não se deve contar com bom senso nem espírito de comunidade. Não reparte nem os cabelos. Sempre que pode, ele aproveita para cobrar de maneira vexatória os seus devedores, exigindo-lhes juros altos e a desgraça pública. Reclama sempre do que lhe dão a menos: pode ser um centavo, uma atenção ou uma ervilha.
Toca a sirene. Fim do passeio. Circulando, deu por hoje.