domingo, 3 de maio de 2020

Selfie

Abro a geladeira. Depois a caixa de ovos. Por que será que é tão mais fácil e fluido se amar inteira quando há alguém ao lado validando o fato de sermos amáveis? Por que será que agora sobra tanto tempo pra reparar nesse único pelo crescendo do dedão do pé esquerdo, nas coxas meio moles do lado de dentro, no formato torto da sobrancelha e do queixo, no quanto o meu joelho dói se cruzo as pernas sentada no sofá? E quando faço silêncio reparando em coisas similares sobre o meu lado de dentro, as pessoas estranham. Habituaram à versão que dá bom dia sorridente, bem resolvida e meio motivacional. Devem pensar que sou constante. Praticamente feita de plumas. Como se essa versão introspectiva não fosse eu o tempo todo, disputando lugar com aquela outra. Que me adiantaria que qualquer um notasse que é sempre um duelo conflituoso? Quebro um ovo dentro do liquidificador. Depois o outro. Fecho a geladeira. Do que foi mesmo que me esqueci estando acompanhada? Do que foi mesmo que eu nos protegi me afastando? Ah, lembrei. De mim. Dessa que sempre tumultua a cabeça alheia ou se entedia fácil. Agora um pedaço de cebola. A receita não diz qual o tamanho do pedaço. Talvez a receita não funcione pra mim. Sei o que sempre me acontece no capítulo dois. Qual foi, maluca!? This is not a rocket science. Corto uma beirada. Um terço de uma cebola média. Tiro a casca. Jogo junto com a mistura espessa de gemas e claras cruas. Respinga um pouco pelas bordas. A minha cabeça tenta, mas não descansa um segundo desse escrutínio de si mesma nem enquanto eu cozinho. Estou trabalhando agora numa análise minuciosa e cansativa do que eu fui e do que serei, a longo prazo, se continuar repetindo este comportamento de ir embora sem olhar pra trás. Existe nela um ruído constante como o deste eletrodoméstico à minha frente, que gira rápido as coisas se eu aperto o botão. Sendo o botão da minha cabeça qualquer fração de silêncio. Sei que eu não digeriria cada ingrediente separado, nem se eu quisesse. Colho a salsinha. Cebolinha não tem. Manjericão vai um ramo inteiro com talo, porque estou com preguiça de separar só as folhas. Talvez essa vontade que me veio de ser vista e curtida por dentro justifique, de algum modo, a recente superexposição. Mas quero ser vista assim por quem? Eu estou me contradizendo? No fundo espero ansiosa ser salva das minhas certezas? Talvez tenha a ver com a validação externa para enfrentar tanta autocrítica: procurar ajuda pra me convencer de que está tudo bem em ter essa cara e esse corpo e essa confusão. Sobretudo essa confusão. De novo o liquidificador aberto. Sal temperado. Depois o óleo. Imagino comer esse tanto às colheradas e me dá um pouco de náusea, mas vou azeitando a mistura até ganhar consistência. E pronto. Consegui. É possível que nunca encontre as grandes respostas da minha humanidade, mas pelo menos agora tenho um pouco de maionese caseira. É só o que está ao meu alcance pra que tudo não insosse.

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