terça-feira, 5 de maio de 2020

Um pouco de pressa

Passo a ponta do dedo no canto da boca pra lembrar que tenho boca, já que falar e beber ainda é mecânico. Vou atravessando uma extremidade à outra, sentindo o áspero de uma ponta de pele que mordi anteontem e agora está seca. Tenho procurado distrações dessa ordem. Individuais. Óbvias e um pouco inofensivas. Tenho estado distraída por necessidade, como os vigilantes dos filmes nos quais o mocinho precisa adulterar as câmeras de segurança num piscar de olhos, para completar o golpe de mestre. Eu tenho procurado me ocupar do mundo com ansiedade de consumir um pensamento inquisidor que me queime na fogueira. Tenho esquecido que não adianta mais ensaiar respostas. Nem ecoar gemidos. Procuro agora gritos de socorro pra atender, mas não faço nenhum barulho pra pedir ajuda. Não tomo iniciativa. Não reivindico os direitos da minha condição. Faço de conta que sou um livro aberto. Sendo as páginas como pernas que dão passos e se dobram, mas já não se abrem. A mão agora é minha. Evito pensar no atrito entre a minha maciez e a barba. Economizo imaginar tudo que ainda funcionaria de nós. Em tudo que se puxa, como gatilho. Em tudo que se testa da primeira vez. Na saliva amarga e molhada do início do dia e na ponta do polegar segurando o rosto pra que os outros dedos encontrem o pescoço. E depois a nuca. E depois um pouco de pressa. O sexo nunca devolveu as minhas respostas. Mas se eu jamais encontrá-las, perdê-lo é um desperdício.

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