O peso da porta do quarto onde eu durmo é um cofrinho de brinquedo que imita um cofre de verdade e que abre se o fecho é virado para o 70. É um dos poucos bens materiais que eu
guardei da minha infância. Cabia um cadeado, mas nunca pus. Eu nunca tive muito
apego às coisas, embora deteste não saber onde estão ou notar que sumiram, e me
desfiz sem muita cerimônia de vários cadernos, diários, daquele taco de bets com
meu nome pirografado na fonte da Coca-Cola com o adesivo das Meninas
Super-Poderosas colado e de tudo o mais, o que deixa ainda mais simbólico e
engraçado eu ter guardado não uma boneca (a única Barbie da vida), nem um
utilitário gibi, mas justo um cofre. Um cofrinho. Tem em cima dele uma marca
áspera na tinta lisa que eu guardo como um segredo. É a forma de um dedo sujo de
brigadeiro, que encostei enquanto enrolava vários em algum aniversário quando
ainda era criança, talvez até no dia em que ganhei de presente, mas não me
lembro direito da circustância. Só lembro de ter pensado, dias depois de muito
esfregar, ao ver que a marca não ia sair ou uniformizar de novo no verde do
revestimento, que deve haver muita química nos corantes daquela época, imagina o
que faz no estômago. E que talvez mais valesse ter continuado com o cofrinho
prata amassado da Minnie - que já estava meio enferrujado nos cantos mas era o
meu de estimação e as moedas não trancavam nas extremidades porque era
cilíndrico e eu já tinha aberto dezenas de vezes em cima da cama para separar
tudo por valor, e depois contado com meu pai enquanto ele me ensinava a contar e
a por tudo em sacolas de plástico bem amarradinhas para facilitar a troca.
Talvez tenha sido ali que aprendi a guardar e dar valor ao dinheiro - eu não
tenho certeza, nunca entendi de onde veio essa minha rebeldia. Também nunca
entendi se lemos minei o nome da Minnie só pra rimar com Mickey ou se existe um
justo motivo na língua inglesa, mas essa é outra história. Sou boa de decorar. O
jeito certo de escrever as coisas, mesmo que elas não façam tanto sentido assim
pra mim. Os nomes completos. E os movimentos automáticos do dia a dia. Para fechar a porta
do quarto onde eu durmo, nas raras vezes em que é preciso - geralmente só para
acessar as roupas do cabideiro fixo atrás - há dois anos e quase meio arrasto
com o pé direito o metal meio empoeirado contra o piso na direção da porta do
banheiro. Minhas economias poucas fazem sempre o mesmo barulho. As moedas
tilintam apertadas umas contra as outras. Outro dia troquei um pouco no Café,
porque começaram a pesar demais para arrastar. Elas parecem cada vez mais
escassas no mercado. Precisa-se de moedas, lê-se também nos caixas de padaria.
Ainda lido com muitas moedas, apesar de tudo. Coisinhas físicas que valem o
quanto houver escrito nelas. Cujos lados opostos se grudam entre si por uma
camada fina de metal benzida pelo Banco Central.
Diz-se que para decidir
qualquer coisa basta jogar uma moeda para cima e, naquele milésimo de segundo em
que está no ar ou se esconde entre o dorso da mão e a palma da outra, saberemos o que escolher, porque saberemos pelo que torcemos. Meu ponteiro não marca mais 70 há muito tempo. Essas moedas são do
valor que eu escolhi perder e do preço que me obriguei a pagar quando as quis jogar pra cima.
Hoje saem, mais uma vez, voando pesadas rumo a um céu pela janela de não saber pra onde.