Cogitar nunca mais ver a cor do C de ouro que o vô Nelson me deu na crisma porque um belo dia da semana passada eu resolvi tirar ele do lugar de onde ele nunca tinha saído para reaproveitar a corrente com outro pingente já que outras três douradas que eu tinha simplesmente estouraram do meu pescoço consecutivamente no último mês me adoece. Me adoece. Profundamente. Eu queria estar brincando ao dizer isso. Eu queria entender um pouco mais de desapego com coisas tão específicas. Eu queria ter aprendido a rezar o responso. Eu queria ter fé para dar 3 pulos a São Longuinho ou para prometer a Santo Antônio, junto da minha súplica, o que mais sua reza exigisse. Eu queria não ter revirado todas as bolsas todas as gavetas todas as capas de óculos todos os zíperes todos os papéis de Trident amassados dentro de todos os outros compartimentos aqui dentro de casa. Eu queria conseguir não ter ficado obcecada por esta busca como eu ainda estou. Eu queria que ser generosa me protegesse dessa avareza de odiar não saber onde coloquei. Eu queria não estar com tanto medo porque talvez o tenha jogado fora embrulhado e amassado confundindo com ele um algodão, um cotonete ou um chumaço de cabelo, se é que eu fiz isso. Eu queria não ter decidido no último minuto antes de sair de casa ser tão, mas tão agradável com a anfitriã da minha visita de quinta a ponto de usar o C que ela me deu. Eu queria não ter pensado que aqui eu nunca ia perdê-lo já que agora aqui é lugar nenhum, o último lugar da face da terra, um bueiro para Nárnia, o estômago de um rinoceronte dentuço que é cheio de suco gástrico e derrete o que aparecer imediatamente, a terra querida dos gnomos fugitivos com pingentes à tiracolo. Eu queria não me perguntar se eu fosse um C onde eu estaria por tantas vezes consecutivas até não encontrar o sono e levantar da cama para procurar outra vez na mesma gaveta em que ele não estava quatro minutos atrás, quando o procurei pela milésima. Eu queria deixar ele no primeiro lugar que me ocorreu deixá-lo quando o tirei do cordão e não no segundo, inencontrável, no qual eu tanto não o perderia de jeito nenhum que o perdi para sempre. Eu queria não imaginar esse plano mirabolante em que um ladrão ou uma ladra entra na minha casa às 4h de qualquer madrugada, não faz barulho nenhum, encontra (só por essa parte já nasceu perdoado) e me rouba uma única coisa: justo um tantinho de ouro em formato de sorriso que deve valer um total de uns cinquenta reais ou menos. Pra quem não ganhou ele na crisma, é claro. Eu queria não estar amaldiçoando a freira do colégio de freiras frequentado pela minha avó 70 anos atrás que deve ter rogado uma praga atravessadora de gerações a todas as primogênitas da nossa família para que se culpem - bem no oco - quando podem eventualmente não ter cuidado bem das próprias coisas e para que sejamos todas incapazes in-ca-pa-zes de perder o que quer que seja e ficarmos bem com isso ou quem sabe consigamos simplesmente deixar para lá. Essa pior herança (a que eu queria perder), segue bem aqui rente ao osso do peito.