segunda-feira, 7 de abril de 2025

Zeitgeist

Sou uma Lila às avessas, você sabe: eu quero escrever para durar além de mim e não passar batido. Voltar e ler a captura de um momento exato em que tudo pareceu mais leve porque você estava. Você
que já me enxergava antes de eu estar totalmente a descoberto. Você que desvia de todos os caminhos da presunção e admira a poesia concreta. Contida não em palavras e sim nas escolhas, nas certezas, nas constâncias, nos gestos. Nosso amor é esse livro que escolhemos ler antes dos outros apesar de todas as bibliotecas que por isso permanecerão intocadas. Amar você me orienta. Arrisco em dizer que me orienta até mais quando é difícil. Porque talvez a maior lição da minha vida seja aprender a persistir
no acerto
até quando ele me desconforta. E você é um acerto dos grandes. Um equilíbrio de doçura e dureza, mas sobretudo de disponibilidade e cuidado com o que é frágil de mim. Se minha boca adormece, meu coração palpita ou minha náusea embrulha, num gesto íntimo você me desculpa pelo trabalho que eu dou ao trocarmos a direção me dizendo: Ana, a ansiedade é um zeitgeist.
E sei que porque eu caminho contigo às vezes sinto essa impressão de que estou a salvo. Que só divergimos no superficial e que concordamos no fundamental. E isso é tão raro, amor. Atravessar a vida com essa certeza é de uma raridade raríssima, pleonástica, superlativa, e você me empresta ela um pouco mais a cada vez que fazemos o caminho de volta para os braços um do outro depois das dúvidas e dos problemas que até então não tínhamos.
Você me alcança com palavras que nunca tinham tocado antes: diz “progressivo”; “psicodélico”; “experimental”; e eu me alegro de pensar no quanto ainda tenho para ser descoberto, e me dá também uma vaidade alegre imaginar as coisas que te alcancei e apresentei primeiro, por menores que sejam, e aí esta outra coisa a que se pode chamar um encontro ganha contornos de mistério em como por que é que eu encostei no pendrive de um cabeludo tímido na frente do bar e perguntei: o que é isso? E ri ainda sem saber ali que depois nossas vidas seriam entrelaçadas tão significativamente.
Você me toca. Ser tocada por ti me comove. Te enxergar inteiro é um exercício que vai durar pra mim. Como durarão também estas declarações de amor: um retrato fiel do que a gente é capaz de fazer enquanto o mundo lá fora pode nos torcer, caótico, e estar prestes a explodir em calor, guerra ou crenças mirabolantes. Tendo a difícil paciência mansa de se amar com insistência, se encaixar até caber, entregar tudo, curar onde dói.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Coca Zero


A diarista dizendo que ela quer sim frequentar o colégio por nove anos seguidos na próxima encarnação porque nessa não deu
A caixa do supermercado curiosa com os produtos que lhe chegam para bipar
O ranho que escorre do nariz mesmo chorando bonito
O ciclo da água, os rios voadores e o funcionamento da bomba biótica (pifando
A Linha do Equador batizada antes do país pois é um Circulus aequator diei et noctis
O órgão de uma pessoa que vive dentro de outra quando transplantado
A mulher que revira a Bíblia até encontrar um nome próprio exótico para dar ao filho sem saber pronunciá-lo
O filho no colégio, indignado, virando um cientista ateu
A vinheta da Globo que há muito nos avisa que o futuro já começou
Esta madeira frágil que pregamos na entrada da toca do coelho de Alice

Um saber que vira hábito
O hábito que vira costume
O costume que vira terça-feira
As terças-feiras que são sempre as mesmas
Poderiam bem não ser
E ter outro gosto

Não escrevo mais para saber onde vai dar, senão para dar em algo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Mestre mandou

Há dois dias eu tomo um copo d'água em jejum porque me mandaram. A água de tacada só me repugna como se o estômago lutasse contra. Vez ou outra eu sei que a água da manhã vai ser a água que sobrou da noite quando não acordei nenhuma vez com a garganta seca de respirar pela boca. Uma água-ambiente, com a energia dos meus pesadelos e tudo. Eu acho até que sempre tive sede quando acordo mas jamais me ocorreria — sem que mandassem, agora me mandaram — despejar 200ml de nada em líquido em jejum pra dentro só pra lubrificar as engrenagens do fígado ou do intestino, preparando terreno.
Só depois uma receita: ou a que finge ser pão de queijo, ou dois ovos em qualquer textura já que são ricos em proteínas (mas sem o tempero pronto cheio de glutamato, hein?). E pão agora só se for aquele com o nome que parece saído de uma missa católica, que o outro é quase um pecado capital. E chia. Gergelim eu me recuso, que eu não sou passarinho pra comer alpiste, então a loja de produtos naturais pela primeira vez me ouviu dizer meio tímida: e chia, tens? Sim, quero chia e chá de cavalinha. Também aquele novo do Harry Potter: Chia & a espinheira santa. Quanto de chia? Ah, muita chia, querida. Chia de balde. Chia no crédito. Chia parcelada em vezes. Chiar tá liberado, para a sorte das panelas de pressão.
Na hora de me servir pro almoço eu volto, meio envergonhada e meio prudente, a abrir a pasta de documentos onde estão as folhas timbradas, carimbadas e rubricadas com todas as minuciosas recomendações de quem paguei pra que acreditasse em mim e nos meus progressos e, por que não dizer, na minha mudança radical à base de fiscalização. Vou conferir quanto era mesmo que eu devia comer de carboidrato, quais folhas verdes seguirei negligenciando porque não fui ao mercado ou acho o gosto muito amargo (só não mais que esse café necessariamente preto porque leite vegetal está pela hora da morte) e qual é mesmo, afinal, o tamanho de uma colher-de-servir? Deve ser essa, eu não tenho outra aqui em casa.
Fim da tarde a maçã na temperatura de geladeira acompanha as o-le-a-gi-no-sas. Parece nome de infecção de IST, percebe? Mas é só um punhado de castanhas mistas que se rompem num crec crec entre os dentes com a pecha de gordura boa no meio do dia. Creio eu que se potencializam. Os ovinhos de codorna eu gosto mais, mas ainda não tentei porque passá-los em água corrente antes de por na boca parece um ultraje a todas as tradições milenares da conserva. Fora o cheiro de lancheira.
A tal versão Orgulho da Nutri, fadada a não durar pra ninguém desde que o mundo é mundo, porque o que dura mesmo é o costume, talvez me ensine pelo menos a ser naturalmente(?!) um pouco mais obediente. A fazer o certo mesmo querendo fazer errado. A temer a mão firme das calorias da tabela nutricional pesando sobre a minha cabeça, apertando o resto do corpo e as recentes dobras de IMC 30+, se fizer a conta da bioimpedância. Disciplina? Agora só se for cozida só no sal ou grelhada com um fiozinho de nada de azeite de oliva. Ou polvilhada com um pouco de farelo integral, que é pra dar uma variada.
Como então eu poderia contar à moça magra tão sorridente e tão saudável do outro lado da mesa a minha verdade suprema do sugar high? Esporádicos cookies de nutella fazem mais por mim que muita gente do meu cotidiano. Às vezes o açúcar deles me desencadeia um mini episódio de mania que dura minutos. Minutos pleníssimos de significado. Olhando daqui talvez ela só finja que não sabe, para ficar bem na personagem, mas eu vou fingir que acredito no exemplo e assim seguimos o nosso ciclo de repetir a falsidade até que se torne verdadeira.
Ensaiei um elogio para os miúdos que já têm isso por hábito desde que nasceram mas ficou muito pesado no ar o fato de que lá em casa a base de todas as refeições, todas mesmo, não era um terço de hortaliça (a que sou negada), e sim nata. Sempre foi nata. Nata de potinho. Uns dois potinhos por semana. O slogan do cheff, pintado à mão na cerâmica dos pratos fartos de friturinhas em óleo de soja, dizia (e ainda diz): Taca-lhe Graxa. No subtexto, arredondado: "a gastrite depois a gente vê".
O exercício de ter que segurar fixas as pelotas dos olhos ao ouvir o adjetivo "integrativa" na mesma frase que as palavras "desinflamação do corpo" deve ser um ritual de entrada nesta missão atroz a que me submeti fundindo a crença em um pouco mais de saúde com o poder avassalador — e mendigo, miserável, sofredor, um coitado invisível — do novo hábito.
Afinal de contas que argumentos científicos eu tenho contra o fato de que somos os únicos animais que bebem leite depois de adultos e ainda nem é da nossa própria mãe, e ainda nem é da nossa própria espécie, e além disso os bezerros foram fabricados com umas bactérias para digerir e nós somos fabricados sem, etcetera? Nenhum, nenhum mesmo. Eu só tenho o apreço pelos derivados e um sonho.
Quer dizer, agora tenho também o inferno que eu fui buscar com as próprias pernas naquele consultório: a obrigação de me provar que se eu quiser mudar, eu posso. Vou ter que apagar o Taca-lhe Graxa da louça toda sabe-se lá com que produto químico e pintar no lugar: Foco no plano.
Hoje já foi um litro e meio.
Carrego a garrafa como o alcoólico anônimo carregaria uma medalha que diz: e já faz dois dias.
Entrarei no carro para fazer roncar o motor silencioso no caminho para a academia sem roncar mais, em borborigmos, aquele estômago de capivara raivosa que eu tinha antes. O Mick Jagger — com sua dieta excêntrica de famoso — me embalará, compadecido e meio sexy, repetindo muitas vezes, no timbre carregado de solidariedade: Old Habits Die Hard.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Saúde

combinei comigo de fazer
oitentativas
de equilíbrio
sem ser oito
outentar
denovo

sexta-feira, 28 de março de 2025

Carta de exílio

Selma, por que é que eu venho me pegando com os pés tão contraídos, mesmo fora dos sapatos? Na cama, à noite, todos os dedos duros e virados para dentro contra o lençol e o colchão, como se a saúde das minhas unhas dependesse disso. Se meu dedos pudessem, te juro, eles encravariam para dentro das solas, só não fazem porque não alcançam. A mandíbula, então, nem se fala. Vive de um jeito que parece segurar uma faca entre os lábios como último escudo de proteção para que a lâmina mais afiada de todas não me corte a língua.
Eu não quero ter crise de ansiedade nunca mais, Selma. Naquele dia pode ter sido uma queda de pressão, claro que pode, pode ter sido a ressaca ou a privação de sono, podem ter sido o trânsito e o calor do carro preto debaixo do sol quente. Continua assustador ser tão frágil. Eu não aguento mais ter estes momentos em que sou feita de gato e sapato por mim mesma.
Tudo acontece dentro. E depois, passa uma semana ou duas, eu vivo bem de novo, como se nada tivesse acontecido. Dá pra crer? Não é que eu quero que o episódio dure mais, não é isso, vê se me entende, ninguém bem certo da cabeça ia querer que uma coisa tão ruim durasse, mas sendo as coisas como são a ansiedade me escapa fácil. E ilesa. Eu nunca consigo pô-la no microscópio para analisar bem do que é feita. E tudo que mais me angustia no mundo é feito dessa matéria etérea. Uma matéria que não consigo estudar para ficar especialista. Na qual finalmente reprovarei sem apelo ao conselho de classe nem recuperação, nota zero, vamos repetir este ano e ver se agora você aprende.
Minhas angústias mais graves são estas pedras sagradas nas quais não posso pisar por muito tempo - ou porque são lisas, ou porque afundam, ou porque parece que meus dedos vão se quebrar só de tocá-las, que pedra com pedra a gente sabe que pode dar nisso.
Se eu passasse a mão no telefone e te contasse na hora pareceria o que é: um episódio de muito descontrole físico e mental. As sirenes soando com luzes que piscam todas juntas e a banda dos por quês que não para de tocar bumbo bem desafinadamente na boca do meu estômago. Então guardo para administrar depois. Administro como posso. Choro e “passa”. A ressaca do momento de aperto dura uns dias. E quando eu chego aí já passou. Omito a gravidade. Quase esqueço do tamanho. Posso escrever, claro que posso, mas dizer é um pouco longe de sentir. Escrever fica no campo das organizações. E uma crise de ansiedade, Selma, só o que não é, é organizada.
Pensando bem, que alegria é me esquecer um tanto (que se eu ficasse em estado perene de ansiedade ou só de lembrança vívida daquele momento, que seja, eu acho que me internava à vera no Cruzeiro por uns 30 dias).
A resistência em ser medicada é para tentar não ser exilada também do bom de mim. Não quero fugir da vida, seja lá o preço que me cobre. Isso é uma coisa mais bonita de se dizer no papel do que no meio de uma crise de ansiedade. Ainda assim. Não quero “estabilizar” o humor se em troca eu for ganhar uma mansidão apática que me deixe anedônica. Só que no fundo, Selma, um pouco apática eu já me sinto. E outro pouco eu tenho estes dedos cravados e travados contra a cama. Não sei se você me entende. Eu queria mesmo era uma vacina. Ficar imune. Será que o Joaquim não me arruma uma com aquele amigo médico? Se conseguir me avisa que eu te deposito os trocados para ressarcir. Dá um beijo nas crianças e avisa que eu vou chegar dia 07 no ônibus das 5. Agora falta pouco. Estou ansiosa para te rever. Parece mentira.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Melaleuca


Ouvir uma verdade enquanto se vive uma potencial mentira pode ser devastador. A verdade entra no ouvido direito, arde os miolos bem onde dói e procura atordoada a saída por outro buraco desse labirinto de ossos, carninhas moles, cartilagens, fluidos e cérebro. Parece não haver espaço para que percorra — a verdade parece três vezes maior enquanto se acotovela pelos corredores da cabeça da gente a duzentos por hora sem poder voltar por onde entrou. 
É assim, a verdade traz a mesma pressão craniana que a de um espirro trancado. Parece que vai nos carregar junto, nós e nossas inconsistências morais. Nós e cada partícula de negação assentada como dogma bem no meio do juízo. Nós e a construção. Nós e o assoalho antigo que a arquiteta mandou arrancar para ficar moderno. Nós e esses casacos pesados roídos de traça que ainda estão bons pra usar em casa porque imagina quem não tem nem um desse. Nós e esses móveis que ainda se organizam como se organizavam as mentiras que não eram mentiras quando foram dispostas assim, estáticas, nestes cômodos.
Tantas vezes guardei no fundo de um armário empoeirado a versão de mim que me daria mais trabalho no manejo, acho que entendo, eu juro. Acho que entendo. Quanta vergonha teria evitado nesta vida se aquele paninho puído estivesse encobrindo o espelho pra que eu não visse qualquer verdade entrar e zunir. Aí então conseguiria disfarçar bem. Sem precisar ajustar a pupila pra ver a beleza no caminho da sombra. E depois o risco de afogar sem boia. Ou o tombo sem rodinha na bicicleta.
Apita o timing do relógio e da constância. Essa impressão de já ter passado o tempo do desatino. Esse braço enganchado no certo da vida como um pilar, um fraio, um mastro, como se alguma coisa nessa vida fosse cem por cento certa se a gente planejar bem, para não ter que ver se alcança o que pode vir depois tendo que dar um salto de fé. Ou de coragem.

Deixa a verdade pros jovens.
Eu vou amassar um pacote de calaboquitos e depois deitar em paz com os farelos.

Tara

É o peso que as coisas têm
só de existirem

ou

É o preço que as coisas não têm
só de existirem?

quarta-feira, 26 de março de 2025

Tome notas - sabor limão

Faixa dupla

O tempo
de dono
de caminhonete
vale sempre mais
que o tempo da gente 


***

Minha cama é box
Descabe assombração no baú
Pero pies cubiertos
Que las hay, las hay


***

Dia cinza
Me drena energia
Quand’outono volta
‘inda não soube ser urso

Nuvens
em cima da cabeça
Não me deixam
com a cuca fresca


***

Meu saco
de guardar vergonhas
Às vezes fura
E esparrama
Pelo chão


***

Depois de tanta objeção
As coisas ainda estão
Como são


***

Contrariada
Ela é péssima


***
Desinvestir.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Tratar aqui 2: a inimiga agora é a mesma

Estaciono o carro pontualmente às 19h02. Elegantemente atrasada. Apenas dois minutos. A anterior acaba de sair do prédio. A seguinte sou eu. Verônica sorri na porta como quem diz bem-vinda de volta. Complacente. Os cabelos presos. Um rabo baixo. Moda modesta. Despontam do cocuruto uns fios brancos muito hidratados. Pontual como sempre. Pronta a me receber. No corredor iluminado, última sala à… direita, Verônica? É oposta da que eu me lembrava. Ah, sim, faz ano e meio que não venho aqui, guria, é verdade. Quanto tempo. Vais ter trabalho, heheheh. Que bonito ficou esse novo espaço, heheheh. A meia-luz ainda é a mesma. A lâmpada quente e o ventilador, como de castigo, disputando quem fica mais virado para a parede. Depois da enchente não tem mais o papel colado com desenho de bambu. Reformaram? Tá tudo com cara de novo mesmo, heheheh. O cheiro ainda é igual. Álcool. Cânfora. Arnica. Limpo e enjoado. O teto e o chão igualmente brancos. Mais assépticos do que eu me lembrava. A Verônica vai passando a mão embebida de álcool diretamente na maca com uma precisão de quem já fez isso quatrocentas e oitenta e duas mil vezes só hoje. Como se a mão fosse um pano. Como se os panos fossem todos dispensáveis aqui. Cacete. Fui mais rápida do que devia. Já estou só de calcinha. Ameaço esconder os peitos com as mãos. Ao menos enquanto ela termina os procedimentos de limpeza. Logo me lembro que foi Verônica quem drenou o inchaço do silicone e passa. Ô, vá lá, já me viu pior. Meus mamilos teimam apontar tímidos como se, como eu, talvez devessem olhar um pouco para baixo sem conseguir. Sinto um calafrio de constrangimento que dura dois segundos. É o tempo de me lembrar que o número da Verônica é a melhor herança que João me deixou. E ainda cobra barato. Ainda fala só o estritamente necessário. À exceção da vez que passou a sessão inteira falando da igreja porque devo ter sido educada a ponto de parecer interessada ou merecia ser convertida. Ainda me dá vontade de rir só de pensar que a pessoa mais carola que eu conheço no mundo também é a que mais vê gente pelada por minuto redondo. E ainda fica esfregando. Enfim sós. Eu ali em pé quase nua e a Verônica alisando a maca. Ela faz uma gracinha pra quebrar o gelo. A persiana fechada me blinda da janela indiscreta da Receita. Antes era virada pra um escritório. Antes era lá perto da Casan. Não que alguma vez a cortina estivesse aberta, mas sempre penso e se estivesse. Amaldiçoo em silêncio ter me despido rápido demais. Isso e o bolinho de carne de meia hora antes. Ela veste apressada um lençol descartável e muito fino de TNT na maca. Estende a toalha de rosto. Intuo que lavada duzentas vezes, com cloro. Áspera como de motel. Talvez pela mesma razão. Tem gente que prefere sem, ela diz. Eu não duvido. Nem me atrevo, Verônica, em negar essa esfoliação facial a seco oferecida de brinde. Subo descalça torcendo pra saírem os farelos de sandália do pé do dia inteiro nos dois degraus de madeira improvisados. Deito de bruços. E ali já sei que aquele bolinho ou o aipim de mais cedo me traíram na digestão. Só que agora só posso esperar um show de fogos ou um show de horror. Que não me espera. Acomodo a cara nesse grande donut encapado com a pequena lixa branca em formato de toalha. Álcool na mão. Álcool nos pés. Com algodão dessa vez. Ela tem método. O profissionalismo da Verônica exala do avental. Espio com metade de um ângulo um trabalhado no piso de cerâmica da sala. Metade de cada olho afofado nessa borda da maca. Cabelo preso. Não posso mais me mover. Verônica começa a operar seu milagre. Primeiro apóia duas mãos mornas, encremadas e lisas nas minhas costas e me balança curtinho como se ninando um neném. Um ritual. Não encontro meios tampouco circunstâncias para dizer que não não não pare com isso se o combinado era hora marcada para que sim sim sim e eu ainda vou pagar no fim. Sinto um calafrio que nasce do umbigo. Rapidamente desce para o ventre agora bastante esmagado contra o peso do meu corpo todo. A tração adicional do antebraço inteiro da Verônica sovando firme as minhas costas mais o peso da tensão. Logo eu que tinha receio das costas esfarelarem. Agora o medo é outro. E eu penso em dizer pare de uma vez por todas eu não vou suportar. E eu respiro fundo e aí penso que assim o ar vai se reorganizar com ainda menos espaço então eu devia era estar soprando. E eu contraio os esfíncteres e com eles os glúteos. Tão firme que ela me diz relaxa. E eu reclamo tímida que meus dedos do pé estão formigando e aí ela diz devo ter liberado um ponto perto do nervo este lado está mais difícil que do outro mas agora falta pouco. E de todas as tantas coisas que o meu corpo pode entregar e a quem (farelo lágrima muco cera leite sangue gozo suor e suor frio), um peido à Verônica nunca esteve nos meus planos. Tipo não mesmo. Em tempos de curandeiros e osteopatas, Verônica segue séria, firme e íntegra. Raiz. Não promete o que não cumpre. Sem placa na porta. A salinha alugada e a agenda cheia. Tudo no boca a boca. Tem nem Instagram. Atendimento VIP. Fora o que ela gasta em álcool. E tempo. E creme de cânfora e arnica. E cloro. Ela não merece isso. Rearranjo a cara outra vez contra a donutoalha como se o desconforto fosse mesmo esse e ela me diz quer um travesseirinho querida e eu digo não não, não precisa, enquanto penso que se for um peido mínimo pode que eu já tenha até soltado sem saber porque pra dentro é que ele não ia com esse apertamento todo que ela está me fazendo. E aimeudeuuuus se eu já tiver soltado sem perceber porque estou com a cara virada para o outro lado e talvez não tenha sentido. Minha nossa os que não fazem barulho são os que mais fedem o que é que eu vou fazer agora se tiver saído mas claro que não saiu ou eu saberia minha nossa como eu odeio ser louca. Tinha aquele colega da síndrome do intestino irritável que soltava a descarga um milissegundo depois de entrar no banheiro e aí pensava que disfarçava mas tinha barulho de descarga e de peido juntos na repartição e repartição é um nome engraçado para chamar a coisa pública onde às vezes muitas pessoas trabalham juntas sem divisórias exceto nos sanitários e aí eu penso detidamente na bunda. A bunda das pessoas. A minha bunda. A da Verônica. Este mecanismo feito para soltar e contrair coisas mas vento não, vento pode escapar se a gente é apertado onde não deve ou segura demais ou tem crise de riso. Logo eu que tenho um vasto histórico com isso que não me cheira nada bem vai mais oitocentos anos de terapia até chegar lá seja o que Freud quiser na fase em que ele quiser falar disso eu empaquei metaforicamente bem antes. E então me lembro de todas as histórias de peido possíveis e imagináveis e sinto vontade de rir mas não posso porque rir piora a vontade de peidar. E rezo a Deus, e prometo uma promessa, afinal estamos todos na quaresma, afinal estou na presença da beata Verônica, e no final rezo a mim mesma, e ao meu intestino, e rezo ao próprio peido para que não se esvaia em vapor e apelo a tudo de mais sagrado que eventualmente possa evitar esse constrangimento estrondoso e iminente que seria eu soltar um peido nessa sala tão bonita, privada e limpa. E que cheiro terá o meu peido misturado com esta arnica, jesusamado, só o capeta é que pode prever. E essa é a ideia mais insuportável entre todas. E então eu traço um plano de fuga e penso em sair correndo, agarrar apenas a blusa e a calça do cabideiro se conseguir, acomodá-las debaixo do meu sovaco esquerdo enquanto a mão direita avança contra o trinco da porta e aimeudeuuus se estiver trancada deve estar e as roupas ainda debaixo do meu sovaco eu pelada enquanto corro até o carro neste caso eu deixo as sandálias de brinde para a Verônica mesmo sabendo que nada nada nada vai indenizá-la o suficiente se isso acontecer ou aconteceu ou acontecerá um dia comigo ou qualquer outro cliente paciente sei lá como ela chama. Então Verônica suspira. E eu me pergunto se é porque farejou algo com a intuição ou se soltei o peido mesmo sem notar e ela quer acabar com o suplício logo ou se é só o cansaço do dia inteiro ou se ela de repente está liberando o ar para toda a podridão de dentro do meu ser ter espaço para se acomodar melhor a cliente em primeiro lugar você sabe como é o ar denso sobe ou desce eu já nem lembro mais das aulas de química uma hora dessas. E aí ela dá as últimas esfregadas a que chama manobras no meu pescoço teso e diz prontinho. Digo Obrigada Verônica Quanto eu te devo O pix ainda é o mesmo Sim sim é sim Pontual como sempre 20:33. Tchau, obrigada, a massagem tava boa sim, heheheh você é ótima. Pago em caroço nas costas pra que nunca mais se repita. Tratar aqui.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Sombroudúvida

Ontem quando você pegou minha contradição com a ponta dos dedos
e torceu
num beliscão
Foi bom de ver
Quantas coisas você guarda
Até não guardar mais

Ontem você quase me rasgou
Pelo bem geral da coerência
Como a uma folha de alface
que não sabe doer

E desde então
Tenho me dito
Todos os dias de manhã:
Pare um pouco de ser louca

Ainda que no dia seguinte
Possa acordar de novo com a pá virada
Bastando perenemente
que um movimento
A que chamarei
Gatilho; ou
Interruptor
Me revolucione
Ou me hormone
E eu vire ancinho

Aí você
Fica
Só fica
Impávido (resisto em dizer: colosso
E me salva
de novo
Da facilidade com que deixo tudo tudo pra trás
E esqueço
— a psicanálise dirá:
Reprimo —
De esquecer para não ter que lidar
Com isso

terça-feira, 18 de março de 2025

Camélia

O feminismo transita em rua mais ou menos estreita em que só passam três carros. Se houver um estacionado, necessariamente o centro terá que se deslocar um pouco para o lado — mas qual. E como. Além do que as ruas são muitas. E os estacionamentos, idem. Estamos sempre correndo o risco de rasgar nossas credenciais ou tê-las queimadas em praça pública em caso de colisão. Bum.
Trafegamos apressadas, atordoadas como as baratas — que agora temos que matar porque isso não é mais coisa de homem. Vou ligar o pisca-alerta para frear brusco, também eu, e me demorar aqui:
Coisa de homem.
Coisa de mulher.
Nesta rua estreita, estão veementemente proibidos de transitar estes conceitos.
Esvaziamo-los.
Mas o que fazer com o que sobra orbitando neste vazio do caminho, Senhor? Virar de volta, voltar pra casa, rogar toda manhã bem cedo em um café crendeuspai pelo encontro do varão clássico, provedor, pai de família?
Defendei-me.
Defendei-me também, porém, das tantas outras nuances e armadilhas, tão mais sutis que as coisas de homem e as coisas de mulher, obstaculizando a via enquanto este camburão com giroflex ligado em que plotaram em preto e negrito a palavra Evangelistão dirige à frente, interrompendo o fluxo dos nossos avanços.
Que falta faz conhecer bem o que é Cuidado. Conhecer como a gente se sente cuidada. Que falta faz dominar a contabilidade das compensações financeiras e afetivas neste livro-caixa que registra em uma coluna os desejos materiais e, em outra, os emocionais. E que diferença há entre eles, além deste fino traço vertical que os divide, imaginário como a fronteira entre o que é ser homem e o que é ser mulher?
A mim e meu teto de vidro, muita.
Pra ti bem menos.
O feminismo talvez seja este gato velho a que estimamos tanto mas que às vezes a gente se vê obrigada a tirar de cima da mesa mesmo sabendo que ele vai subir de novo, porque é da sua natureza. E tu este pássaro pseudo-selvagem, pseudo-exótico, com o teu hábito de só se ver capturada por trás do olhar do outro. A quem apagaram com borracha o traço vertical, transformando-o em horizontal — para se apoiar num fio fino e eletrônico em troca de conforto.
Conforto.
Esse predicado comum ao capital e, às vezes, ao amor.
Em ti o conforto se mistura, agora conhecido e novo, transformado em uma gratidão pela espécie de proteção. E aí o tesão pode estar onde a razão nunca estaria: não importa. O desejo desobedece às cartilhas. O gozo vira um pequeno lago de água parada no meio das dunas. E o que te interessa mais talvez sejam as dunas: conhecê-las, esquiá-las, fotografá-las. Sempre com a boca entreaberta e correndo o risco de entrar areia pelas frestas que se abriram — no rosto assimétrico, nas ideologias simétricas ou no vazio dos velhos conceitos. Assim como os tchecos podem eventualmente sentir um saudosismo militar que abominamos em vez da nostalgia da Primavera de Praga, que em fundamento também abominamos. Percebe? 
São tantas camadas nos ismos.
Na fauna da vida, querida, nos deparamos por estas estradas com o que julgávamos conhecer, mas também com pequenos axolotes alvos que parecem saídos de outras eras. Com os estranhamentos que não respeitam as paletas,
bandeiras,
as métricas
e estéticas
nem essa tua identidade visual em sépia, pretensiosa (e bastante retrô) como o Ph na palavra Farmácias nas embalagens bonitas da Granado.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Multi

versos

De que piada
Tu riu

Continuou ateu
Quando o avião caiu

O que é que ouviu
Quem te contou que errou

Quão inteira se manteve
A personagem que criou

terça-feira, 11 de março de 2025

375

Foi no momento em que o Arnaldo bostejou em público, em tom de troça e como quem não quer nada, que tinha de mim só a parte ruim de uma mulher liberada, que pela primeira vez eu me perguntei como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo. Um nome que não rima com nada (caldo? respaldo? bardo? enfim, nada de bom). Esta anti-poesia vocativa que conjurei na figura em carne e osso que me levou ao altar, com quem concebi as crianças, e que tantas vezes me atendia aos chamados no piloto automático, só de samba-canção e o cabelo sujo e desgrenhado vagando pelos corredores de nossa casa.
Como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo?
Os diabos mais assustadores se reuniram em conclave e me responderam, todos juntos, dando play a um filme que agora passa repetidamente pela minha cabeça. Passam vários, na verdade. A começar por todos aqueles aos quais o Arnaldo me levou para assistir no cinema com o Monza velho do pai dele na fase da conquista, trazendo consigo um bombom ou uma flor apanhada do quintal, como se os agrados fossem o ingresso para os amassos no banco de trás com vista para as estrelas que daríamos antes de me deixar em casa, de um jeito ou de outro. Passa o filme da primeira ida à casa de minha sogra, quando fui lavar a louça para impressionar e deixei os garfos e as facas apontados pra cima (como fazíamos em minha casa, para que quem fosse pegar para usar ou secar identificasse com facilidade) e a pobre da velha meteu a mão com força no escorredor e tomou um talho de todo tamanho no indicador, ficando com a marca até ontem. Passa o filme com narração na voz da amiga que primeiro me disse sem pestanejar: "Tu não queres o Arnaldo, Rute. Tu queres um Arnaldo imaginado, que só existiu na tua cabeça".
Em cada um destes momentos, eu poderia ter tido um ou dois pressentimentos sobre o futuro. Não tive. Sempre que penso neles parece ter sido outra vida. E pensando bem eu acho que foi.
Cabem diversas vidas na vida da gente — e muitas mais se soubermos absorver as que já estão postas por aí, escritas, interpretadas, cantadas, plantadas, ao redor. As plantas mesmo, por exemplo, ensinam muito a respeito do tempo da observação. Um bom jardineiro precisa aprender a observar as regas, os sóis, as luzes indiretas, as cochonilhas. Um exercício de paciência para que as queridas não morram — secas ou afogadas. Os bons escritores e artistas também precisam ser bons observadores, contemplativos, distantes, bons mandriões (ainda que isso lhes tire uma generosa fatia de tempo da ação em si).
E só se sabe se este não-trabalho valeu ao final, com a planta viçosa, a obra pronta.
É assim que me sinto agora, saindo do fórum com este papel na mão: com a obra pronta. E uma planta ainda por viçar.
Penso que sempre gostei tanto de ser espectadora porque tenho um pouco de preguiça, um pouco de medo e um pouco de fastio de contemplar o mundo, onde toda a matéria para a ficção está, assim como os remédios mais sintéticos advieram de uma planta (sim, que bênçãos são as plantas), um substrato, um fruto, algo em princípio completamente natural. Nos romances, o autor faz o favor de pré-observar o todo (com seu bocado de ócio), peneirar o que lhe interessa e nos entregar o ponto de vista pronto. E ainda que seja necessário digerir as questões postas à mesa, penso que esta parte prévia da observação já feita é uma etapa operacional que nos economiza muito. Sendo o mundo vasto como é, jamais teríamos tempo de viver todas as histórias que nos contaram para extrairmos dali a base de nossos conhecimentos.
Existe, porém, a inescapável perspectiva de que o que aprendemos vivendo é depreendido em nossos sentidos com muito maior eficácia e impacto do que o que nos é contado. No mais, eu sempre preferi estar em estado de perene comissão do que de omissão diante da minha vida. O que acabou por fazer com que eu sempre preferisse consumir mais do que produzir reflexões sobre o amor e os relacionamentos. O que eventualmente explica uma porção de decisões precipitadas, sobretudo em relação ao casamento, e alimentou a minha ansiedade — esta virtude de quem nunca para de pensar e age sem o tempo do amadurecimento das escolhas dentro da cabeça. O ócio que depura as conclusões sempre me pesou demais porque eu o confundia com solidão, com rejeição e com abandono. Esta assinatura no fim da sentença que agora carrego nas mãos faz lembrar que não estar em paz a sós, comigo mesma, fez de se casar tão cedo um excelente paliativo. Que agora se dissolve.
Digo isso querendo explicar que o projeto "Arnaldo" foi meu romance de formação.
Nesse romance de minha formação amorosa, se eu retomo as primeiras páginas, sei agora que quando nossa história começou eu não tinha sequer as ferramentas para avaliar no sexo masculino o que eu poderia eventualmente desgostar. Sim, sabia o que me agradava, e por este pacote pensei que fosse intrínseco o preço do que podia detestar. Eu não havia ainda observado... na verdade, eu sequer havia tido o tempo de maturar a observação de que no mundo há homens que precisam muito de uma mulher que lhes diga a hora de ir para casa, para então poderem reclamar do quanto ela é controladora, para jamais confessarem que no fundo se sentem regozijados de que alguém zele por seu cronograma diário, sua saúde e sua presença. Mulheres com quem farão fotos profissionais de má vontade e a cara emburrada com ou sem a mão em suas barrigas. Homens que se beneficiarão da premissa de que os homens são mais visuais do que táteis sempre que puderem. E que lentamente vão se tornando conhecedores deste saber inato da cartilha dos grandes gestos canastrões, como presentear com o maior buquê de toda a floricultura e achar que isso basta — até porque às vezes realmente basta, mas a mim, nunca.
Penso que o automático da vida que se seguiu depois daquele riscado pueril que cumprimos sem racionalizar nada foi, gradualmente, apagando da minha cabeça os contornos do fato de que o Arnaldo não tem um dente, por exemplo. O Arnaldo não tem um dente. Dá pra imaginar? Nunca marcou dentista por conta própria. Adia tudo para ter a adrenalina do deadline. Faz barulho quando mastiga. Separa as cebolinhas no prato. Não come polenta. Certezas que eu guardei como um tesouro e que poderiam ter se modificado, bastaria ele querer.
Ele nunca quis.
Querer, noto agora, é que é o fundamental.
Ainda é assombroso me dar conta de que talvez, não muito distante deste momento em que se apaga socialmente com uma borracha poderosa a última linha do vínculo em que nos uníamos, eu possa olhar em retrospectiva antes de me reconciliar com o passado e enxergar tão nítido, de um jeito mesmo muito claro, que passei metade da minha vida com um homem chamado Arnaldo, cujo nome já não me diz coisa alguma, e que hoje não passa de um calveludo derrisório que muito me prometia algo que deixou de se cumprir entre nós. A quem jamais deixou de bastar um ar blasé de profundidade dentro do que é mais superficial, eternamente sem o ônus que a profundidade real implicaria, ou seja, um homem que faz parecer que seu drink favorito é O Holandês Voador porque ouviu as composições de Wagner, mas seu leitmotiv é apenas e tão somente o doce do energético.
Não sou boa de ambientação (porque tudo me acontece dentro), mas é preciso dizer que hoje faz sol. Um sol que ensolara o meu futuro desconhecido. Estou saindo deste estado civil de atrelada-ao-Arnaldo com o passo firme em direção ao amanhã e ao meu carro estacionado. O mesmo carro que me levará para a minha casa, onde a partir de hoje só eu decidirei o que fazer. Estou concentrada apenas em calcular que o salto do meu sapato se ancore bem no meio das pedras do pátio desse prédio público onde estão as pessoas que divorciam, cobram, prendem, assinam, burocratizam. Quanto a mim, quero contemplar. Desburocratizar. Saindo daqui, quero abrir
as pernas
para o mundo.
Vou dar
pra mim —
Vou dar.
Pra mim. —
a melhor parte
da mulher liberada
que sempre fui.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Avenca

Teu choro é feito da certeza muito dura que amoleceu.
De rompante, como parecem amolecer as certezas duras.
Como quando se rompe uma dura camada de gelo fino: sempre foi água.
Tem um pragmatismo que ainda balbucio em te dizer com a voz firme e seca estes aforismos. Pra ti empresto a confiança que nem tenho e vamos ver no que dá esse microarrependimento por talvez ter dito demais logo depois. Por não ter sido sensível que chega na intenção de compensar os teus excessos. Que são tantos, agora. Valei-me. Que foram tantos, desde sempre, mas até antes tinhas uma certeza
tão, tão dura.
Agora a vida é cem por hora,
mole
e sem freio.
Quando alguém pede ajuda pra segurar o volante, a prudência recomenda não fazer curva. É manter centrado. Retilíneo, constante, duas mãos, uniforme e em velocidade de cruzeiro um ponto norte desse veículo descarrilhado — digo assim, com o h no meio — que de fora, lamento mas não informo, também parece a tua vida.
Digo só que vai passar, sim, vai passar, não vai ser ileso, vai passar como passa o tempo, lento ou de golpe, vai passar quer queira quer não, vai passar e a que custo, vai passar, mas agora ainda não passou, eu sei, sinto que preciso apenas te dar o imperativo e absoluto de uma certeza de que vai.
Tento ser fria e dura para compensar teu tanto desaguar em rimas pobres, previsíveis e certeiras de primeira conjugação.
Não estou rindo, vou dizer isso como um alívio cômico no meio de tanta crueza que eu tenho oferecido pra te dar onde se segurar: o filme do ano ainda vai ser por uns bons anos a anatomia dessa merda. Não, ninguém vai entender como se deu o amolecimento daquela certeza, a dureza de depois, a queda, o como. Não, a memória olfativa não vai mais ser afetiva. Não, o que se sentiu com os ouvidos não garante nada. Essa tua obra nunca mais será um primor aclamado por público e crítica. Vai ser no máximo um Duna 2, vamos dizer assim, foi bom, sim, até foi bom, terminou muito injustiçado, toque o que toque a banda de Hans Zimmer fica agora só o barulho desse silêncio de não-aplauso pelos cantos desta casa — que já não é mais inteiramente de ninguém depois de subirem os créditos e se estabelecerem as responsabilidades pelos débitos.
Espero que entenda que esse meu jeito imbecil de te ensinar a colar a cara depois de quebrá-la em muitos pedaços é o único que conheço. Dei pra oferecer entre as sabedorias aquelas mais rústicas: garanto que vais endurecer de novo, essa mágoa vai secar. Agora acelera. Começa. Lava essa cara na pia. Ri um pouco. Dá. Dessensibiliza. Recomeça. Te desmistura. Se apressa em te transformar lubrificada dessa água e sal, senão enferruja. O melhor sabão de casa é feito de óleo velho.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A rua da vizinha louca


Nela não se pode caminhar
Sem arriscar sustos pisando
Na boca de lobo gradeada mas funda e exposta ou
Na frente do portão que guarda mais um dos mil cachorros que uivam todos juntos às vezes ou
Numa pedra solta de todo tamanho
Que não se sabe como foi parar ali

A pé é muito diferente que de carro
E olha que nem de carro se sabe
Quando e onde estarão estacionados
Os moradores
Ou visitantes
Ou usuários
De que lado transitarão os transeuntes
Quem nos surpreenderá
descendo a Guanabara a mil
Do que e em que contramão se terá que desviar
E quem precisará
Para não colidir
Como meteoros seculares / apressados
No céu limpo de um alpe / singular
anônimos, mal humorados,
Vivendo às margens
Destas não-calçadas
Até onde o asfalto-concreto se espalhou sem saber
Que nunca haveria meio-fio.

Do alto a vista do pôr do sol
Quando visto
me dá a impressão de já estar em casa
Mesmo ainda sendo a rua da vizinha louca
Mesmo antes de estacionar mal,
de me apertar
o corpo contra o Ka cuidando para não bater uma porta na outra
E subir todos os lances de escada
De onde, do mais alto ainda, até se pode ver melhor
O verde escuro que também sobrou do outro lado deste vale
O irregular dos desníveis
Que agora parecem um pouco mais distantes
A contenção alta de pedra lousa da Associação
O desigual da vizinha com piscina, energia solar e teto retrátil
Tendo, ao seu lado, muro com muro, a casa da
vizinha louca.

Que primeiro trouxe a casa das bonecas
Para frente de seu não-pátio estreito, encardido e limoso, de cimento,
E depois pintou só as aberturas de sua casa, de madeira,
Com a mesma tinta cor-de-rosa
De encantar menina
(ainda que sua menina viva aos gritos do desencanto, da TV ligada alto no SBT e sob a sombra do entra e sai de pessoas
De quem suspeito muitíssimo.

O baixo dá numa igreja e, depois, na facção
De roupas sem janelas
Dez mulheres ou mais
com suas máquinas de costura
e muitos fardos de tecido
Fazendo tec-tec sem parar
em horário mais ou menos comercial
Num som que bate nas paredes e volta aos seus ouvidos
(pensando bem não sei o que é
Pior
Melhor
mesmo é pensar que
A uma curva de distância
Poucos metros por eme eles de combustível
Ou de panturrilha
Estão as vistosas ruas dos ipês floridos
Construções novíssimas em folha
Projetadérrimas
Erguendo-se para caber na foto futura que consistirá no novo
Cartão-postal da nova
burguesia de interior da cidade que,
não alcançando o lado de lá,
Subiu da enchente para este lado
Onde quase tudo se vê agora
e ainda por cima bem iluminado:
sobretudo o contraste
Com quem veio antes.

A rua da vizinha louca
E a minha 
São cheias de casas
à revelia da engenharia
Muito engraçadas
Não têm é nada
Até combinam
com os buracos da companhia de água e saneamento
E com as vias sem faixas pintadas no chão
Perto de onde se vê os meninos que sempre brincam de bola com chinelos de gol
Apertados entre dois muros muito cinzas
Todo dia sem chuva pontualmente às seis
E pouco
Depois de subir o morro depois do colégio

A duas ex-
quinas de mim
Tem uma rua reta
- e que ali começa a ser íngreme -
a que batizamos a rua da vizinha louca.
De quem não conheço a fisionomia,
só decorei o timbre alto dos
Urros, socos e pontapés
no porta-malas da viatura
daquele dia
Que me marcou muito
E, creio, mais ainda a ela,
como o distintivo de um desvario
Mais parece seu novo sobrenome: Louca.

Se a mim deram um ou outro limão
E eu gosto tanto de me vangloriar 
E de ver
o que faço com eles
E de limonada
A ela talvez tenham espremido o ácido nas retinas
Ou só não gosta de limonada - vai saber?
Se só aprendeu a ver o mundo meio azedo

Penso que as coisas que acontecem a nós todos
Imitam um bolo fofo recém assado:
a ordem importa. o tempo. o recipiente. a mistura. 
Se me dessem uma colher de manteiga
Duas xícaras de farinha
E uma pitada de fermento
Para comer ao vivo
Enquanto ainda era criança
Toda minha vida poderia ser e estar
Com outro gosto
Mais seco
Embuchado
Abatumado até
E, então, pode que a Louca seria eu.

Algo que a vizinha e sua rua me ensinaram é que
às vezes
a vida não tem um sentido claro.
É como um bom poema:
Tendo por pré-requisito
Não ser tão pretensioso assim (nem rimar
Não precisa de moral
E pode acabar esquisito.

Careço
Do urbanismo
Para não dizer
bem limpo e arborizado
assim:
De baixo
do ponto
de vista 
da vizinha Louca
Tenho algo mais para ser,
Que não a eterna meio-rica entre os mais simples
A patricinha da escola pública,
A pelada que esquece de fechar a cortina
às vezes
e sabe que falar baixo parece classe
e por isso performa bem em público
A que nunca precisou ser contida pela PM
A quem ir a pé para se exercitar é puramente uma escolha?

Tenho algo mais para ser,
senão eu?
E tem algo mais para ser a vizinha,
que não a Louca da própria rua?
Tomara que sim

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Cativo [12]

Decorei o caminho daquelas duas cicatrizes pequenas no peito, na ida do tórax ao ombro pela tua esquerda, que agora parecem marcas de bala ou vacina. Foram estilhaços de vidro que se atiraram contra ti, mas podiam ser marcas da guerra ou imunidade. Ficaram pra sempre os sinais que - ainda bem - já não sentes. Só eu sei de tão perto. O meu indicador percorre o teu pescoço quente e se arrasta em ponta nas mini queloides dessensibilizadas. O baixo relevo me faz uma cócega de não rir, só repetir, em braile: quero ser a sua pessoa. É mesmo, acho que nunca tínhamos feito essa promessa antes. Quero ser a sua pessoa, exagerar no afeto e na proteção, não saber a hora de ir embora, estar melhor para dirigir, falar baixo, guardar os teus segredos como preciosidades e não contá-los a mais ninguém. Edificar trincheiras para te isolar dos meus inimigos imaginários. A grandeza do que nos aconteceu ontem é de uma delicadeza de seda fina sobre o corpo, amor. O toque é tão leve que quase quero vestir essa carapuça por conta própria, como carrasca. Põe essa meia de novo na mão - que eu beijo e tens ciúmes como se o fantoche fosse uma entidade autônoma, e aí te encosto o nariz na bochecha molhada de lágrima até adormecermos, não sem antes conversar por meia hora com esse outro fragmento de ti que diz as coisas mais bobas e boas com uma voz estridente para me acalmar aquela dor de barriga. Para que eu não doa. Para que as marcas de dor sejam esquecidas por baixo da camiseta ou da camisola. Para que sejamos, por favor, para sempre e agora sem interrupções, as nossas pessoas.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sereníssima

Quando a semente de um tomate
dá ao exterior
                 (o ar
de sua graça
ele todo míngua e seca
em pouco tempo.

Toda fruta aberta à força
apodrece mais ligeira
Toda verdade também

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Rasga e amassa

Rasgar alguém
Em muitos pedaços
                         de papel
Depois de pôr-lhe ao lado do nome
Um ponto de interrogação
que, também rasgado,
Divide-se em sorriso imperfeito
(ou o contorno de meia lâmpada
- ideia sempre incompleta)
E um ponto final

Rasgando, pretender ignorar
o que se escreveu
o latente
lá dentro
Onde há um calo que parece recém formado
E é, porém, bastante antigo
Um desconforto profundo
Um inchaço que protubera
Uma ameaça de vertigem
ao som da folha se partindo

Dor que dói
rasgada como carne
ao tocar de novo

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Alcautraz [6]

Bem-vindos à novela, digo, ao novelo, digo, a apenas outro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
Este único trecho acarpetado do corredor do Caulabouço não está aqui à toa. Quem tira os sapatos sente a felpa macia e fina em contato com os dedos, elogiando a gerência pelos seus talentos com a decoração acolhedora sem se dar conta de que esta é só mais uma presa, estirada graciosa, em tons de sépia e voluntariamente ao chão como a mocinha sofredora de uma novela de época se esgueirando para baixo aos prantos pela soleira da porta. 
Escondida mas não muito, na verdade apenas perenemente camuflada: a Melancolinha. Ao desavisado, aconchega. A quem se demora, seduz e deprime. Ceci n’est pas une linha. É um átomo que contém em si fração completa de toda a obra. A Melancolinha é um fio que, fora da trama, faz o curso entre a própria cela e o Caustelo, instigando a procura por este porão como migalhas de João e Maria ensinando um caminho ruim. Mas vice-versa.
Fina feito a teia de uma aranha, às vezes se aninha recolhida e parece pequena: é um emaranhado capaz de caber na planta dos pés e é preciso puxá-la com força e insistência para que se revele. Outras vezes, porém, Melancolinha sabe fazer o ritmo de um ioiô que vai e volta, exalar o cheiro de chá dos sachês, tecer mantinhas térmicas ou cobertores até a orelha ou se costurar em urdiduras repousando, terna e lenta, dolorida como quem foi pisada em uma roseta.
Vez ou outra reaparece imponente, podendo tensionar de um lado a outro e produzir tropeços. Caprichosa, outro dia Melancolinha se travestiu de um bordado na forma da letra S para dizer Sim, Saramago, é preciso Sair da linha para ver a linha.
E esta é lição suficiente para hoje e para sempre.
Mais vale aguardar as cenas dos próximos capítulos, digo, a nossa próxima visita.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Morgause


Desço as escadas e caminho apressada pela rua, com a impressão de ser seguida. É meio-dia de mormaço. Não chove. Se no andar de cima ventasse muito, as nuvens se moveriam apressadas. Parecem estáticas. Ou estou correndo na exata velocidade do céu, como por mágica. Aperto um tomo, a capa dura contra o peito. A capa foi acinzentada pelo tempo e tem um emblema que reluz, prateado. Dentro há gravuras com legendas em latim. Seriam feitiços? Vou apertando o passo, vou cada vez mais rápido, até acabar o fôlego. Paro de súbito. Olho furtiva para trás, para os lados e para cima. É como se o que me espreita estivesse… adiante? Vago. Em todos os lugares. Até ter certeza, corro mais, suspeitando que o que está à frente é um perigo mais banal que o que me segue. Feito encontrar a secretária do dentista cruzando a calçada e demorar três segundos inteiros para reconhecê-la depois de cumprimentar. Assustador e breve. Incômodo. Inocente, mas fora de lugar. Um mal menor do que este outro, do qual corro tanto. O vestido comprido com as mangas bufantes azul petróleo e armado em godê por uma anágua robusta engata em uma das minhas botas. Tropeço. Alguém me fixa pelo braço com o cabo de uma bengala de madeira. Não dói. Não é ninguém. Não tem rosto. É um bem anônimo. Recado antigo de que ainda há beleza no mundo. Se me solta, recomeço a correr. Penso em tesouros que ficam para sempre perdidos, até virarem lendas, porque envelheceram as pistas. Um livro antigo encontrando amparo contra um corpo. O meu corpo. Um registro que guarda a grandeza da possibilidade, sem por isso poder antecipar onde ou como será. O que seria de mim se eu tivesse sangrado em vez de fecundado? Que males me teriam desencontrado se eu não estivesse tão detida neste tema que me dura tão duro no imaginário? Estou atravessando este momento
A ideia fixa
como a um portal
Enquanto acordo
deitada de bruços no chão
do pequeno elevador
quebrado
e sem espelhos
desse prédio antigo no qual moramos
(foi o primeiro da cidade?)
e onde estou trancada
No escuro

Ainda há alguém que chora alto esperando por mim
Ainda é preciso comprar as fraldas
Quantas horas estive aqui?

Estou mesmo trancada
em meus próprios devaneios
Dos quais não fujo senão em sonho

A inconsciência é um portal
incontinente
para outro tempo
Dos mais místicos
Dos mais estranhos
Dos mais transcendentais

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Funerais

Me lembram que vamos todos nós
Os vivos
Ainda morrer
No futuro
- e isso eu não suporto,
é absurdo.

Ter dito eu te amo
centenas de vezes
E ouvido em retribuição
Nenhuma sendo a suficiente despedida
Em vida
Eu não suporto
Porque é absurdo

Ouvir de minhas tias
“Foi encontrar a própria mãe”
Me corrói por dentro
Já que não sei se é verdade
Que alguém possa ser despartido
Quero dizer
Reencontrado
Depois de partir

Ouvir de minha mãe
- que agora não pode mais ser a filha, só a mãe -
Que “parece um buraco”
“me faltam as raízes”
E “eu não sabia ser triste”
É insuportável

Exatamente como são os funerais

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Samambaia



Antes havia cartas. E por isso precisava haver muitas gavetas para guardá-las. Quanto mais cartas, mais eram necessárias gavetas. Quanto mais gavetas, mais reviravas desesperada para encontrar o que já tinha desfrutado antes - sem saber que era precioso - e que faria falta, depois. A tecnologia prescinde de espaços e, mesmo assim, pode ser vasta.
Moro numa casa pequena. Com vasos pequenos. Uma biblioteca pequena. Creio na modéstia voluntária e optativa como a maior insígnia da dignidade. Quanto menor a representação da riqueza, mais sinto pertencer melhor ao lado que me importa da dinâmica do mundo. E acho isso bom. Só titubeio às vezes.
Agora tenho um Kindle. Também da palma da mão, assisto a tua vida a uma modesta distância. Tenho visto prazeres vulgares e difíceis de manter, como as filhas pequenas e tão doces e bem educadas, um marido que tua família não aprova tanto assim e a caminhonete (me diz, pra quê?). Tudo me grita beleza e muita renúncia. A troco eu acho de eu sei o quê.
Sempre te achei bonita. O cabelo, a pele clara e uniforme, o formato das unhas. Acho que disse pouco e hoje em dia, se disser, fica parecendo deboche. Tenho nem oportunidade. Com a nossa idade, louvadas sejam as feministas para as quais você não dá a mínima, ser bonita dispensa comparativos. Idade nenhuma imuniza, porém, dos comparativos feitos naquele intervalo em que eram feitos, importavam e nos deixaram marcas tão não sutis.
Acho que um bom tempo eu fui porque tu não eras. O anti-parâmetro. Eu gorda tu magra, eu magra tu gorda, tu ativa e eu altiva, tu quieta e eu crítica, tu mãe e eu velha, tu mãe e eu livre, eu pai tu sem. Porra. Eu pai e tu sem. Cada antônimo entre nós o futuro corpo de um delito ofensivo. Marcadas pela vida toda.
Um pai marca a vida. Eu não quero ser hipócrita com as outras coisas que marcam a vida. Também não quero, entretanto, fingir que presença implica qualidade. Quando penso que alcanço essa compreensão porque é mais fácil teorizar renúncia ao que já está garantido do que ao que nunca se teve, sinto gosto de remorso atrás dos dentes da frente, como se eles fossem se quebrar sozinhos e me deixar banguela. Me trazendo uma grande vergonha, como a que parece que me lembro com certeza que sentias por muito e por tudo.

Ninguém diz
sinto muito
- pelo que nasceu tendo -
como eu.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Família

Eu
Vocês
A economia circular de bens materiais
Bem gastos
Um chumaço de alecrim com flor e tudo
E dois gravetos

domingo, 19 de janeiro de 2025

Rosa

Enquanto estou num Resort, penso sempre que é uma vida a que eu me acostumaria fácil. É isso que te ocorre todo dia? É isso que te faz escalar as impressões dos outros para se sentir bela vista e considerada? O que justifica a tua tentativa de não se deixar conhecer na sombra para parecer sempre mais elevada, proeminente, asséptica, ilibada do que à luz. Mais inibida e nobre que a nossa mãe e seus deslizes de retórica.
Materializa-se em ti e na tua fé um substrato muito preciso do desamparo da humanidade, que é o desejo de descobrir quanto, de onde e por quê. Mas acho que tanta crença não basta para seres feliz. Devias te concentrar em como e para onde. Pois sincretismo nenhum tem te salvado dessa gana de ser acolhida, validada e jamais preterida. Ia escrever de ser vítima, mas aí você ia emburrar, fazer greve de resposta e ainda achar que tem razão. Depois voltar como se nada tivesse acontecido, pedindo ou enviando uma amenidade como se os silêncios tivessem te feito evitar ou vencer o conflito. Te acolhe primeiro e vais ver que isso tudo é bobagem.
Quando saio de um Resort, logo depois de fazer o check-out eu prontamente me lembro de onde saí. É urgente este trânsito, deve funcionar como um botão de automática reconciliação com a frantumaglia menos afortunada de onde viemos. Experimenta (te dou conselhos como se soubesse mais, não sabendo) enxergar a história atrás de ti como uma porta - que se pode fechar com força, num estampido, ou deixar aberta para que o antes, o depois e o então circulem livremente sem nos fazer um mal determinista. Em paz com os farelos que grudam no caminhante - as farpas, os vinténs, uns poucos glitteres, as conjugações imperfeitas e letras de sobra.
Só não te esquece que ter filhos implica iniciar uma nova linhagem - que, entretanto, não se rompe daquela da qual viemos. E que merda de pai foste escolher. Que vergonha, minha irmã. Ele ainda se mete a galã. Não vou suportar outro comentário pérfido do Senhor dos Deboches e ainda assim, por ti, vou suportar sim, mas em doses breves e espaçadas, como um remédio amargo, evitando o convívio o quanto puder para que o tecido de nossos encontros não se desgaste ou embolote ou rompa as costuras de vez.
Posso estar errando no julgamento. Posso estar cega para o quanto se parecem. Mas é que em certa perspectiva te admito muito. A minha redenção vem dessa coragem de errar. De não se levar a sério. De deixar que os outros errem, em público, sem julgá-los tanto, porque o que vai sentimos sempre voltar, como onda. Tocar o grosso do erro - como para dar sorte. Para que se possa ver o que há por baixo. Como nas estátuas em que fica polida apenas a parte em que, por superstição, o visitante toca porque lhe deram a dica. As bolas, os peitos, os chifres, o queixo. São amplas as possibilidades. De erro e de acerto. Talvez não precisemos nos deter tanto neles. Quem sabe a vida seja oscilar entre o Resort, de onde viemos e para onde voltaremos. Tenta te lembrar que as coisas por trás das coisas estão lá por algum motivo. E não deve ser para que tentemos adivinhá-las, supô-las ou inventá-las. Se se revelarem, bom. Se se mantiverem encobertas, por favor, te esforça em deixar para lá.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Orquídea

Se posso te dizer, meus anos não se atrasam por esse botox que finalmente renovei na segunda. 41 unidades. Tu cada vez mais harmoniosa (sic). Eu envelhecendo. Minto mal para mim mesma, porque sei o que o tempo andou me fazendo. Tanto, que no entanto não tenho força nem disposição para pagar mais para negar os sinais com menor periodicidade. E encuco com os efeitos de longo prazo, dá pra crer? Como se a pele fosse esticar, acostumar, esquecer como ser nova por conta própria. A cada poucos meses, os vincos do espanto e da brabeza voltam viscerosos à minha testa desidratada. Dura menos que os seis que me prometeram. Pelo menos ainda não tenho marcas de sorrir. Quer dizer, isso é bom? Me assusta um pouco - só não mais porque aí a ruga de assustada afunda outro centímetro. Os músculos me desdeformam com a pressa de ser expressiva. Percebe? Com a pressa de me expressar sinceramente (eu que acho que nunca soube ao certo como conter as sobrancelhas), fico um pouco a folha ofício que já foi barco de papel - em tempo de expedição às Índias.
Também não há meio dos cravos me abandonarem o nariz. Esfoliante-químico-de-cu-é-rola. Estou dizendo isso batendo a palma de uma mão no soquinho em forma de segurar sorvete da outra, que é pra te assustar com meus maus modos. Tenho as manchas que começam a despontar marrom médio no alto da maçã do rosto (será melasma ou luz artificial?). Aquela faixa tímida de pelos finos que simulam costeletas. Enrubesço de pensar que os pelos me acentuam a boca acinzentados quando menos espero, alternando lugar com os pequenos pontos inflamados que cravejam meu lugar favorito de espremer: o queixo (atualmente mais assimétrico por uma espinha interna) e ao redor da boca (sempre ela). São sinais claros de que o controle não está comigo - passa perto do retrogosto de privilégio, mas comigo mesmo não está.
Sinto que a vida passa ligeira. Em dias úteis. No máximo 15 por vez. Muitos de 15 por vez. Quem foi que te ensinou que ser prosperada fazia sentido? De onde vem tua coragem, o teu conforto e a tua incúria? Eu sei. Minhas rugas sabem. Personificam tua lisura em contraste.
Em notas mais ou menos relacionadas: vão acabar com os filtros do Instagram. Daqui a um tempo nós olharemos abismados fotos de gerações granuladas com lábios grossos demais, narizes finos de menos, pele sem textura e a bochecha que acorda e dorme corada. Nesse comparativo certamente vou me parecer ainda mais ladeira abaixo - para não entrar no mérito da minha barriga tendida a crescer e desbarrancar mais se eu tiver menino. Alarguem ou não meus quadris em formato de tanajura, vou lembrar por décadas da cara de quem já viu um pobre ascender quando falei em silicone.
Viu? Pra empatizar com as tuas inseguranças tive que falar das minhas, e isso na tua presença eu sou contra. Amanhã vou vestir azul, azulzão. Você adora, né? Por trás das camadas finas de discrição, escorre das tuas fendas uma necessidade de se provar distinta. Quero dizer distinta da palavra e da ação da distinção, que abomino. Eu sou mais feliz descalça no sol ou de chinelo. Minha bandeira é ser medíocre e natural enquanto a tua cara, preenchidésima, completa o pescoço desse monstro imaginário que acordou deitado em cima da minha caixa torácica no pesadelo de hoje, dizendo: auf wiedersehen, logo logo tem mais.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Alma de artista

A realidade
ancorará
teus devaneios

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Zamioculca

Na Economia dos meus afetos, dia sim outro também um ábaco colorido e plástico marca negativo: sinto que estou te devendo. Com frequência, falta ponteiro no meu relógio de adulta para quem eu gostaria de ser para ti. E se nos arábicos as coisas vão mal, nos fonemas não vão melhor. Tua fala é tão enrolada - mesmo agora, conversa pouco comigo. Parece outro idioma. Talvez se possa dizer o mesmo de mim, hermética, aqui, no centro destas quatro paredes altas de minhas boas intenções não postas em prática. Quando enfim te deixas levar pelo oceano, eu te vejo pela tela. Aí mesmo é que anseias ainda menos por mim. Fica evidente a desconexão que se estabeleceu. Outras vezes, gosto de pensar que ainda teremos chão para alinhar as prosas e interesses. Que coexistiremos juntos num tempo futuro de semelhanças leves e intuitivas, marcadas pela afinidade e pela abertura ao diverso, mais do que pelo sangue. Me distraio com o pensamento de que nosso momento de nos darmos melhor apenas ainda não chegou, está em suspenso, perenemente virtual - encerrado no factível de si mesmo. Encerrada no factível de mim mesma. Eu sou assim, vais saber se eu não mudar até te dares conta. Eu também ainda sou pequena.
Queria estar mais presente e te aconselhar desde já, fui coroada para isso. Só que eu sei muito pouco. Muito pouco além de que as vidas podem ser paralelas e distantes - até se cruzarem.
Ainda outro dia me alcançaste um vaso cerâmico pequeno, branquinho, com uns detalhes de tinta marrom e um trincado ou outro estilizando. Parecem sujeira imperfeita e cicatriz. Dele ascendem galhos relativamente grossos e folhas muito verdes e vivas, assimétricas. Pra cá, pra lá. Desde então deste para ser presença viva na estante da minha sala. Acertou quem disse que era fácil de cuidar. Te espio, imóvel exceto pelos olhos e pensamentos que bem poderiam te acompanhar os movimentos, a uma terna distância das raríssimas irrigações, como quem torce para que também o sentimento vingue sozinho, com a luz indireta de qualquer coordenada, meridiano ou hemisfério. O ordinal de qualquer mundo (o meu é todo latino, o terceiro, vais saber).
Fico querendo espiá-lo outra vez, mais adiante, quando tivermos novos olhos que sejam nossos. Porque fomos conectados por apreços que nos precederam. Estavam postos à mesa. Talvez seja natural que não saibamos bem ao certo o que fazer com isso. O tilintar de uma colher nessa chávena de chá te faz ouvir o que eu não digo: ao cresc(h)er, preferia que te parecesses mais com a tua mãe do velho testamento do que com teu pai. Mas prefiro mais que não pese o peso das divagações. Combinamos assim: conserva o teu olhar de menino que eu vou conservando em algum lugar aquele meu, de menina, até que uma nova realidade nos torne grandes amigos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Magnólia

Recordo de quando a porta se abriu - ambos tínhamos as chaves. Éramos um para cada lado do batente - nos olhando longamente. Tu tinhas, altivo, uma mochila vazia nas costas. Eu tinha o rosto, a roupa, os cabelos e o corpo, mas sobretudo o rosto, envolto em uma gosma espessa translúcida que escorria lenta de cima para baixo de mim, como na cena que fez de Carrie a estranha. O visgo me avançava da raiz à ponta dos cabelos, das ancas até os pés descalços tocando o chão, das sobrancelhas para a parte alta da maçã do rosto, encobrindo tudo com a forma de estalactites recém formadas. Tudo em mim grudava e dava asco. Tinha cheiro de umidade, noite, absurdo, veneno branco e gelado, canto de parede e bolor.
Eram os resquícios de uma intensa chuva de sapos
ocorrida do lado de dentro.
E nós ali, parados numa manhã seguinte - como se a porta fosse um portal e quem ousasse atravessar pudesse se esfarelar, moer ou ser abduzido. Tu vinhas de fora. Muito de fora do meu redemoinho, ainda fresco da rua, ares de aurora, normalidade, retidão, banho tomado. Foi também tomado da surpresa de me ver naquele estado. Quis saber se eu conseguia enxergar. Te disse: quase não.
E tu deixando de acreditar, como é que pode uma coisa dessas. Ali nasceram mil perguntas insistentes. Sempre as mesmas, a serem feitas de jeitos novos, às quais me custa responder. Sinto que preciso soprar algo em voz baixa e mansa para fora, mas me falta ânimo. Meus lábios semicerrados de não se deixar intoxicar por este caldo gelatinoso que escorre abundante.
A ponto de só conseguir dizer: quase não. E então o vulto dos teus opositores se estendendo na minha direção. A porta, um portal atravessado afinal, pondo à prova uma evolução inteira para tentares me limpar com as pontas dos dedos os dois olhos ao mesmo tempo, direita para a esquerda, esquerda para a direita.
- E agora? Agora tu enxergas de novo?
E te fiz que sim, assentindo com a cabeça para nos mirarmos com intensa e pesada demora. Limpo e suja, real e real, inédito. Prometi não dizer mais “necessário”.
Suspeitei que este visgo e este asco se regenerariam de tempos em tempos, impacientes, de dentro para fora de mim. Depois de dentro de ti para fora de mim. Por fim de dentro de ti para dentro de mim.
Sim, esta também sou eu. Sou feita também desta seiva lisa e pegajosa que parece transpirada diretamente dos meus recônditos - e às vezes se acumula e se avoluma numa camada grossa que vai me circulando para formar um conjunto de mim, que também sou eu. Toca que vais sentir que eu penso, insistente: será que um dia saberei te fazer gostar de navegar sem espanto no fel e no mel disto tudo - que também sou eu, e eu também não entendo?