quarta-feira, 31 de julho de 2024

Matrioska

A decisão certa
Se esconde num túnel
Que se estreita
Por dentro das erradas.

Só encontra quem se esgueira
e se dispõe
A atravessar sem saber de qual deles vai sair.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Eco [29]


Quando uma relação tem fim, não se perde automaticamente o amor - perdem-se as piadas internas, a certeza de persistir o encanto mútuo, confissões de admiração e reconhecimentos, a decisão coordenada sobre cumprimentar ou atravessar a rua, todos os rituais de doçura e conforto inventados a dois, as senhas de acesso a estes rituais, todas as servidões de passagem aos traumas, às dores, às reinvenções e encaixes nas faltas mais encravadas e o direito irrestrito aos contatos e provocações aleatórias no meio do dia. São grosseiramente arrancados os selos de qualidade pelos quais tudo que passasse pelo filtro do outro tinha a graça de um interesse e, enfim, removidas as placas de patrimônio que antes pareciam pirografadas na pele. O que parece, gradualmente, dar quase na mesma - porque é disso que se alimentava o amor. Quando uma relação tem fim, ficam apenas as marcas. Da cola e do resto.
Quando Laura foi embora eu ainda sentia a presença vultuosa dela enquanto voltava, teimoso, a mergulhar nos meus oceanos escritos de caos, como um explorador, com muita dificuldade de abrir os olhos. Queria ter podido entender junto com ela o que prendia meu pé nos corais desse mar de identificação - imenso e nosso - ao qual ela de repente foi capaz de atear fogo. O poeta me ensinou: Confia no teu coração se os mares pegarem fogo. Não ensinou, porém, o que fazer com a dificuldade de confiar em mim e no meu coração sozinho e de novo. Laura dividia tão, tão, tão bem comigo a nossa profundidade. Parecíamos estabelecer uma transfusão do mesmo ar - que passava de um pulmão a outro em beijos virtualmente submersos, sem que nunca precisássemos tomar o fôlego da superfície.
Precisei me convencer de que, no fim, eu saberia o que fazer - mesmo que todo o meu aparelho respiratório estivesse desacostumado a funcionar com naturalidade e a minha mandíbula tensa tivesse desaprendido a mastigar, falar e sorrir. Se a apneia fosse uma modalidade olímpica, haveria para mim um prêmio de consolação. Destinado a quem falhou mas desejava sobreviver sem precisar do oxigênio das praticidades rasas. E depois arcou com todos os danos dessa privação no cérebro.
Um eco solitário, uma bolha que se propaga na água na certeza de não haver resposta: é a minha própria voz que volta. Sem que ninguém a tenha absorvido do outro lado.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Barro e pó

¿Que hay en una estrella?
Nosotros mismos.
Todos los elementos de nuestro cuerpo
y del planeta
estuvieron en las entrañas
de una estrella.
Somos polvo de estrellas.
(Ernesto Cardenal)


Por que os tijolos e as telhas não se desfazem ao nosso redor ou em cima das nossas cabeças, se são feitos de barro? Não quero pensar em Química. Não importa agora. Eu sei, eu sei, temperaturas altíssimas asseguram que a argila, expandida, fique duramente unida sem perigo de que se despedace e espalhe. Mas então que baita azar o meu ter sido feita com esse pouco de frieza de vez em quando. Desintegrada, agora preciso dar conta de me varrer cada caco até que fique limpa. Já não sou a mesma que horas atrás se esfacelava. Essa chuva me amolece em lágrima para me lavar em pequenas partes - enquanto o sol promete que só vai me secar de novo se estiver minimamente reunida. Eu, que nunca tive talento ou habilidades manuais, vou precisar dar conta de me recompor. Primeiro o contorno de mim. Faço planos de me rechear dessa matéria e consistência que espalhei. Vou precisar conseguir me remoldar de cabeça, pedaço a pedaço, à minha imagem e semelhança, os mínimos detalhes. A poeira de mim que se perdeu na queda há de achar as frestas para dar liga à obra (re)feita - como nuvem - que deságua, faz crescer, transpira e ainda há pouco se precipitou. Eu só queria ser de novo inteira sem ter que dar o tempo ao tempo de esquecer cada parte que brilhava como glitter. Agora emboto - eu - cor de terra, como o pó. E lambo a ponta dos meus dedos ensaiando como virarei esta página só pra tentar me grudar a mim de novo.

Já não inspiro ou cedo aos mais profundos pedidos: cada partícula jaz torta no chão sem se lembrar que já foi uma promessa de cadência.

terça-feira, 16 de julho de 2024

Manic Pixie Dream


Não permito mais
Que cada Ideia me escape
Agora cada uma
(f)ervilha e sai da va(r)gem
e me alimenta,
pois gasta o tempo de que saia.

Me agarro ao Seu conteúdo e substância
(queria dizer: cintilância)
Feito náufraga
que precisava é dessa tábua de madeira
para nela entalhar e depois ler poemas
e prosas
e contos inteiros
e epístolas
e finalmente se salvar.

Proporcionalmente,
tenho penteado mais os cabelos
Deixo menos pistas
como migalhas de João e Maria:
Agora eu digo!
Só que digo ainda como quem diz à noite,
enquanto dorme,
e depois finge que, no íntimo, não se lembra.

E depois de dizer?
E depois de tremer a base inteira?
E depois que, no mar de almirante,
eu já me souber boa marinheira?
E quando eu já não for mais tão inteligente,
ou já não acreditar mais no positivo do reforço?
Eis aí.
Encontrei o que me deixa apressada
de Lhe fagocitar, ligeira,
sem o tempo dos detritos e sedimentos
se assentarem no fundo de mim.

Estou ardendo na febre de imaginar
protagonistas que sempre saem ganhando:
ou vivem a aventura - e ela sempre, sempre, sempre acaba -
ou estão melhores sem os seus lunáticos de estimação.

Quero cumprir logo o tropo desta Ideia,
ainda que pelo caminho do meio da mente.

Mas tô achando que não vai dar.
Já que nove entre dez estrelas
ainda me fazem chorar.

Cativo [7]

Essa noite tu sonhaste que nos divorciávamos. E acordou me contando assim: “não lembro detalhes, mas você pediu truco e aí eu pedi seis. Te cuida, né?”. Te cuida, tu disse. Eu ainda nem tinha limpado bem as ramelas. Tem coisa mais bonita pra se dizer a alguém? Algo como dizer: te cuida pra não andar por aí desarmada pelos vales das sombras do teu destempero na minha ausência. Eu nem sei mais o que é me cuidar, acho até que nunca soube, e ainda assim prometo que, por ti, eu vou tentar. Estou tentando muito. Divorciados ou não, quando morreres vou jogar tuas cinzas num estádio. Eu já sei qual, mas me agrada ser eu a poder escolher. Aprendi a pensar nessas coisas absurdas transpondo o ruído verde do Luis Roberto, do Furlan, da Kloss, do Vincenzo e das tuas reclamações sobre a arbitragem. Por que o controle da TV só funciona bem contigo, hein? Eu teimo em achar que é a tua posição cativa no lado centro-esquerdo do sofá. Não me adianta nem ajustar data e hora - e eu nunca vou decorar que isso fique no menu de "Preferências do dispositivo". Excomungo sempre a nossa TCL enquanto te alcanço para resolver mais essa, porque detesto precisar de ti. Eu tenho o efeito de mercúrio retrógrado na ponta dos dedos e, mesmo sabendo, eu te asseguro que não estou te enrolando, não. Não é assim que eu me sinto. Hoje eu vou ao meio-dia depois de fazer o mercado pra lavar mais uma remessa das roupas da semana passada e colocar a casa em ordem. Provavelmente eu deixe um bilhete com as bananas em cima dizendo que o amor também se alimenta desses detalhes para quando voltares da academia. Vais sorrir ou só ignorar? Vou torcer pra que sintas o sorriso esticando um músculo do lado de dentro da tua boca, como uma prova daquelas que não se suspeita de que estão lá. E vou usar pouco amaciante para não desbotar tuas camisas na secadora, não te preocupa. Só não prometo não mastigar outro pedaço de carne crua recém sapecada das ondas do micro (ouço teu nojo daqui, pode se despedir me beijando na bochecha, eu não me ofendo). Depois, sob falsas alegações de que eu estou dando uma de pick me girl tão-baixinha-e-tão-fraquinha, tu podes trocar pela quarta vez o chuveiro da suíte só de alegre, me abrir este pote de conserva (que, afinal, és tu que fecha sempre com força demais) e de novo o zip-lock do Rap10 - que senão eu vou usar o dente e vai estragar tudo. E vais alcançar as tralhas das prateleiras mais altas pra mim, sim. Continua, amor. Não reclama. Faz teu nome no dia-a-dia dessa praticidade doméstica. Eu finjo que tu és necessário e eu não tenho escada, contato de marido de aluguel ou ponta de faca, e tu finges que acredita no que significa a palavra necessidade pra mim. Amanhã, a conselho teu, eu não vou. Se o fiscal chegar, eu não quero o constrangimento de ter que me esconder. Fica avisado: penso sim em ir embora uma vez por semana. O resto do tempo passo me arrependendo de ter confessado isso num domingo.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Samba & Freddo [3]

Godofreddo Palhares! rssprsssprss. Que baita nome de velho. Surpresa positiva é que ele não tenha uma fileira extensa de outros nomes entre o prenome e o patronímico, tão numerosos a ponto de ser difícil de decorar, como um membro da família Orleans e Bragança. Afinal, é um persa laranja. Godofreddo eu não sei de onde saiu - mas ele é Palhares porque a Anna (que hoje bem cedo gritou esse nome completo estrambólico para fazer ele sair de cima da pilha de roupas limpas) é Palhares. Sei porque eu vi o Sérgio stalkeando o Instagram dela como quem não quer nada e aproveitei para dar uma espiada rápida. Entre uma legenda inspirada e outra, o feed da Anna foi completamente alaranjado por uma dezena de fotos dele nos últimos tempos.
Eu li embaixo de uma das fotos que ele foi adotado maiorzinho (um persa?), e acho que foi essa informação que mudou um pouco as coisas de figura dentro da minha cabeça sobre o ranço antecipado que eu tenho de persas laranjas genéricos. Parece que ele já teve meia dúzia de orange cats problems, então. Talvez não seja dos piores. Foi muito bom dar uma cara objetiva (com foco e zoom) ao gato que eu só vejo à distância aqui do parapeito. Ele não é tãããão olho-junto nem tão sisudo quanto os outros persas que eu tenho no meu imaginário. Preciso ficar de olho porque pode ser dos que se fingem de amáveis para depois cccchrrr, se revelar um verdadeiro tigrinho, e assim me dar o seu bote.
Vendo as fotos até pensei que pode ser que o nome dele seja só Freddo mesmo, como a marca de sorvetes finos (por que choras, Kimyto?), e a Anna tenha encompridado na hora um nome maior que o real só pra poder engrossar a voz e ele entender que era sério. Tutor faz isso às vezes. Será que ele gosta de ser chamado de Godofreddo? Eu aposto que, no fundo, gosta. Dá uma pompa e circunstância ser um gatinho de apartamento com um nome tão grande e imponente. Principalmente porque põe um Deus pomposo na frente de um apelido relativamente simples (não fosse a dobra do d). Esse nome completo tem um tom aristocrático. Godofreddo, o Aristogático (essa pensei agora que eu vou falar pra ele, se um dia tiver a chance, para medir a febre. se ele for astuto estes cinismos vão fazer crescer o apreço que podemos vir a sentir mutuamente).
Mas Godo também rima com engodo. Que, por sua vez, rima com Visigodo. Digo, não rima. Digo, até rima, mas fica pobre porque é uma repetição literal das últimas quatro letras. Melhor mesmo é ele ter sido apelidado de Freddo. Não sei por que estou achando tão espirituoso imaginar se ele gosta ou não gosta de como lhe chamam (para perturbá-lo? de repente virei um esquerdogato e quero praticar negging?) - o fato é que passei o dia com a minha boca entreaberta, e entre um bocejo de língua esticada e outro fiquei repetindo atrás dos meus dentinhos pequenos todos os fonemas do nome Godofreddo Palhares pelos cantos aqui do apartamento. E foi sonoro.
Por falar em sonoro, outro dia o Sérgio me viu arranhando a cortina e me chamou de "Samba de Adoniran". Olha que coincidência: eu também tenho um nome encompridado que só é dito quando querem me fazer prestar atenção em algo (ou parar de fazer merda). "Samba de Adoniran". Achei engraçado demais. O Sérgio é muito bem humorado. Aprendi a gostar disso nele (do humor. e das músicas que ele está sempre ouvindo). Eu prefiro o Cartola para chorar ou a Casuarina para dançar, e é claro que o sobrenome do Sérgio não é "de Adoniran", mas até isso achei bom. Ele não se sente meu pai. Nem meu dono. As brasilidades e a MPB (e a relação elétrica da Gal Costa novinha com todos os seres respirantes que respirassem perto dela) devem ter ensinado a ele algo sobre o amor livre.
Em respeito a isso é que o toca-discos é a única coisa aqui de casa que nunca me arrisquei a chegar perto. De duas, uma: ou eu vou sair rodando e ficar tonto, ou vou querer me firmar com as garras saindo das almofadinhas das minhas patas, e aí arranho o disco inteiro. Não vou correr esse risco de chatear o Sérgio, que pelo menos tem o bom senso de dar valor à música e à arte. Por falar em música, o que será que o Freddo acha de mim quando às vezes olha pra cá e estou mexendo a minha cabeça e o meu fuço ao som da Tropicália? Será que ele repara nisso de um jeito positivo? Ele deve ouvir Mozart. O que eu tenho a ver com isso?
Passado o baque inicial da sua presença (que encheu minha vista até então pacata de pelos gatunos e desassossegos), eu quero confessar que eu acho o Godofreddo Palhares bonito. Isto é fato. E não tem a ver com feromônios, porque o meu olfato não é dos melhores, eu já disse, então nessa distância não sinto praticamente nada. E a menos que eu seja o primeiro caso de gato que virou bissexual por culpa exclusiva de contatos visuais fortuitos da história da zoologia, esta atração não se resume à forma física de seu pelo ruivo brilhante e caramelado que enxergo com o obstáculo de metros de distância. É o jeito que o Freddo caminha. Parece grande e imponente, tem uma juba que lhe dá o tamanho de um leão. Pessoalmente eu aposto (torço?) que, se derrubar um copo de água nele, fica parecendo um ratinho de laboratório.
Já eu nunca me achei dos gatos mais bonitos. Veja bem: eu não sou de se jogar fora e sei que tenho um certo apelo onde circulo (decorrente do meu porte, do tom firme do meu miado e do meu borogodó). É, acho que pra feio, feeeeeio, eu não sirvo. Mas pra bonito acho que também não. Sou apenas um gato preto comum igual a tantos outros. Será que é inveja, então, o que eu sinto dele? Eu espero que ele saiba, enquanto me olha ali de baixo, que pelo menos eu sou asseado (tirando o bafo de quando como peixe).
Sei que eu não devia estar me importando tanto com nada disso, nem dando tantos desses rssprsssprss idiotas só de saber que o nome encompridado do Freddo é Godofreddo Palhares. Eu só o vejo de longe, não temos nada em comum a não ser sermos gatos, estamos cada um no seu quadrado, separados pelo vão largo onde lá embaixo pode passar um carro pequeno ou até um furgãozinho de mudança. E assim vai ficar para sempre. Normal. A menos que...

Samba & Freddo [2]

Deixa primeiro eu contextualizar: aqui na vizinhança eu sempre reinei soberano. A Sônia do 301 tem dois yorkes chatos pra caralho que latem só de sentir o meu cheiro e que ela enche de lacinhos (patéticos!), o casal do 203 tinha um caramelo pequeno chamado Tobias, que morreu de velho, o Gustavo do 104 adotou uma cruza com salsicha no ano passado e a Tânia do bloco de lá tem uma Lulu da Pomerânia chamada Tiffany (sei pelos berros) que eu vejo daqui que vive toda enosada, porque ela não cuida da pobrezinha. Não sei pra que trazer pro apartamento, se for pra ser assim, mas por outro lado culpa da Tiffany também, que ninguém mandou ela nascer cachorro (e por isso precisar de banho no pet shop), e não autossuficiente e limpante como nós, os gatos.
Para ser franco, até me espanta que gato ninguém nunca tenha tido aqui no condomínio nesses anos - o que não evitou que eu me acostumasse à minha superioridade intelectual hors-concours sobre a matilha inteira ao meu redor. Eu me acho muito mais esperto do que eles, e é porque eu sou mesmo. Não é marra, é talento. O meu raciocínio é rápido como um centroavante que descobriu que podia meter um gol depois de cruzar meio campo pelo corredor aberto pela direita. Meu pulo é sempre certeiro. Eu me esgueiro por pequenos vãos como se eu fosse líquido e saio do outro lado, inteirinho da Silva.
Só que há três semanas chegou o Freddo. Estou miando esse nome com a boca mole, para que fique muito bem compreendido: tenho preconceito com gato de raça. Nas minhas andanças encontrei pouquíssimos deles, e suponho que seja pois ficam sempre trancafiados em casas dessas de revista com seus portões altíssimos, seus aquecimentos artificiais, seus Whiskas sachês ao gosto do freguês e suas chaises cheias de almofadas bordadas e macias para ficar em cima. Ou pelo menos é assim que eu imagino. Em todo caso, os poucos que conheci me deram amostra suficiente para concluir que só existem dois tipos: ou os gatos de raça ficam com aquela cara entojada impassível e a lentidão de uma ameba (o que detesto, porque sou ágil) ou dissimulam a cara que faz aquele da animação do Shrek - para parecerem fofinhos como um bicho de pelúcia e conseguirem o que querem. 
Desconfio ainda mais destes últimos, porque querem parecer inofensivos. Oras! Descendemos todos dos tigres (no meu caso, das panteras amazônicas) e devemos agir conforme, sob pena de que cedo ou tarde nos joguem bolinhas e saiamos saltitantes para encontrá-las e devolvê-las só para que nos joguem de novo, como se nossas vidas dependessem disso. Por outro lado, entendo o esforço que fazem para derruir a fama de que somos bichos blasés. O problema é que os de raça parecem encalacrados na sua superioridade moral do personagem de miar baixo e se moverem lentos. São uns vendidos e traidores: de todos nós, são os que mais ficam se embolando nas pernas e ciceroneando os humanos como se dependêssemos deles e não nos tivessem domesticado e tolhido a liberdade para que só então precisássemos, em primeiro lugar. Só que em relação aos outros gatos, eles se acham melhores.
E os piorzões de todos, entre os de raça, acho que são os persas laranjas. Sabem que são raros. O cenho sempre franzido é uma herança de família que lhes corre nas veias, e eu sou capaz de apostar - ainda que meramente pela observação distante de seus hábitos - que pensam que descendem de uma longa linhagem de sangue felino azul. Eu também me acho nobre, mas é por outros motivos. Tenho uma caixa de areia inteira de exemplos do que acho deles. Se os persas pudessem, só fariam as refeições com talheres. Se fossem leitores, se vangloriariam de preferir os anglófonos. Aliás, se eles viajassem, tirariam fotos na frente de livrarias para provar algum ponto sobre erudição - eu não sei exatamente qual. Ao contrário de mim, que se viajasse gostaria de lamber sorrateiro uma tulipa de cerveja importada, e não essas Brahmas que o Sérgio compra e deixa uns restos quentes dando sopa em cima da pia.
Talvez os persas sejam assim porque a eles interesse mais o mundo depreendido a partir da imaginação do que a crueza dura das coisas. Sei porque, a despeito das nossas diferenças fenotípicas e culturais, nisso eu penso um pouco como eles. Deus me livre, mas quem me dera, ter me contentado em viver todos os meus dias no conforto aquecido da biblioteca. Arranhar as capas grossas e duras de dezenas de livros por ano. Eu teria evitado tanto sofrimento. Será que eu teria sido mais feliz fazendo só isso, se não soubesse das outras coisas que podia fazer? Jamais saberemos, porque não foi o que eu fiz. Escolhi o caminho dos perigos.
Foi de tanto teorizar se havia outro gato minimamente parecido comigo no mundo - e de remoer meus pensamentos dentro deste balão de história em quadrinhos contornado pela minha melancolia - que eu resolvi saltar, quase suicida, para dar uma modesta volta na quadra pelo terreno do Vizinho naquele dia em que saí pela primeira vez. Ou eu teria ficado para sempre no parapeito dessa nossa sacada, que dá a exata altura de um pedestal.

Samba & Freddo

A cena parece trágica, mas para mim é quase paradisíaca: estou de novo sentado num canto do parapeito da sacada do nosso apartamento. A vista compensa muito o medo que já me deu subir aqui. Faço isso há anos. Repetidamente, sempre sem ajuda e sempre com os mesmos cuidados para não me acontecer um acidente letal. Sou magro, por isso acho que não tenho muito problema. Quando o meu coração finalmente desacelera do impulso necessário para a subida e consigo me estabilizar, eu me envaideço por ter conseguido e aproveito para imitar os gestos lânguidos de quem medita - como se fosse fácil, com o coração na boca.
Daqui de cima eu contemplo tudo que posso, o que significa mais de uma dezena de janelas discretas - outras, nem tanto. Não vejo muita variedade (em termos de coisas que me chamem a atenção) fora os hábitos repetidos de quem apaga a luz e dorme, horas depois acorda, abre as cortinas e escova os dentes perambulando pela casa para poder sair apressado e só voltar quando já anoiteceu. Só em ocasiões pontuais e no final de semana é que algumas rotinas deles mudam, como quando assistem a um jogo de futebol (e gritam) ou trazem alguém novo para jantar (e depois às vezes também gritam, mas de jeitos diferentes).
Ainda que em regra só haja quietude e monotonia nesse panorama, sigo subindo aqui em todos os dias da minha existência, às vezes para passar horas a fio, com a graça de um ritual que me evoca quase a mesma sensação dos tempos em que esta vista era desejada (porque quando eu cheguei, pequeno, ainda não alcançava o parapeito) e, depois, em que era tudo que eu tinha.
Hoje faz um pouco de frio e chove, então não vou sair. Vou ficar assistindo deste ângulo aos mesmos suportes de ar condicionado encardidos sobre os quais repousam, há tempos caídos das janelinhas dos banheiros, alguns shampoos e sabonetes - que por sua vez vão sujando e apodrecendo quase sem se decompor, só para provar que o tempo passa e algumas coisas resistem bravamente. Os habitantes do bloco de lá nunca se dão ao trabalho de buscar, porque embora suas mãos alcancem e segurem objetos com bastante ergonomia, sei que para eles poderia ser uma missão suicida. Mais vale comprarem outros Head&Shoulders do que padecerem do risco de ter a head desassociada dos shoulders na queda, rssprsssprss (acostuma, esta é a corruptela que uso para indicar o meu riso). Para o azar deles, não são habilidosos no equilíbrio para os trabalhos em altura como eu.
Talvez por isso, outro dia, uma vizinha enxerida tenha me fotografado e posto o registro no grupo do condomínio. Quase vieram os bombeiros. Xingaram o Sérgio de maluco e irresponsável. Deu o maior bafafá. Eu, porém, não parei de fazê-lo, a despeito das telas que foram instaladas para a tranquilidade geral da nação. Levou dois dias para eu aprender que uma tela e nada é a mesma coisa pra mim. Agora acho que paro aqui um pouco porque gosto de me desafiar e outro pouco por desaforo com aquela maldita. Só que escolho horários estratégicos e tento não ser visto, para não constranger o Sérgio diante dessa gente careta e metida a besta que não entende nada das pequenas loucuras que são exigidas de quem leva a vida trancado nestas caixas rígidas, metros quadrados que se agigantam em ferragem e concreto ao redor, aos quais por sorte foram implantados buracos para escapar que eles chamam de portas, janelas e sacadas.
Ah! E a árvore. Daqui eu vejo bem de perto a árvore que cresceu, imensa e frondosa, rente ao muro, às sacadas e às janelas da frente-norte do nosso bloco. Esse verde do Vizinho deixou a minha vista mais selva e menos de pedra. Modificou e melhorou muito a minha rotina. Veja bem, não é que aqui em casa não tenhamos folhagens, suculentas e cactos, nem é que dê para confundir esse paisagismo do Vizinho com uma obra assinada pelo Burle Marx. Nada disso. É só uma árvore. Não é bonita a ponto de parecer cuidadosamente pensada. Mas essa árvore - que agora se funde à paisagem bem colada às construções - tem pra mim o valor sentimental de mais de uma década. Além de ter sido a chave para a minha liberdade, ela me sinaliza o quanto o tempo passou. Fico nostálgico quando penso que a vi crescer desde que era um raminho ou dois fincados no chão e tinha aspecto de muda. Quer dizer, isso ela ainda é, porque as árvores não falam nem fazem sons sem a ajuda do vento, rssprsssprss.
Cresci também nesse tempo - isso sinto no corpo. Moro nesse mesmo apartamento há todos esses anos. O Sérgio, que mora comigo, acabou de sair para trabalhar. Sei porque ouvi ao longe as chaves dele girarem na fechadura. Meu olfato não é dos melhores, então compenso com os outros sentidos. Não me ressinto muito de que ele não se despeça mais de mim todos os dias e que tenhamos nos tornado um pouco distantes, como aquelas presenças certas e duradoras, feito um móvel da decoração. Tampouco entristeço demais que ele já não converse comigo com frequência. Até porque eu nunca respondo direito. No fim das contas, nunca fomos fisicamente próximos e sei que esta culpa é minha. Eu não gosto tanto assim de contato físico. Acho que no fundo ele entende as minhas necessidades, porque segue provendo tudo o que eu preciso. O entendimento das coisas práticas é o máximo de entendimento que posso almejar de um cara como o Sérgio em relação a mim.
No mais, guardo comigo um pouco dessa tristeza vaga e indefinida de me sentir sempre só, é claro que guardo, mas ele não foi o causador de nada disso. Talvez tenham sido as circunstâncias: ser por tanto tempo o único da minha espécie num raio de muitos metros para cima, para baixo ou para os lados, vivendo trancado nesse apartamento o dia todo, ainda por cima. Mas isso não é desculpa. Eu aposto que o Sérgio, que sai bastante e é tão boêmio, às vezes se sente assim um pouco melancólico também. Sei porque é assim comigo: quando a conheci, a rua até me distraiu, mas não me preencheu. Levando em conta que não temos como suprir nossas carências de todo, visto que somos tão diferentes, sei que Sérgio e eu fazemos o melhor que podemos em termos de companhia um para o outro. Eu me detenho em acreditar que a melancolia seja um sentimento inescapável da condição de se sentir único. Depois de nos separarmos umbilicalmente de nossos pares (a família), esta melancolia (que mescla um pouco da solidão com um pouco da busca inconfessável pela identificação) vem. E fica.
Penso nisso enquanto estou aqui praticamente imóvel, há horas, tentando alcançar a paz de não desejar mais as minhas perigosas expedições, que necessariamente passam pelo terreno do Vizinho, mas vão além. Lembro da primeira vez em que tomei coragem para me lançar do outro extremo da ponta aqui do parapeito para cima do ar condicionado do Sérgio, e depois para cima do muro, e depois para o galho da árvore, e depois fui me firmando pelo tronco até o chão do outro lado da divisória erguida entre os terrenos. Quatro manobras ornamentais, e cada qual podia ter dado muito errado. Só que deram certo. Meu ritmo cardíaco acelerou tanto que, na volta, pensei que não conseguiria subir a árvore de novo para poder fazer o caminho reverso. Com bastante esforço eu subi, e desde então as minhas experiências e receptores se expandiram. Tornei a fazê-lo semanalmente e conheci texturas, lugares e formas da natureza que nunca tinha suspeitado. Descobri as capacidades e as aptidões do meu porte. Virei um rueiro, ávido pela noite, pelos prazeres da carne e pela novidade.
O Sérgio, que é um defensor do prazer, nunca quis me castrar. Nesses anos todos, sempre fingiu que não desconfia das minhas aventuras, exceto pelo dia em que eu cheguei todo lanhado depois de uma briga por um pedaço de peixe. Naquele dia a coisa ficou feia. Feia, fedida e infeccionada. Precisei ficar internado. Achei que ele ia se desfazer de mim quando viu a conta do médico, mas voltei pra casa. É sorte eu estar envelhecendo - já não tenho mais o vigor de antes, o que possivelmente explique eu estar retomando o gosto por apenas me sentar aqui, dia após dia, e simplesmente contemplar (como se aqui não houvesse o perigo ou a vertigem da subida). Foram necessários diversos exercícios pelos telhados, tentativas e erros, mas cheguei à conclusão de que quanto mais eu zanzei por aí e conheci as coisas, mais compreendi que estar aqui, no parapeito desta sacada, é o meu lugar no mundo.
De longe, reflexivo e bem paradinho assim, eu talvez possa parecer um pouco depressivo. Não é verdade. Tenho histórias emocionantes demais, mesmo antes de invadir o terreno do Vizinho, mas principalmente depois, para que aconteça da minha melancolia descambar para uma depressão. Eu me organizo em volta destas minhas memórias efusivas. Boa parte da minha emoção vem dos saltos. Como é natural da formiga atacar o doce, é natural para mim o frio na barriga que dá a altura. Dentro de casa, se acontece de eu cair, eu caio em pé e nunca me machuco. Então sou capturado pelas estantes mais altas que o Sérgio tem, pelos potes sobrepostos acima dos aéreos da cozinha e pela engenharia de cálculo que me demanda compreender ao certo como subirei pelos degraus que vão se formando irregulares dentro desta casa até alcançar o ponto que eu quero para tirar uma soneca. Todas as etapas deste processo têm a força de um desafio.
Às vezes, em cumplicidade a esta minha subversão, o Sérgio muda as plantas de lugar (como na música da Cássia) só para assistir como eu farei para subir de um jeito diferente onde subia antes sempre igual. Isso me manteve ativo e malandro e me deu coragem para sair do conforto do meu parapeito para explorar o terreno do Vizinho, quando finalmente achei que devia. Eu sou forjado na malandragem. E ele sabe. Vive comigo tempo suficiente para entender que quando ponho algo na cabeça, não vou me deter. Nisso até somos parecidos: há um equilíbrio simbiótico de coexistir no mesmo espaço e proporcionar ao outro o básico do lazer e do entretenimento.
Até hoje, nunca me ocorreu fugir. Acho que se tenho espaço para pequenas transgressões inconfessadas, comida boa e água fresca, não tem muito o porquê. Já fui mais de um quilômetro longe do prédio atrás de rabo de saia, sem contar a distância daqui até a árvore, e depois sempre voltei. Geralmente calculo bem o tempo que o Sérgio leva fora e volto antes de ele voltar do trabalho, para não lhe causar preocupações.
Talvez se eu tivesse no meu pedigree qualquer traço de origem espanhola e fugir se pronunciasse huir, com conjugações bonitas e sonoras como huye, eu tivesse mais vontade. Mas eu sou brasileiro. Ultra brasileiro - como o feijão, o jeitinho e o brigadeiro. Eu sou um gato preto, sem raça definida, a quem o Sérgio deu o nome de Samba. Não Simba, como o protagonista do Rei Leão. Samba. Sinto a ginga dessa escolha de vogais desde nascença, enquanto remexo o rabo malemolente, uma pata atrás da outra. Sempre que tenho lábia, sem medo de perder o raciocínio, porque sei que quando eu sentar para miar, elas estarão lá para me socorrer.
Espera. Enquanto eu me distraía lambendo as patas ao contar minha biografia felina, houve um movimento na cena que me é inteiramente novo. Até agitei os bigodes. No apartamento da frente, um andar abaixo do nosso, a Anna (sei que chama Anna porque o Sérgio fica cheio de graça e fúria quando fala dela) está depositando no chão uma caixa de transporte que até reluz de tão nova. Em cima um nome: Freddo. Dentro, algo grande se move cor de laranja em textura de doce de leite. Só me faltava essa.

domingo, 14 de julho de 2024

Cativo [6]

O jeito mais fácil de seguir amando a artista é conseguir separá-la da obra. Mais fácil que isso acho que só negligenciando a obra. Não, não que eu concorde em tu fazeres isso, só estou dizendo que sei que é o jeito mais fácil. Que aí se franzes as sobrancelhas pra me perguntar “Capítulo 3?” não preciso dizer ou justificar nada. Respondo só com uma expressão facial e um aceno de deixa pra lá com a mão, insinuando que não tens com o que se preocupar. É sempre o que basta. Zero perguntas depois. Zero investigações. Zero vindas até aqui, mesmo tendo a obrigação moral de saber que aqui é o meu lugar de capitular a loucura, se é que fosse mesmo um capítulo. Que alegria pacífica e leve deve te dar no juízo conseguir se conter para não invadir o meu manto terrestre. Não me perfurar com a britadeira nem com a picareta. Aceitar e acreditar, sem cobrar taxa aduaneira, na procedência do produto que às vezes te entrego porcamente embalado na fronteira da minha superfície. Uma marmota. Não insistir para ver mais do que o que te mostro voluntariamente deve ser pra ti uma decorrência da crença mútua e quase irrestrita que coordenamos: jamais fuçamos os celulares nem espetacularizamos as proximidades amistosas do outro com os outros. Os ciúmes deixamos para os imbecis que nunca cresceram (e para a vez que tentei voltar o anticoncepcional, aquela é outra história). A fidelidade é uma bandeira que já nasceu hasteada acima das nossas cabeças. De modo que se tu visses uma carteira de Marlboro Blue Ice pela metade e outra de Gudan quase cheia acompanhadas de um isqueiro no meu banco de trás, e não questionasse nada até eu te contar que delírio foi esse, eu me sentiria grata pelo espaço silencioso e amplo para que eu adolesça as minhas traquinagens e cometa meia dúzia de transgressões inocentes. Bebo com gelo o suco puro da tua confiança. Ele tem uns fiapos e gomos, mas sei que não é falta de amor. Longe disso. É porque tu já foste o cara paranoico antes e constatou que ele não te levaria a lugar nenhum (que não fosse pra bem longe de uma impetuosa como eu). Então o elogio é ultrassincero quando digo: tu bancas o meu pacote completo. Banca mesmo, em somas muito mais altas do que as contas do mês, e ainda que sob os protestos desconfiados do olhar daqueles teus amigos que dão de zero a dez em ti no autocontrole. Que raro é isso. Tu és seguro e te controlas. Nisso se eu souber resolver por mim mesma as minhas questões, melhor pra ti, que aí precisas te investir menos no meu processo. É que tens teus próprios demônios e mecanismos e estes já te demandam necessidades. Incluso práticas de saúde. Que cumpres bambeando, mas com toda a determinação. Trocar a comida pelo cigarro, cigarro por chimarrão, depois o chimarrão pela reclamação do quanto eu como, como, e não engordo, como ontem à noite. Os nove quilos recém perdidos na força do ódio te dão esse direito. Minha balança (a moral) pode descalibrar para menos que eu ainda vou achar que ser viciado em ser fiel é um peso que te fez largar na frente. Tu sabes. Deve ser por isso que o destino te brinda com coincidências como nos encontrarmos no drive thru do cachorro-quente depois de uma noitada separados. Quem não me procura sempre me acha, amor. Desarmada, ainda por cima. Risonha e estridente como uma melhor amiga mala. Se bem que nesse bingo tu não pontuas para ter o comparativo. Nesse sentido talvez ponto pra mim, que nunca me dispus a ser a melhor amiga espaçosa e inconveniente de ninguém comprometido. Eu sei o meu tamanho. E o de dentro tem tanto fermento agindo que eventualmente me extravasa pelos buracos da cabeça. Anota essa frase como uma receita de família tatuada no inconsciente: as coisas na minha cabeça crescem bem maiores do que sou capaz de concretizar. Mas se tu pausares de novo a série ao menor sinal de eu, sei lá, piscar mais demorado, eu realmente sou capaz de quebrar a TV em 3 pedaços só com a força da ira da mente. Tô avisando. Não que tu tenhas qualquer medo desse tipo de aviso que eu te dou. Se eu falo como quero que as coisas sejam, tu nunca te dobras de primeira sem antes se certificar de que concorda comigo por razões válidas e lógicas, que façam sentido pra ti. Ontem, por exemplo, teu sabor de pizza não era tão bom quanto os meus. Strogonoff de Carne podendo pedir Presunto de Parma? Jura? Vá lá. Não disse nada. Também sou uma escolha tua e tinhas outras provavelmente mais recomendáveis - sem obras a consumir - no teu cardápio. Então não disse nada. Aproveitei para gastar o tempo da reclamação pensando, enquanto olhava na direção do caixa um cara meio professor-de-antropologia-envelhecido-e-engordado pagando a conta: calvo tu não vais ficar. Deus abençoe todas as tuas compulsões e vícios. Vamos (nos) consumindo, vendo e avisando. Essa conta, se finalmente chegar, eu vou querer pagar no débito.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Eco [28]

Muitos amigos me perguntam por que continuei escrevendo para a Laura depois do nosso término, considerando tudo que ela me fez (que se resume a ir embora daquele jeito) e deixou de fazer (ficar comigo, merda, era só o que eu queria...). Melhor era ter deixado quieto, eles dizem. Isso que eles nem sabem que quanto mais eu vou cavoucando, mais a coisa se regenera sem fim, como um fígado. Podia dizer células, neurônios, pesquisar um pouco para comparar com outra coisa que se regenere para bancar o inteligente, mas optei por dizer fígado pois ele digere ou não o que cai mal.
Respondo sempre que não escrevo “para”, mas “por” Laura. Uma preposição que no meu caso faz a mais significativa das diferenças. Até entendo que se preocupem comigo, que recomendem que eu não fique vidrado demais nela, para não perder a vida passando. Que tire o meu lirismo desse lugar de reciprocidade e os pés bambos no parapeito. Aí é que tá: eu não perco, eu ganho com a vida passando. Quando os fios grisalhos chegarem à vera vão me encontrar é muito do ganhador. Já que quanto mais tempo passa enquanto eu ainda escrevo, mais me sinto próximo de descobrir algo sobre mim mesmo que talvez fosse necessário jogar luz em cima, e antes não tinha luz. Era como se a Celesc tivesse cortado. Um dia ela me perguntou: e escrever, nada? O resto da história vocês já sabem. Desde então escrevo sem parar, especialmente depois do fim. E é por isso que o Caetano não me canta mais só You don’t know me, mas também I’m alive and vivo muito vivo
E tem a coisa de que já passou muito tempo. E de que eu sou um homem, porra. Eu não confundo alhos com bugalhos. Com todo o respeito, mulher é que tem talento pra isso. É óbvio que eu passo o rodo todo final de semana, de sexta a domingo pelo menos, o máximo do desempenho que o meu corpo e o meu pau aguentarem. Queria o quê? Esse barco já tá passando há um tempinho de novo embaixo da minha ponte velha de guerra, aliás.
Se eventualmente uma das “sucessoras” da Laura descobre que eu escrevo para a Laura, ainda passo por exótico, perturbadinho ou meio dodói. Não que eu não seja exótico, perturbadaço e, se investigar bem com o meu psiquiatra (que eu tive que trocar), adoentado - com laudo e tudo. Mas a aura de um problema a ser resolvido... meus amigos, que mulher não adora isso? Só não vai me responder que são as boas da cabeça. Nunca me relacionei com nenhuma dessa subespécie que não serve para nada. Outro dia li que, para as mulheres conquistarem os homens, basta que se comportem como suas mães (eca, mas é verdade), e para que os homens conquistem as mulheres, basta que se comportem como pais ausentes por três dias: sumam primeiro, e eventualmente voltem como se nada tivesse acontecido. Eu meio que concordei ali.
Enfim. Foco. O que quero dizer é o que já cantaria o Dinho Ouro Preto, aquele nobilíssimo e sábio poeta do cancioneiro nacional, no timbre mais brega que ele alcança: falar de amor não é amar alguém. Quando escrevo coisas tão profundas, tocantes, inspiradas e inspiradoras, como se ainda a amasse, talvez isso seja, sim, uma espécie de recaída da qual eu devia me envergonhar. Ou quem sabe é só uma confissão de que eu valho bem pouquinho? Já que eu fico cutucando à exaustão com um galho o meu cérebro estirado no chão pra ver se ele me dá mais um pouco das viciantes sinapses que só a Laura me provocava.
Escrever me organiza, eis o motivo da vergonha completa. Isso aqui sou eu organizado. Dá pra imaginar? Escrevo para me lembrar de que ainda sou capaz. E escrevo porque, não importa o quanto quotidianize a passagem dela na minha vida - agora por meio de memórias não mais tão fidedignas, já que apaguei todas as mensagens e áudios num impulso de deletá-la também do meu HD interno -, sei que o que escrevo ecoa fundo na Laura.
Ainda que ela não saiba, não leia, não responda. Escrever sobre ela é mantê-la viva no (meu) mundo, e eu sei (porque sinto igual) que em alguma medida agora ela precisa disso. Ela pode ter mudado de ideia sobre tudo, mas não pode mudar tão no osso o que ela é. O que ela foi do meu lado. Isso não se acha em qualquer esquina. E um dia pode ser que me responda - e depois guarde num cofre e mude a combinação de tempos em tempos, e eu só vá descobrir se ela deixar um testamento me endereçando as 945 cartas escritas a mão. O inventário do indizível. Não importa. Até lá, vou escrevendo.
Não sei explicar o que e como se deu, mas a Laura estranhamente foi capaz de extrair aquela gosma medular que ficava guardada dentro de mim. Com uma precisão de cirurgiã. As minhas células-tronco, eu vou dizer assim para ficar mais bonito. As minhas células-tronco, que por escrito podem virar muitas outras coisas maiores, melhores, além do que eram.
Ela estava com as mãos contaminadas ao fazê-lo? Estava. Atalhou todos os preceitos de biossegurança recomendados pelo Ministério da Vicissitude? Com certeza. Esqueceu as luvas e vestiu nas próprias mãos um par de meias listradas? Sim e a desgraçada ainda ficou bonita. Usou na operação uma seringa suja da heroína das suas frases feitas cheias de gracinha? Eu não tenho dúvida. Eu só sinto que não posso, ainda que já não tenhamos mais contato, desonrar o mérito de que ela desemperrou uma porta que antes estava muito trancada em mim. Trancada com a força do desnível no batente após o inchaço de uma enchente, mais sete ou oito barricadas, finalmente afiançadas por uma chave tetra. Ela abriu tudo. Não sei como. Ela escancarou. Se isso me escapar de novo, eu paro. É por isso que não paro.

Cativo [5]

Guardo o teu souvenir do Distrito da Luz Vermelha na segunda gaveta da mesinha de cabeceira como se fosse uma carta de amor. Se esse presente não tiver sido o ápice do erotismo romântico, eu não me chamo Afrodite. Bom, eu não me chamo mesmo, isso a gente sabe. Tô dizendo só pra ser lisonjeira contigo. Mas esse papo de alguma forma ainda me transporta praquele caminho de Alfredo no qual, há par de anos ou mais, pela primeira vez discutimos o assunto a sério. Houve menção ao filme do Lars von Trier - isso prefiro esquecer, até porque nunca assisti pra dizer. Eu não vou falar mais nada a ninguém sobre frequências e gatilhos, fica tranquilo, nada a reclamar, além de que agora até eu conheço esse limite. Quer dizer, sobre gatilho eu vou falar sim. Porque ainda queimo um pouco a mufa na tentativa de entender que substância molhou a caixa de fósforo. Talvez a certeza de todo o tempo das nossas vidas? Talvez. Até porque transar pra mim sempre foi, essencialmente, sobre se vingar da morte. Isso e poder. Embora entre nós quase não haja hierarquias e, se houvesse, eu teria um pouco de preguiça de dar as ordens. No mais, eu já reparei: ser visto é que te dá tesão. Atenção plena. Cuidadosa. Preocupada. E lenta. Só depois cabe a displicência. Isso é uma coisa engraçada, amor. Principalmente agora, se penso que tu és um pouco míope de mim e que talvez nos pareçamos nisso de querer sermos vistos sem precisar nos confessar para só então entregarmos a chave da porta do templo para toda e qualquer blasfêmia ou profanação que só cabem ali, sob os efeitos alucinógenos da entrega. Toda, toda, não, mas toda que der para ter sem trocar os papéis definidos. Os homens costumam ser visuais. E as mulheres, quer dizer, acho que só posso falar por mim, saem em vantagem porque preferem e sabem mostrar a carne melhor do que o que passa na cabeça - é sempre um pouco mais louco do que gostariam de admitir. Não vou elaborar. É isso e ouvir. Acho eu que te vejo bem, de qualquer modo. Bem entre as piras e cócegas e a boquinha retorcida. Apesar das vezes que te beijo menos do que gostaria. Fazemos mais aquele teatro de tentar alcançar e fingir que está difícil. Adoro, também. Tu sabes do que eu tô falando. O nosso sexo - que bênção e que maldição - nunca foi feito só de tapar buracos. Sempre demora o que demorar o meu corpo, sempre parece um calibre perfeito, sempre amanhece a promessa da possibilidade, ainda que a gente sempre acorde levemente atrasado. Suspeito que é muito pior pra quem dobra as roupas antes ou marca hora e depois um x no calendário só pra dizer que teve, e nisso tenho a impressão de que concordamos. Ele também nunca serviu de válvula de escape pra nenhum ódio brutal. Nenhum ciúme, nenhuma vontade de matar, nenhum desejo de atravessar e se fundir, nada - ele sempre só foi, orgânico como foi e quando pode, ele só é, com direito a tudo, certo como dois e dois são quatro. Quase nunca fora de casa, porém. Deus te livre desse incômodo e constrangimento. Aos poucos, é como se nunca tivesse sido no porta-malas no Perimbó. Sempre um conforto doméstico e nunca - nunca, nunca - um artifício perfeito de reconciliação, que tu teimas que se for assim vai incentivar as brigas. Não sei se tens razão. Incluso eu teorizo se foi isso, em primeiro lugar, que me ensinou esse would que eu tenho aprendido a usar nas frases quando falo de nós. O exercício subjuntivo que pichou um enorme SE em cada verbo dito no plural e nas paredes da nossa casa inteira - e, por consequência, também nas do nosso quarto, onde hoje é sexta e vamos abrir de novo as calças, as pernas, os corpos. E aquela gaveta.

O cavalo da anarquia


O cavalo da anarquia
não se contenta em nunca dormir deitado
como todos os outros cavalos
A ele não basta estar teso,
sempre de pé,
insubordinável.
Quer e gosta mesmo é de desatar a correr
mundo afora
O mais rápido que sabe
Sem que lhe possam auscultar o coração
Que, aliás, bate atrás dos cotovelos.

Quando corre
É o mais rápido de todos
É o mais rápido que pode
E sente ainda menos sede
Não aceita trato,
não bebe água
- nem que seja benta -
e ofega, ofega, ofega.

Nunca lhe couberam rédeas
Jamais permaneceu calmo
Ou imóvel
Por tempo suficiente
para caber no trote lento da exibição.
Nunca passou perto de haras
Nem conhece linha de chegada

Sem vocação para unicórnio,
porque visceralmente real e vivo,
o cavalo da anarquia
sente um pouco de dó
de que não suspeitem
das tantas perdas
os outros cavalos - que cedo ou tarde param,
nem que seja um pouco,
para contemplar ao longe quaisquer horizontes:
Vales
Montes
Calmarias
Ou arquipélagos feitos de estranhezas e carinho.

O cavalo da anarquia, não.
Gosta mesmo é de correr
De ofegar
De sentir a espádua contra o vento
- nisso havendo uma inteira beleza
que contemplação nenhuma apazigua.

O cavalo da anarquia 
- a quem nunca olharam os dentes,
porque quase nunca se deu
e estão quase sempre cerrados -
só relincha de dor ou cansaço quando ninguém está olhando.

Não é daqueles que passam encilhados.
Que lhe monte apenas
quem estiver disposto
a se quebrar todo
e, ainda assim, montar de novo.
Nisso havendo o valor
de um preço
e de um acordo silencioso e ágil de almas afins.

O cavalo da anarquia
está sempre em alguma perspectiva
E por isso é que às vezes passa despercebido:
há quem o veja do tamanho
de um bibelô empoeirado de casa de vó
pegue na mão e largue,
voltando aos próprios afazeres.
A mim mais parece um Pégaso
que obriga a ajustar as esporas
que me nasceram atrás dos calcanhares.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Daily bloody news

Sou o que se pode chamar de pessoa sanguínea. Como explicar? Acho que assim: tudo por dentro de mim é vermelho. Por isso é que, quase sempre, quando preciso voltar para o centro do meu vulcão e lidar com a lava viva enquanto ela respinga, meio que facilita eu carregar de amuleto uma espécie de lembrete visual de quem sou eu. Um cachecol, uma sombrinha, uma bolsa, até uma calcinha de renda (funciona mesmo que ninguém veja, na verdade se ninguém reparar que estou frágil e me valendo de subterfúgios duvidosos como este para parecer impassível, melhor ainda). É um detalhezinho de nada e a cor já me protege do gris. Uma vez tive quase uma depressão horrorosa e desatei a comprar. Roupas de todas as cores, muitas delas, mas o primeiro item da lista foi um conjunto de alfaiataria. Vermelho. A calça e o blazer. Uma coisa pra lá de Ideli Salvati. Nunca tive coragem de sair na rua com as duas peças juntas, nem no dia depois da eleição, e nesse cheguei a vestir, mas ainda assim consigo me perdoar por ter deixado o saldo da conta no... vermelho, ai que piada de mau gosto, pagando caro pelos frisos e lapelas daquela rubra poluição visual. E se sei me perdoar por ter feito aquilo é porque sei admitir que segue por baixo da minha pele o tempo inteiro a pessoa que cometeu aquela ofensa à Lei Maria da Moda. Embora essa compra tenha virado uma piada de salão. Tanto, que quando uma amiga descobriu que uma das pantones do inverno ia ser cherry bomb mandou mensagem correndo pra me avisar que finalmente eu poderia desentocar os vermelhos do armário. Não que eles vivam entocados. Só que no tom de cereja, cereja mesmo, eu não tinha nada - tive que comprar e ainda nem usei porque esfriou. Terça vesti a calça e a bota - sim, eu também tenho uma bota toda vermelha - para me fortificar bem da cintura pra baixo com a certeza de que quando o resultado do exame de segunda chegar, daqui um mês e pouco, câncer não será. Nessa levada cromática e simbólica é que ontem à noite, também para combinar com o cinza da previsão meteorológica, eu fiz planos de vestir tudo preto (um vestido, dois casacos, bota e meia calça, a viúva-que-nunca-foi), prender os cabelos num rabo de cavalo como quem se prepara para fazer um exercício ou ir à guerra e passar um batom... vermelho. Meio que funcionou, mas acho que falta retocar o botox. Corri agendar pra segunda. Meio-dia e meia era a hora de fazer a unha. Vermelho de novo porque sim. O da semana passada chamava Poder. O dessa semana chama Maçã do Amor. Essa galera que dá nome aos esmaltes é mais criativa que os outros marketeiros todos juntos, mas também pudera. Tem cor e acabamento a dar com pau. Pensei em escolher um da Colorama com desenho do Mickey na frente, que chama Selfie no Pelourinho(?), mas o excesso de informação me desorientou e desisti. Se escolho ele é meio que como se não soubesse se quero ir à Disney (isso não) ou voltar à Bahia (isso sim, hoje mais). A sorte é que minha manicure é ótima. Menos quando ofende algum Tratado de Direitos Humanos. Mas a unha ela faz bem. Fofoca, também. Ela só não gosta que demore pra escolher a cor. Sempre peço pelos da gaveta mágica - porque ali sei que ela guarda os mais novos e são os que mais duram, mas também porque posso ficar mexendo no celular no tempo de ela tirar o da semana passada, lixar e fazer as cutículas. Pedir pelos da gaveta me desobriga de olhar os trocentos coloridos que ela guarda no carrinho, como esse do Mickey, que acho que ninguém bem certa da cabeça poderia escolher. Não que eu seja bem certa da cabeça. Pode não parecer, mas tenho pouco saco pra dar uma de madame (a começar porque madame acha vermelho meio over, e como confessado alhures eu sou praticamente a Fafá de Belém entoando aquele hino que fala do comunista). Então gosto da minha manicure também porque é rápida. Enquanto ela terminava de passar a segunda demão passou a Laura pra receber outra cliente - Laura de verdade, o nome dela é esse mesmo, a maquiadora que trabalha no salão - e hoje ela tava linda como geralmente. Um blush bem coradinho que se eu faço pareço o Patatá, hoje de manhã até tentei e infelizmente pareceu, mas que nela fica bom, e um batom... vermelho. Parecido com o meu, acho que é o Ruby Woo da MAC. Quando vi a boca grande dela bem contornadinha e escarlate sabendo que o meu batom já tava meio gasto de comer a marmita correndo antes da hora marcada, não soube espantar a ideia de parecer uma dublê de corpo - só que não poeticamente, como na música do Leoni. Talvez uma dublê de (meia-)boca. Mais para o lado de uma imitação chinfrim. Pensei em usar a palavra doppelganger de novo, mas acho feio porque não sei pronunciar, e hoje estou finalmente mais honesta e prática comigo mesma do que metida a besta para impressionar. Acho que foi naquele momento em que a maquiadora passou bem maquiada que a manicure perdeu a minha atenção plena na história do cachorro que a sobrinha precisa sacrificar. Eu tenho esse dom de desconectar por uns segundos da conversa, surfar todo o Mar Vermelho dos meus pensamentos e depois voltar de Marte e responder pontualmente com "eitas" e "nossas" como se nada tivesse acontecido. Compenso a desatenção com simpatia e sempre passa batido. Às vezes até consigo situar melhor uma pergunta que simule interesse nas coisas terrenas. Na volta, ouvir falar em cachorro me lembrou de gato. Gato me lembrou de rato. E a cadeia completa dessa busca esquisita e persecutória. De ter sempre um coração trabalhando, nem que seja para bombear o sangue vivo para o meu corpo inteiro. Sou o que se pode chamar de pessoa sanguínea. Mas nem sempre o vermelho me protege de confessar que cada vez que eu chego lá, o amor já é outra coisa.

Cartesiano


A terapia não vai te curar
de sentir a paixão
e querer dar-lhe um CID

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Eco [27]

— Bom demais! Se eu soubesse que era o teu favorito, tinha visto antes.
— Antes de me conhecer?
— É. Pra termos mais isso em comum.
— Não que precisássemos. - e ao dizer isso encostou o nariz no meu, pra logo afastá-lo de novo, abrindo os olhos - A minha prova final é saber qual foi a tua cena favorita.
— A única que me fez rir. Bem no começo. Dan e Larry no chat, com o Dan se passando pela Anna.
— Zero cabeça, hein? Não era um filme de comédia. Mas tudo bem. - ela disse, rindo - Porque eu também amo essa. Apesar de ser só o clichê de um escritor entediado com seu cigarro aceso procurando sarna...
— ...pra se coçar um pouco, sim.
— Ia dizer "pra poder escrever sobre a coceira" - e fez as aspas com as mãos.
— É, deve ter um encanto extra fazer as coisas mirabolantes que geralmente só acontecem dentro da cabeça primeiro acontecerem, em si, pra depois então escrever sobre elas.
— Você falando assim é como se tudo não acontecesse sempre, primeiro, dentro da nossa cabeça.
— Você entendeu. Mas deixa eu justificar melhor o meu ponto. Eu acho que gostei porque, em alguma medida, aquela bobagem que definiu a trama inteira...
— Tens razão. O horizonte de eventos.
— ...mas temo que essas "grandezas" da arte - e aí também fiz as aspas com as mãos, pra arrancar outro risinho dela - é que fazem a gente sonhar alto demais sobre o amor e como ele funciona.
— Alto? Como encontrar o amor num double date surpresa que tinha tudo pra ser bizarro? - e veio se aproximando linda, linda.
— Tipo isso. Uma vez em mil, e a gente acostuma mal querendo que seja a regra.
— É o meu filme favorito justamente porque não precisa de um segundo pra entender que tudo dá errado.
— E certo!
— E depois errado de novo.
— Mas if you believe in love at first sight...
— ... you never stop looking.
— Ia dizer "take a closer look".

Cativo [4]

Se tudo explodisse, sei que haveria um brio. Não um brilho, como costuma haver nas explosões. Um brio. Dirias palavras duras na tua voz de veludo, amor, mas o que mais me machucaria é o silêncio que saberias fazer por estar ferido. O tempo que levaria pra tirar as fotos de todos os porta-retratos. Dividir os travesseiros e indenizar as parcelas. Voltar a lavar a louça. Não sei se suporto perder os talheres e a intimidade ao mesmo tempo. Ególatra, também não suporto a ideia de perder o controle da narrativa do fim. Que história contaríamos? Que história eu contaria? Você sempre faz questão de tudo tão explicadinho. Isso me irrita, mas sinto que te devo. Porque se eu explico qualquer coisa você valida, remói em muitas mastigações, e às vezes muda - o que é uma raridade no teu gênero. O problema é que não tenho bem claras, nem pra mim, as respostas e possíveis reivindicações agora. Até porque não posso reivindicar a transmutação de toda a matéria que te constitui. Primeiro (e digo isso levantando um dedo por vez, a começar pelo polegar) porque isso não viria, já que tens o brio, segundo porque muito do que eu amo se perderia no processo, terceiro que, se viesse, não viria sem dor - e a essa altura qualquer dor tua me dói simultânea, porque preciso lidar com ela. As minhas são menos físicas. Nisso parece que profetizei que esse ano eu faria um caminho de volta para as palavras. Só não calculei bem a rota, entende? Até onde isso ia. Não imaginava que elas fossem se agigantar, criar dentes e garras e virariam obstáculos e me devorariam e quase denunciariam assim. Que me mostrariam um espelho para enxergar tão nítido o buraco, o não dito, o oco. Que me tornaria uma inconformada com as regras que eu mesma estabeleci pra seguir. Logo eu, que nunca cogitei achar tão ruim a sério você já ter um plano mais ou menos estruturado para a recuperação de mim, se calhasse de ser: cursos e fodas. Eu sei que me lembraria desse plano de um jeito devastador, reclusa embaixo das cobertas, quando fosse o tempo de ele virar verdade. Que percurso desastroso eu poderia percorrer ferida pela tua superação? E quem me diria de um jeito tão enfático pra parar um pouco de olhar as camadas, porque às vezes as coisas só são, inteiras como são? Tens parecido muito a minha mãe… calma, eu vou explicar, é no melhor sentido que quero dizer, desde criança sinto que posso enlouquecer se ninguém pegar na minha mão às vezes e me disser em seco pra parar com esse frenesi melancólico, quando ele me vem. E nisso você se destaca. Os teus pés, aterrados, já criaram raízes fundas. De modo que, se vem um furacão de incerteza, é a ti que eu posso me agarrar. O tamanho de uma constatação dessa é proporcional ao remorso que eu sinto em saber que posso minguar se não sentir de novo um estímulo-contraste pra ser enxergada além da pele, do drama, das lágrimas, até os ossos. Você é paramédico. Repara em todos os meus comportamentos, mínimos que sejam. Checa os meus sinais vitais. Põe com um pouco de romantismo o meu colar cervical. Firma o ajuste das talas. Esse olhar atento, ainda que tenha um retrogosto de controle, não te faltou nunca. O que eu quero talvez não possa exigir: você só não me radiografa.

terça-feira, 9 de julho de 2024

(pseudo) Haikais de aterramento


Out of
nothing,
nothing.

Parece que ganhei um membro
do corpo
ou da família

Bom humor
e carinho
é o caralho

Esqueço o contador
como os sinais vitais
de um moribundo

Uma pessoa só
não é
uma plateia inteira

Cativo [3]

Disse sim pra ti, teu pai, a mãe, a cachorra caquética - que São Francisco a tenha - e os avós, que me celebram como quem torce que repitamos as décadas deles. Pra nem falar dos amigos. Amo todos e se os amo é porque também amo a rotina que construímos ao redor destes círculos. Puro movimento. Aceitas igualmente bem a minha metade. Só que tê-los na equação amplia muito a dimensão de qualquer movimento. Porque os amo, sim, já falei, vou repetir porque é muito. Mas também porque não suporto pensar no derretimento total dessa personagem que cai tão bem nos ambientes aos quais você me introduziu. Ok, ok, tampouco suporto cogitar ouvir falar sobre lanchas, menos ainda varar noites jogando RPG ou tomando água e guaraná. Isso é certo. Esse é um truco que eu não banco, nesse aspecto eu me conheço muito. Eu gosto de caupirinhas. Vinho branco. O Uruguai enaltecido. Os comentários espirituosos daquela amiga bêbada da tua mãe fingindo a boca paralisada contando dos peitos de fora em Taquaras. Tua mãe beijando a minha testa sendo que não beija a testa de ninguém. Gosto muito de tudo isso. E eu gosto, do tipo que virou costume, do nosso torpor físico coordenado. Um cuba, dois, matamos a garrafa. Gosto de termos nos encontrado no meio do caminho entre a tua arruaça sintética e o meu mérito acadêmico do Proerd. Nos perdermos um do outro também implicaria perder esses progressos, o que por certo poderia me custar toda a sobriedade do movimento natural semanal de gente que rala endoidando aos finais de semana. E depois desabando na cama, sem margem pra insônia. No pé da escada eu vi que o teu pai tem um exemplar dos Dez dias que abalaram o mundo. Eu não li, mas me veio a constatação - degrau por degrau, enquanto subia lenta e pesarosa para o quartinho - que eu também tenho os meus. Estou tão abalada, amor. Você suspeita? Não te dou pista porque não sei em que dialeto comunicar por que tomaram fermento de novo estes delírios, ousadias, solidões, descontentamentos. Então vou comunicar o quê? No fim… o que vou dizer? Que tudo está igual, menos eu? Se sei que ainda sou a mesma de antes. Só que de muito antes. Estou te prevenindo de mim. Eu nos preveni, quase o tempo todo, da partezinha inescapável de mim. Eu a diminuí. E isso - de tê-la diminuído, dobrado, refreado - é imenso. Incontornável. Tenho a impressão de que guardei o segredo dessa importância até de mim. Talvez porque ela não venda bem em nenhum mercado - meu ou teu. Ninguém tem saco para tanta subliminaridade. Para tanto subtexto. O cão e o arrependimento. Você não faz questão nenhuma de se deter nessas sutilezas. No fim, tens culpa nenhuma. Ninguém se detém. Quer dizer, quase ninguém. Pra mim às vezes elas são tudo que há. É aí - na merda fresca e fedida desse comparativo - que a nossa ruína pode se estabelecer. E agora ela lateja em mim, dolorida pra cacete, como uma unha encravada.

Alexandria

Há uma foto antiga
Em miniatura
Que vou carregar na carteira onírica
Reservada aos sonhos mais valiosos
Quase sagrados
Tirei para levar à guerra de prenda

Nela estás tu 
O corpo quase todo virado pra frente 
 - desenhando impulso de absentar, rato de museu -
Mas a cabeça voltada pra mim
A boca cheia de dentes
Metade é sorriso
A outra metade é desgraça
Atrás de ti
- parece primeiro plano agora - 
dezenas de prateleiras
Intuo algumas lombadas
Proust, Carson, biologia
Todos os outros
duzentos e poucos

Em chamas vivas

Foto em preto
Branco
E cinzas

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Cativo [2]

Se vou me concentrar nisso para vir renascido o amor, ainda que bento de lágrimas, antes preciso tornar claras algumas coisas que já estão supostas entre nós. Como a Custódia da Véspera da Madeira, há momentos importantes da nossa trama em que suspeito que “se fosse sempre assim, eu teria te amado”. Digo, é óbvio que eu te amo, não estou aqui escrevendo deliberadamente, com esta concentração e afinco, para negar o que construímos. O contrário. Escrevo para lembrar o máximo que puder por que devo ficar. Só que antes os is precisam de pingos. Então talvez o mais adequado seja “eu teria te amado… mais”. Que coisa feia. Acho que é por isso que adiei dizer. Não há uma escala gradual. Amor tranquilo é espécie. São outras dimensões e naturezas. De qualquer forma, vou me concentrar em evocar os melhores momentos para me cativar de ti outra vez, por escrito. Porque acho que mereces. Todo o meu lirismo, retidão, a atenção e a devoção, o corpo e o resto. Principalmente o resto. Mas preciso que você entenda que não vou te enviar. Se você ler, você leu. Vou deixar aqui pra sempre, e me apavora esta ser uma gaveta que pode ser que você não vá abrir para me pegar no pulo. Caralho. Isso é aterrorizante pra mim. Por que não abre, amor? Poxa. E, também, se finalmente ler, faz o favor de não reclamar da exposição, que se você fizer isso eu não vou aguentar. Preciso por pra fora. E digo mais. Também não me diz que leu com eu te amo e emoji de coração ou coisa econômica que o valha. Muito menos me mostra a resposta antes pra eu revisar, como nas vezes em que eu dou o melhor de mim nas legendas. Se fizer de novo isso agora eu vou te cantar a sério a Marina Sena desafinando Voltei pra mim. Tô avisando. Mas antes, e é por isso que estou fazendo o que estou fazendo, preciso descobrir o que é este “mim” pra onde posso eventualmente voltar. Este “mim” definitivamente eu comigo. E você reservando o lirismo inteiro para a música. Verbal. Literal. Como sempre. Porque não dizes coisas grandiloquentes, mal me lês, não respondes na mesma moeda, contigo não tenho esse eco. Ainda assim tenho uma certeza absoluta da tua companhia. Da tua admiração. Do teu olhar de maré mansa. Só que cada vez que você debocha de Rubel dizendo que é música de comer gente ou faz uma paródia, eu esmoreço. Esmoreço, percebe? O oposto do entusiasmo. Por outro lado você debocha da minha megalomania em vez de enaltecê-la, e isso acho providencial. Há sempre um equilíbrio. Essa frase diz o bastante para que eu a repita e nos acrescente: há sempre um equilíbrio entre nós. Nessa balança você me empresta uma calma da qual eu careço. Estou no caminho de descobrir se eu preciso (precisar, verbo imperativo) da troca para ser feliz. Ou se ainda pode me satisfazer apenas ser quem eu sou e você ser quem você é e enxergar(mos) a beleza dos freios e contrapesos. Voilà. Temos o ponto central de todas as minhas divagações de ultimamente. O grande mistério que envelopa os outros, como uma capa comprida e impermeável que protege o cavalo e o cavaleiro. O mistério que camufla a ferrugem debaixo das minhas unhas e se apresenta - agora de um jeito a ser resolvido, que eu não posso mais escolher ignorar.

Intempérie


Foi o frio da minha barriga que conjurou o inverno
E agora choverei semanas

domingo, 7 de julho de 2024

Cativo

Teu sono ao lado me entrega a chave do meu halo das nossas algemas. Enquanto dormes, quero e posso me desvencilhar desse grilhão de ferro firme que bota… normal, atada a ti como eu quis tanto, uma das mãos da doppelganger de mim que agora precisa secar uma lágrima. Quando mais cedo viu o teu lábio fazer uso da palavra sorte, por fora concordou e por dentro parecia a moça de Psicose, só que na chuva fina. Gritava tanto. Sentia tanto medo. E precisava chorar por isso. Mas naquela hora estava de algema e precisava manter a compostura. Ainda há pouco, porém, liberta de ti acordado, eu chorei. E botei a mão na frente, entre a minha cara e o teu braço, pra te proteger da lágrima. Isso disse tanto, amor, tanto. Porque tu absorverias ela de bom grado. Me lamberia a cara inteira se eu pedisse. Já lambeu. Tens lambido há tanto tempo. Isso é o que mais me dói. Nem acordarias, o teu sono é pesado. Mas ficarias manchado. E eu não quero te manchar com essa tristeza. Por isso é que eu pus a mão. Por favor, acredita em mim, eu não quero a contaminação, estou pondo a mão e o resto na frente para que não aconteça, não quero que essa minha lágrima derreta cáustica na pele do teu abraço terno de sono e quente de afeto e de ânimo. Não quero que essa lágrima chore de anúncio se o meu coração estiver partido e partindo e eu não souber pra onde, então quando acordares vou estar com a cara seca. Quase sem fazer barulho, eu vou por de novo a algema. Vou ensaiar outra vez nossa coreografia de dedos entrelaçados pro ferro não doer na nossa carne. Já que nunca doía. Por enquanto fica dormindo mais um pouco sem saber que, nesse instante, quem está cativo é tu. Só tu. Estás cativo. E é no pior sentido.

sábado, 6 de julho de 2024

Sentimento

Te tatuei na palma da mão
Fineline
Um risquinho de nada
Pra ficar discreto
Olhando assim não dá pra dizer
Se é uma borboletinha que dá cócega
E agonia
Ou um mini dragão
Que me conduz e protege
E se parece comigo
Treme junto com o pulso que segura a chave do carro e o celular
Ora espio
Ora enclausuro em punho cerrado
Deixo preso dentro do bolso
Arde quando lavo a louça
Lavo com sabão
- porque parece muito com sujeira -
Não sai
Estou marcada feito gado
Mas é tão bonitinho de olhar
às vezes
Te assopro quando é frio
Mas te protejo enquanto soco
O travesseiro
Que intui
Aquela ideia do Chico de rabiscar corpo inteiro

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Eco [26]

Precisamos falar sobre ódio. O ódio que agora contamina todas as minhas articulações e me faz andar como um robô e me faz tremer um pouco mais a cada hora, o ódio na forma de um agitamento nervoso. Sinto ódio desta certeza que a Laura me incutiu bem na parte que não é mole do cérebro - às favas com a nomeação precisa das áreas do cérebro e suas funções(!) - de como a vida pode ser. A certeza acerca de como as coisas funcionavam no mundo dela. Teria sido muito mais fácil não tê-la tido nunca, essa certeza tão palpável que lamentavelmente não é daquelas coisas que a minha memória de peixe escolheu esquecer.
Nisso sinto que me traí, acima de qualquer coisa, se for para abrir essa porteira de falar de traição. Eu me traí, em primeiro lugar. Se penso nisso quase começo a assobiar o Canto de Ossanha pra mim mesmo, pois está tudo ali. Primeiro dizer que é e não é, e depois rimar traidor com mandinga de amor. Mas aí, se chego na parte de uma estrela aparecer na manhã de um novo amor, me derreto inteiro de novo. Lá vem a imagem da Laura, estelar, celestial, perturbar esse odiento que eu sou agora.
Acho que esse ódio vem do fato de que, um passo atrás, olhando de fora, sempre esteve evidente que eu jamais poderia ter o melhor dos dois mundos. Ou eu a engoliria para dentro do meu (todo um vórtice de piração), ou seria tragado como fumaça para o dela. E mesmo assim insisti. Queria conhecer as cavidades e pulmões, se necessário. Até o capítulo dois, no qual desejaria desconhecer tudo.
O resultado é óbvio, você sabe no que deu. Eu sou um idiota e os idiotas sempre se permitem remar saudosos para regressar à própria casa, o vale da idiotice. Eu devia ter mantido fechadas as pálpebras metafóricas que sonho implantar nos meus ouvidos. Para não ouvir nem meia palavra do que Laura tinha a dizer, aquela Iara depravada. Para tentar me blindar do choque ultrassônico que as inteligentices dela exerciam em mim.
Certo sempre esteve o puto do padre de Fleabag que, tendo se banhado um pouco nas águas da tentação e do equívoco, em vez de sucumbir em afogamento - e depois em culpa - soube dizer: It’ll pass. Teve borboletas no estômago, é claro que teve algumas, mas quase não teve o ônus efetivo que elas implicam. Vivo e morro pra saber se passou mesmo, para ele e para ela, depois daquela cena. Ou melhor: se passa mais fácil para quem sabe dizer não. Aposto que sim, mas torço que não. Porque pra mim não passa. Esse ódio não passa. E ele também é uma confissão.
Sinto que preciso me justificar sobre tanto despautério escancarado da minha parte, já que olhando em retrospectiva se pode reparar, sem lupa, que eu fui inconsequente desde o início. É que existia na época uma pseudo-otimização dos meus sentidos. A audição parecia mais precisa. Os olhos mais abertos. As papilas gustativas prontas para sorver o agridoce pela extensão da língua inteira. O tato segurando qualquer corda que ela me desse.
Lá pelo quinto encontro eu já escrevia tanto, e tão compulsivamente (só o que fazia era escrever - porque se não pusesse pra fora todo o excesso de líquido que absorvia dela eu nem conseguiria mais andar, só boiaria pela vida) que me obriguei a trocar o computador pelo papel e caneta. Para me forçar a diminuir minimamente o ritmo, já que escrevo com caneta muito mais devagar do que digito. Um alcoólatra que precisa se manter totalmente abstinente para não recair ainda é um alcoólatra, além do que parar de escrever não era uma opção, então assim pelo menos eu conseguia desenhar na beira das páginas alguma fantasia de autocontrole e moderação.
Tudo que ia para o papel parecia um rascunho mal acabado e descartável da minha versão final. Ao mesmo tempo, era a minha magnum opus. Então eu imediatamente amassava as folhas depois que terminava de escrevê-las, em diminutas bolinhas de papel - as quais, depois, ela chamou de bolinhas hiperbólicas, e escrever os dois termos juntos hoje é pra mim quase um dèjá vu - para descartar no lixo e acabar com aquilo. E já quando o braço fazia o ângulo para o arremesso eu ia ficando com muita pena de que o que tinha conseguido dizer a ela e dela se perdesse, então guardava.
No encontro seguinte, arranjava sempre um pretexto e, simulando um surto de ódio como o que realmente estou tendo agora (acho que eu sabia que ele viria e estava ensaiando), no meio de qualquer frase, jogava no corpo dela a bolinha. Batia no ombro, no peito, no cotovelo, no joelho. Indolor. Pouca violência e muita maciez envolvidas. E a ergonomia do artefato fazia rolar para longe, às vezes. Não importava. Ela corria buscar do chão, onde quer que houvesse caído, abria e lia contente, ali mesmo, onde quer que estivéssemos, o que eu tinha redigido por entre os vincos amassados. Tudo aquilo que hoje tenho ódio de ter dito.

Talvez mais tarde eu reveja aquele episódio de Fleabag como se ele fosse uma aula do Telecurso 2000.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Mami,

Ainda ontem, a pretexto de me preparar o espírito para te escrever, como fazemos sempre nos aniversários, eu fui me alimentar de Pequenas Ervilhas e Nêsperas.
Faz quase dez anos que tu não postas nada ali. Eu sei que ninguém mais acessa blog hoje em dia. Talvez - e pra mim sei que essa verdade é maior do que pra ti - ninguém acessasse muito já naquela época, mas ainda assim nós seguimos (tu, por muitos outros meios) firmes paladinas da certeza de que não há nada mais eloquente do que um bom textão. Deve ser em razão dessa máxima que nos exibimos assim, por escrito, para quem quiser prestar atenção, há tantos anos.
Tinha muito da Adélia ali no Ervilhas, tia. Tu sabes. E de fome, claro. Temos sempre aquela fome da Adélia, acho que por isso é que escrevemos, e acho que internamente é por isso que elegeste para tua primeira vitrine de palavras esse nome de comidas. Para que quem tivesse fome, como nós, ou quisesse prestar atenção, dando-nos faca e queijo, o que também queríamos, ainda que menos que a fome, pudesse entrar e se servir num banquete sem pedir licença. É ela - a Adélia - quem bate as palmas para te chamar para vir à porta da casa das letras em absoluta literatura, concorda? Sempre tive certeza.
Vasculhando, já na primeira página encontrei uma citação do Cortázar, e nessa te repetias, duas vezes num curto espaço entre os meses. Aquela das tartarugas e cronópios. Essa coincidência me alegrou, porque sempre nos desenhamos andorinhas em textões, exatamente como me alegrou a resposta ao e-mail que te mandei sobre as recaídas quando estavas em Portugal: pero nosotros, tía, ¿cómo haremos? Recairemos sempre, e será brincando de amarelinha com as palavras, como crianças que estão aprendendo a letra cursiva.
E, por falar em juventude, parecia ter nos teus escritos uma visagem da Clarice fumando (por que ela também não usava um grampo de roupas para não amarelar as pontas dos dedos? que ideia gênia) naquela sessão de fotos famosa. Umas três poses diferentes. Ela bem nova, não fossem os traços tão característicos nem a reconheceríamos. Uma cara matreira. Mas levemente entediada. Não ainda uma escritora famosa, só os ares de musa subversiva. Um vir a ser. Quem via não podia dizer o quanto é perturbada, mas quando estava muito, cortava os cabelos. Nisso uma coisa meio Fernanda Young, mas autografada por ti mesma: Dona Ervilha. Que nunca fica triste, só está cansada.
Sempre admirei esse caleidoscópio de fontes de referências que veio de ti. Tanto a ponto de só me enxergar através dele. Mais cedo ou mais tarde isso pode me trazer problemas. Tudo que arranho na escrita é um pouco para me parecer com aquela Carmen do Ervilhas, que também é a Carmensita do Devendra, a quem brindamos hoje. A ponto de eu achar que ainda te imito um pouco, e eu espero que a essa altura tu já vejas isso como lisonjeiro. Como se diz das sete notas musicais para justificar os plágios, todos têm as mesmas 23 - ou 26, se quiser enfeitar ou dar uma de bilíngue, não é o nosso caso - letras do alfabeto para escrever. Mas nem todo mundo escreve como tu. Nisso é que te saúdo. Nem todo mundo tem essa capacidade de engendrar nos textos o comercial e também o poético, como quem tece ziguezagueando. Para ti parece fácil puxar o fio desse novelo emaranhado e costurar de novo um tecido esgarçado.
Antes que me esqueça ou me perca nas figuras de linguagem: te relendo lá pensei que é engraçado como a gente nunca sabe que está no auge, mas de alguma forma sempre está. Tem ali (tem, no presente, porque o que é escrito sempre resiste) um pouco de tudo que eu sou hoje. A mãe me ensinou a escrever, esse mérito é dela, mas foi tu quem me ensinou com o exemplo para que serve escrever. A respirar ou suspirar por escrito. Me ensinou a exibir - estou um pouco fixa nessa ideia hoje - o cozido ou o cru, por escrito, dando ao leitor o benefício da interpretação. Ou do deleite.
Um texto da primeira página me chamou mais a atenção. Primeiro porque não usavas "ou" no título - sempre anunciando que tens uma dúvida, como te é costume até hoje -, segundo porque tinhas praticamente a minha idade quando escreveu, mas terceiro e principalmente porque o título era: Para dor de barriga, olina. Para o resto, o tempo. Te lembras? Ontem me caiu como uma luva. Vou terminar te homenageando bem previsível, com as tuas próprias palavras, porque em dias como hoje é bom a gente se lembrar quem é, no que tem de melhor.
Começavas com: "Daí vem a vida e empurra as certezas e as dúvidas e muda o cenário. O que era certo como feijão com arroz fica com gosto de figo. Dá uma confusão nos sentidos. Daí vem a vida e os seus novos motivos". E terminavas assim: "Só não sabia que iria me reinventar agora. De graça. No pulo. É a ação do tempo, moldando cada semeadura. Oxalá que não tenha estiagem até vir o broto. Sou eu mesma quem vai pegar a cesta para colher o fruto. Eu volto para dar notícia. Precisava dizer tudo isso sem revelar o gosto que a coisa tem quando ela ainda não terminou. Mas para todo o resto, o tempo".
Tempo, tia. Sempre ele. Deixando nos reinventarmos e recairmos muitas vezes. Feliz aniversário, mas o que mais quero dizer agora é: feliz tempo pra ti.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Jogo de azar

"A arte é uma rede de comunicações no tempo.
Há subestações de alta potência:
Homero, Dante, Shakespeare, Bach, Goya...
E há fiações, fusíveis, parafusos, isolantes,
singelos e indispensáveis".
(Paulo Mendes Campos)


Se a arte fosse só uma rede de comunicações atravessando distâncias temporais não haveria essa obstinação de, pela eventualidade, contestar verso por verso - e para ontem - antes mesmo do fim dos dias úteis. Porque pouco importaria que a informação tardasse. A arte não só comunica. Faz melhor: diverte. Tangencia. Alimenta a compulsão. Vende a chance. Está em todo lugar. A arte é antes uma rede de cassinos, onde os mais adictos se escondem sob o pretexto de se comunicarem. Ou seria só esse parafusinho - a menos - que falta para finalmente nos teletransportarmos. Ou talvez a peneira - um pequeno filtro - sem a qual o que é feio e sujo e denso rapidamente entupiria os canos que garantem o bom funcionamento e fluência do mecanismo. Enquanto o brilho de metal antigo das esquadrias embota aos muitos, nada conserva o mesmo verniz de novidade e agitação que tem uma boa aposta. Desfeitos os vidros - ou janelas - destes cassinos na agonia de se publicar sem rascunho, não há muito mais o que fazer que se expor, viciados. Com pressa, ao relento, ignorando o sereno. Arriscando alto, até a escritura da casa - onde vive a família - em troca de todas as fichas, para tentar outro all-in. É deste outro tipo de jogo de azar que ofereço.

Eles passam e a gente fica

Quando abriu a porta pra se certificar de que eu já não estivesse chorando compulsivamente como no dia anterior, no tom mais complacente que conhece, fez uma pausa, deu meio sorriso e disse: "Eles passam... e a gente fica". Usou o tom de um provérbio. Era uma versão muito mais provinciana e rústica do passarão e passarinho de Quintana, mas suspeito que quis ser autoral para transparecer no gesto uma identificação das mais simplórias, e também das mais empáticas. Uma identificação genuína comigo, que agora desafiava todas as nossas tantas discordâncias. Fez para me dar ainda mais razão, como se razão fosse coisa que possa ser dada.
Afiada, eu quis muito responder que, quando corporativo é tudo que um ambiente não é, a gente fica e eles também. Mas o peso daquela igualdade temporária de condições que ele estabeleceu entre nós me fez gravitar um minuto ou dois em silêncio ao redor da frase que ficou suspensa no ar. Naquele aforismo cabia o excesso da gentileza que vinha me faltando. Acho que foi por isso que me concentrei em absorvê-la, feito esponja, para me reidratar. Imediatamente e, como se isso fosse da minha natureza, sem retorquir. A frase punha um sujeito informal mais ou menos definido - a gente - de novo e simbolicamente de pé, lado a lado. Do mesmo lado: o dos que ficam, apesar dos pesares todos.
Quando me olhou fundo nos olhos porta adentro, eu deveria ter imaginado que sairia com mais uma das suas pílulas genéricas de sabedoria. Só não poderia imaginar que fosse essa, que se propagaria no meu imaginário e alargaria o próprio alcance para além dos contornos objetivos nos quais foi ditaA vantagem de um provérbio simplificado é caber em vários contextos. Ele com certeza não fez essa conta quando me disse - mas eu, sim.
Na minha realidade, eu sabia reorganizar nós e eles nesta frase quantas vezes fosse necessário. E quem eu gostaria que passasse e quem eu gostaria que ficasse, também. Infelizmente. Das minhas portas pra dentro, a depender dos novos arranjos mentais, a máxima inclusive poderia não me dar conforto. Eles passam - caminham tão perto de nós, há tanto tempo, e continuam, ingênuos, atravessando a vida sem suspeitar com exatidão do que realmente nos move e comove. A gente fica. Porque se demora e se detém nos resíduos que se espalham por detrás das coisas grandes, nas sobras, na inspiração, no que realmente nos importa, lambendo as últimas gotas do que parece um elixir sagrado que prolonga a vida para muito além dos compromissos da agenda.
Teria sido tão terno se desconfiasse que eu tenho usado o gás dele para, tantas vezes, cozinhar em fogo lento as outras possibilidades? Se soubesse que pra mim o que mais tem importado agora são os outros assuntos que eu ainda quero ter que não a réplica de amanhã? Que eu tenho querido mais estas doses de bálsamo no meio dos dias do que os dias. Que eu tenho me lembrado que talvez custe mais do que eu queira pagar esse abrir mão de sonhar em prol de sobreviver.
Ainda que tomasse conhecimento, sei que ele não tinha muito mais para fazer. E que, se tivesse, assim como eu, não faria. Se apegaria de novo ao bonito de ficar. Talvez tenha sido isso que quis me confessar quando, com uma frase e só, me convocou para fazer parte do seu manifesto da permanência. Eu me conformo pensando que do erro podem nascer coisas muito bonitas, como os vinte e seis "I know"s de Bill Withers. Eu sei, eu sei, eu sei, repito vezes suficientes para espancar a dúvida: eles passam e a gente fica. Torcendo que os dias diluam a intensidade. Ou à espera de outro deus ex machina capaz de nos salvar.