Beijinho no rosto. Meu primeiro ato entrando pela primeira vez na antiga casa adaptada para o comércio foi mesmo esse, é incrível...mente difícil de explicar a minha. É. Eu sei. Beijinho no rosto da recepcionista. De quem não sei o nome. Que não entendeu nada. Beijinho no rosto de uma desconhecida prestando um serviço. Uma intimidade estalantemente forçada. Nesse lugar que todo mundo se conhece, chego eu tanto tempo de cidade nova depois, praticamente a mesma cara. E o mesmo nome e sobrenome. E, de nervoso, carco um beijinho no rosto da única pessoa que nunca tinha me visto mais gorda. Como se fosse comadre. Como se houvéssemos nos mordido na creche. Como se eu fizesse parte da família. Essas vergonhas eu passo no crédito. Me dói na hora e eu vou lembrando a prestação. Somam-se os juros da maquininha do constrangimento. Sei que as pernas me amolecerão só de lembrar depois. Como amolecem toda vez que ninguém ri de piada que eu faço pra quebrar o gelo. Agora, como sempre que acontece, num silêncio semi sorrido, eu vou ter que fingir demência e normalidade até amenizar pra mim. Eu, a beijoqueira natural. Que me basto. Que sou simpática. Desencanada. Comigo é assim mesmo, bobeou eu invado o balcão e beijo. Arghhhhhhh. Acho que tô com bafo. Odeio encostar em quem não quero ou respirar muito perto por isso. O alívio é que a moça sabe se defender do importuno. Me interrompe rápido. Podes sentar ali. Quero muito muito explicar tim tim por tim tim que foi sem querer eu me atrapalhei um pouco volta aqui esquece tudo eu vou sair e entrar de novo deleta essa cena que deu errado da próxima vez eu juro que não te beijo agora vai ser a chegada pra valer. Não tenho chance. Ela é mais nova. Mais nova que a última vez que estive no salão para o qual ela trabalha. Isso uns o quê... 15 anos atrás. Portanto, não me conhece. Portanto não entenderia a intimidade que eu acho que tenho com tudo e todos aqui, embora nunca tenha pisado rigorosamente aqui desde que ela trabalha aqui. Vou precisar me conformar. De novo. Pode sentar, ela já vai te atender. Sofá comprido de frente pro espelho horizontal. Muito baixo. Recém reencapado. Confortável. Mas muito baixo. Os meus joelhos ficam mais altos que o quadril. Não me vejo no reflexo. Talvez não seja o público alvo. Espero sem me ver fazendo hora. O meu horário era 8:15, uma outra desmarcou. Aí eu aceitei vir fim do dia. Atrasou um pouquinho, tá? Ela já vai te atender. Devia ter adivinhado e atrasado como sempre. Pelo menos trocaram o horário e não acordei cedo nem corri na estrada. Abro Instagram. Depois o Twitter. Vou alternando. Vai atrasar só mais uns minutinhos hihihi. Reparou? A pilha do relógio da beleza é sempre fraca. Uns minutinhos equivalem a quarenta. Zapeio o Insta. Foi ele que nos reuniu para eu estar aqui de novo. Não trouxe um livro. Que bom, porque ia parecer performance. A última coisa que eu quero é parecer performática voltando aqui. Quero passar batido. Me misturar nativa. Quero provar que sou de onde vim. Simprona. Não quero ó lá a otária metida a besta que agora paga de inteligente no sofá da espera o que ela veio fazer aqui que não fez lá onde ela mora. E neste contexto qual será a imagem que aquele beijinho da entrada transmitiu. E quem diabos pensa tanto quanto eu penso no que pensam sobre. E quem caralhos me implantou a maldita capacidade de parar de seguir as pessoas para esquecer os infortúnios vividos e, embutida, esta bendita aptidão para esquecer o fino dos motivos. Eu sei que vem depois um efeito de Prescrição. Decadência. Caducidade. Adoro esses nomes no juridiquês. Lembro que quando eu ficar velha vou ficar caduca e esquecer tudo com o tempo porque é de família e rio sozinha no sofazinho como se fosse bom esquecer todas as coisas só pra esquecer também algumas. Como eu disse, caduca. Deve ser isso que me fez voltar aqui como se nada fosse nada. O carro sujo de chuva e poeira ali na rua quase deserta depois da porta aberta por sorte me humaniza. Um pouco. Ao menos eu acho. Um carro sujo de chuva e poeira na frente de um salão sem placa no segundo bairro mais urbano desta Terra Mãe que Embalou o Meu Viver no interior onde nasci. Trocaram o calçamento por asfalto tem nem dois anos. Passo aqui na frente a cada um mês ou dois. Às vezes mais, porque não é caminho. Mas notei hoje que não reinstalaram a antiga placa depois da obra. Nem precisam. Todo mundo conhece a Tânia e as filhas. Elas descendem de larga linhagem de prestadoras de serviços de beleza no Salão da Tânia. Desde adolescentinhas. Desde que a sede era a outra, na sala da frente da casa delas. Desde aquela fatídica ocasião em que eu consegui um encaixe pra fazer prancha pra formatura do ensino médio mesmo marcando de última hora e acabei soltando que só tava ali porque o outro salão em que se fazia menos fofoca não tinha horário. Por quê? POR. QUÊ. Minha Nossa Senhora do Rosário, de Fátima, das Dores, de Guadalupe, de onde quer que seja que já tenha aparecido, me apareça agora só pra fazer desaparecer essa memória de mim a jato e eu não ir embora sem explicar nada. Gasto meu tempo no sofazinho sonhando com a cirurgia de redução de língua que um dia, tenho muita fé, farei de cobaia e de bom grado entregando o meu corpinho à ciência. De repente me voluntario pra um botox de atrofiar disparates antes que eu os despeje com a minha boquinha de disquete afora. De novo. Sei que a qualquer momento posso fazer de novo. Ainda tenho o dom. Minhas pernas amolecem como é praxe só de lembrar da gafe. Sorte que estou sentada. No sofazinho que deve ser aquele que ficava na outra sala da casa delas antes e o marido da Tânia vivia deitado, presunço eu. Nem tenho tempo de me autocensurar por mais esta ideia classe média burguesa que ascendeu de classe e Zofia desponta na porta da sala dela, a mais ampla e iluminada, de prestígio entre a família, a bem da frente, denunciando com zombaria a cliente com as sobrancelhas finas recém pigmentadas que sai junto com ela. Atrasou foi por causa dela, briga aqui com ela viu, ela chegou tarde, não sei o quê, não sei o que lá. Uma coisa nada passiva. Também nem tão agressiva. Deve ser uma cliente de sempre, ao contrário de mim. Sorrio amarela dizendo não tem problema eu tô com tempo hoje é sábado. Ela me chama pelo apelido que nunca errou pondo um L a mais desde que lhe expliquei por que é como é e me convida pra entrar. É a mesma Zofia de sempre. Só que está com o triplo de boca. O cabelo meio sujo, amarrado. Nada de maquiagem: os poros precipícios, as manchas destacadas. Bem ao contrário dos filtros que usa no perfil da estética. Lá ela não é Zofia, é @ZS_MakeupArtist. Faz muito mais que isso, todo mundo sabe. Zofia Silva maquia como ninguém, mas também micropigmenta, e limpa pele, e habla y habla. É da versão vida real que eu ainda me lembrava. Ainda é a mesma. Minha primeira amiga da quarta série depois de trocar de colégio. É um nome italiano, ela gabava na época. Não devia ser Sofia? Eu pensava. Uma vez cheguei a dizer. Não, ela respondeu. Não, na Itália é assim mesmo, você é que não sabe de nada. A boa e velha Zofia, que sempre sabia de tudo. Deito na cadeiraca de espremer e embelezar gente e ela me alcança a cobertinha. É uma espécie de cadeira mas também é uma maca, reclinada. Lembra um pouco as de dentista. Por causa da ring light bem em cima, que é boa pra selfie e pra fazer os antes e depois dos procedimentos pra postar e mostrar o trabalho. Eu odeio. Porque eu também julgo. Só não mais que quando não fazem de mim e nem perguntam se eu deixo, porque aí acho que sou das clientes que não deu o resultado esperado. Ou das mais feias, que não compensa mostrar nem pra espantar mosca. Mas, se perguntam, eu digo que não quero. Que tenho vergonha. A gente vai em salão de beleza é pra ninguém mais ver o antes. Mas ela, Zofia mesmo, sei que não vai nem perguntar e nem fazer. Ela me conhece. Quase me adivinha. Vai querer evitar o stress. Tudo isso eu penso no milissegundo em que ela me alcança a cobertinha. Não tenho frio algum. Nenhum. Zero. Tenho até medo de suar um pouco. Só que quem sou eu para rejeitar o cumprimento desta etapa do manual de conforto da cliente do ramo da beleza. Sim, sim, claro que sim, eu quero a cobertinha. Se disser não, pareço besta. Mais besta que a eu de 15 anos atrás insinuando elas serem o grupo de acesso do que havia de mais top no ramo da beleza do nosso município. Na época eu acho que não dizíamos top. Talvez show de bola. E ainda por cima eu chamei de fofoqueiras. Embora fossem. Como quase todo mundo ao nosso redor era, para ter assunto, só que no salão circulava mais gente. Testo ficar em silêncio um pouco só pra variar. Ver no que dá. Som ambiente que não vejo de onde vem mas é bem baixo: Engenheiros do Hawaii. Eu gosto. Ela também. Lembro que a gente já gostava antigamente. Temos idade pra dizer antigamente, Zofia e eu. Engenheiros sempre foi a zona mista do prazer culpado entre o meu Los Hermanos e o Pearl Jam dela, que eu gostava de imitar pra fazer raiva grunhindo um inglês nada com nada. Como, aliás, eles também fazem. Mas de Engenheiros eu lembro que a gente gostava. Ou ela lembrou disso ou ainda somos rigorosamente as mesmas que já fomos, distraídas. O que há de melhor, o que dá pra fazer, o que não dá pra evitar, etcetera. No que mudamos exatamente ainda não sei. Lá vem o terceiro produto esfoliante me derretendo as impurezas da cara. As luzes da sala apagadas e a porta aberta pra vir uns raios indiretos da fluorescente contígua e dar soninho. Relaxar. Nunca me entrego ao relaxamento em momentos assim, porque não sei desligar as vozes da cabeça. Ela quebra o silêncio pra se justificar. Tô reformando, ainda não comprei a luminária de luz quente, achei uma na Shopee mas tenho medo de ser muito vagabunda, ela diz. Eu entendo. As portas aqui tão sempre abertas e sei que estarão depois, mesmo com um abajur. É um entra e sai. Não espanta se vem uma com a colher de pau pra outra provar se algo tá bom de sal. Ou roendo qualquer coisa e oferecendo. Tampouco admira se entra a secretária dizendo pra não esquecer de trocar o horário daquela cliente chata que remarcou de novo pra quarta à tarde mas não vai poder porque ela é assim mesmo. Muita língua. Pouca cerimônia. Entre uma extensão de unha e outra, metade extensão da casa, metade extensão da rua. Eu ouço com as orelhas tampadas pela faixinha de cabelo com tecido de toalha bordada com um monograma no meio: ZS. Falta esperar a argila secar. A rosa é pra isso, a verde é pra aquilo. Temos tempo. É o ócio entre um ativo e outro. Essa meia hora que falta dá pra passar a vida a limpo como a pele. Atualizar o que o Insta não mostra. Se mostrar um pouco mais por trás das câmeras, e dos filtros, e das inflamações e rugas que agora despontam em nossos rostos. Zofia já é mãe. Casou bem nova e separou de um cara que eu achava lindo quando tinha 10, depois embarangou. Por falar nisso lá vem entrando o Daniel, que eu só conhecia de foto, bonito como o pai quando era novo, com uma camisa de time. Tem uns 15 anos. Tá um moço, hein. Apelo para esses clichês que funcionam. Tá um moço, hein. Tá um moço e quer usar o notebook pra jogar. Ela deixa. Dali então é que o Gessinger entoava os versos. Vamos ficar nós três na sala? À meia luz? Enquanto esse vaporizador que parece um pouco a minha passadeira de roupa a vapor e talvez seja mesmo só está enjambrado para cumprir outra função fica feito um canhão na direção da minha cara para abrir bem os poros e depois ela poder espremer? Isso não implica em pouco profissionalismo? Estou pagando. E daí. Eu não sou dessas que se incomoda com as coisas só porque está pagando. Não tenho bem certeza se devia mesmo me incomodar. Logo eu que já conhecia a dinâmica quando agendei o horário. Logo eu que dou beijinho no rosto da recepcionista. Relaxar eu já não ia mesmo. Ela aproveita pra dar uma saidinha da sala e me deixar sozinha com Daniel só uns 5 minutos, dessa vez não viraram quarenta, enquanto um novo produto age. Não sem antes ela me por um negócio pra hidratar a boca, que não é do pacote da limpeza, mas ela me faz, deixando claro, a título de cortesia. Ele me pergunta curioso sem desgrudar os olhos da tela há quanto tempo eu conheço a mãe dele e eu dou um grunhido para que entenda que não consigo responder. Vira pra trás e ri da minha situação de feia tampada por uma cobertinha enquanto o vapor quente continua saindo. É um adolescente dos melhorzinhos. Só diz: eu tinha esquecido que tem essa parte. Ficamos os dois rindo, eu mais modestamente porque estou com o troço de silicone cor de rosa trancando os movimentos da boca. Quando Zofia volta, pede pesquisa aí, Daniel, se a mãe pode fazer alta frequência em quem tem psoríase. Mãe, como escreve isso? Vai lá: P-S- pera, Daniel, me deu um branco. E eu ergo o silicone da boca que agora já deve ter me hidratado os lábios que chega e completo: o-r-í-a-s-e. Ele lê lento o primeiro resultado da IA da Google: sim, é possível fazer alta frequência em quem tem psori-á-se. E engata: mãe, tu teve lua de mel? Ela não acredita na pergunta e ri para o menino dizendo que se ele conhece o pai que tem, podia imaginar que não. E rimos juntas, porque eu também conheço o pai que ele tem. E me lembro que Zofia é canceriana e deve ter sofrido horrores com a separação. E, antes, com não ter lua de mel. E, antes, com ter engravidado do Daniel no susto. Eu não estava ao lado dela nestas fases, o tempo e a minha boca grande já tinham cumprido seus papéis, mas certas coisas que são sabidas uma vez não mudam mais. Ficam encravadas mais ou menos na mesma posição, como os astros no céu. E me pergunto se a curiosidade aleatória do Daniel significa que também será daqueles, como nós, capazes de dizer e fazer coisas dramáticas enquanto ouvimos Engenheiros do Hawaii. E de lembrar de algumas peculiaridades dos amigos antigos, que há muitos anos não víamos. E de voltar a seguir numa terça à tarde como quem não quer nada. E, depois, de marcar horário. E de vir. E de não ir embora na primeira vergonha que passar. E de saber ser frágil. E de pedir desculpa. E de resistir aos julgamentos. E de ter impresso nas certidões de renascimento uma qualquer coisa da procedência de origem que fica no DNA e nos documentos, desde a de nascimento. O procedimento acaba comigo toda vermelha. Desobstruída. Finalmente limpa. Foi pra isso que eu vim. Recebo as recomendações para os próximos dias e digo tchau, Zô, boa festa de aniversário do teu namorado novo que eu sei que é hoje por causa das declarações de mais cedo no Insta. Nela até tinha contexto, mas melhor pecar pela falta e eu não dou beijinho na despedida. A intimidade é um bichinho que vai e pode voltar, como os cravos no meu nariz. Tratar aqui.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Ataraxia
Papai Noel, eu quero uma
Por favor, só não me venha com Cruz,que eu não quero furar
nem pintar as paredesde preto para instalar nada a essa altura do campeonato
Lupa de distanciamento
Para ver o todo
Estando perto
ou dentro.
Desejo também um
Reco de boca
Isso mesmo, um zíper.
Fecho-éclair encaixando
Os dentes
Em silêncios
Antes de eu lançar absurdos no mundo
E cair uma arcada inteira de consequências
Eu, tão boca
aberta.
Papai Noel, ano passado eu pedi
Euforias com luzinhas que piscam e um
Encantamento elétrico e perene
com controle remoto.
Era caro, o senhor não trouxe,
Eu ainda quero,
Mas se não der de novo
Esse ano pode ser só um
Cantinho
(mas seguro e acessível)
De pensamento iluminado,
Analógico mesmo,
Em que breve eu volte a
pensar bem
No que eu já tenho
Quando desencantar, acelerar
ou
escurecer demais.
Papai Noel, eu quero
Um removedor de culpas
Uma âncora de devaneios flutuantes
Um par de boias com acento, das de braço, e
Um mistério portátil (daqueles mais simples)
Ah! Podem ser também
Duas passagens aéreas
De ir e voltar
Que me façam, simultaneamente,
Esquecer e lembrar
Que eu trabalho pra isso
Aí, para aproveitar a viagem,
Pode levar embora em seu trenó:
Esta máquina de remoer;
os Supositórios
digo, as Suposições
que por espécie de necessidade tenho enfiado
no meio das bandas
na tranquilidade amena
— nas quais penso tanto
Que me fazem menina mal criada
E não merecedora
Papai Noel, se tiver que escolher só três,
quero muito:
- Presente (desembrulhado)
- Não cansar de ser alegre
- Ter a quem pedir
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
A culpa é do Dan Brown?
Os novos agroglifos de Ipuaçu
E as marcas do deserto
no Peru
Assentam-me no juízo
um fascinante chapéu
de abas largas
de alumínio
e, nas mãos, uma CNH
pra mystery machine
do Scooby-Doo.
Cifras de César,
Runas
Arcanos
Toda ordem de símbolos
ocultos,
Moais, rituais
em códigos
— desvendados ou
ainda não
mas quase,
é só se dedicar
um pouco e
Descriptografar.
Já se passaram duas décadas desde A Lenda
do Tesouro Perdido
na Sessão da Tarde
e, muito misteriosamente,
ainda não confesso ser o meu
queridinho.
Fica descoberto:
Eu ainda sou a mesma
eufórica vibrando quando Nicolas
Cage tira
aquele par de óculos de trás
de um tijolo
ou, no fim, molha as pedras do Rushmore
a fim de encontrar
Cíbola.
Eu quero é ser dos que
Sabem.
Dos poucos que
Chegaram lá.
Cicada 3301,
a mariposa impressa no poste
batendo asa,
que avisa:
Não confie no óbvio e
busque o oculto.
Dos artefatos egípcios
ao chão sempre quadriculado
de segredos
das Lojas,
Persigo cem por cento
Envolta
a lama a ser limpa
de qualquer incógnita
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
Epifania
Acordei
Renascida
Sob a luz da ideia: Não quero te ter
Quero te ser.
Os hobbies e afins
Os tins, bens e tais
Tudo muito XY.
Não te sendo
hei de te atravessar
às vezes
Como um fantasma.
De um lado a outro assim
Transparentinha,
Fantasmagórica,
Sem sombra, com dúvida
Sem ter presença sentida
Através.
Daí sair sem alarde
Transpondo a matéria em-
bora impregnada
Da tua parte
mais glutinosa
— e, para mim, adesiva.
Tu meio rótulo
em frasco de plástico.
Eu nunca mais
inteiramente limpa.
Nunca mais compacta
Nunca mais lisa
Embora agora descoberta
Quando some o rastro
ainda é conhecido
o caminho.
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Chovia
Eu sei que chovia porque ouvia o barulho. Não era lágrima, era chuva. Não era água, era cansaço. Era a nuvem pesada em cima das nossas cabeças trovejando, trovejando. Uma leveza que nunca vinha inteira. Um sol e luz que não duravam. Somos solares, percebeu? Somos solares. Somos fruta das mais cítricas. Somos tropicais, mas pra que chovermos tanto? A tela escura e a chuva e esse tempo que não passa até chegar amanhã de manhã com alguma clareza. Cada pingo de água é uma vez que eu me senti ruim nos últimos tempos. Ruim quer dizer muito: amarga, grosseira, equivocada. Ruim também quer dizer pequena. Ruim quer dizer pior do que podia ter sido. Ou pior do que na imaginação. O que se pode fazer com essa chuva? Que cai. Toca fazendo barulho. Cai como as palavras mais duras caindo da boca sem retorno, nada podendo ser des-chovido. Essa chuva molha as reflexões que me recuso a fazer. Abatuma o bolo. Os ruídos e estalos. As manias. Desfaz as construções — todas de areia, barro e pó. Essa chuva desmancha os montes. Lava mais um dia pra fora do calendário de brisas amenas. Pesa o clima. Um fenômeno meteorológico que nenhum mortal, como nós, parece poder controlar. Chuva que não respeita mais previsões. Planos. Outro natal. As roupas no varal. Abri de novo a janela e não era impressão. Chovia. Abri um guarda-chuva e molhava, mesmo assim.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Cyclamen
Quem te ensinou a subtrair
Números negativos
Viu também chegar a conta
Do essencial do fim e só
por etapas
— que os detalhes sórdidos têm pontas
Sempre soltas e muito agudas —
Tornando-se
Despicienda
A verdade inteira
Tamanha a evidência
De que algo muito grave
Deu errado.
Quem deu-te a saber
a esperar a pressão
pra explodir
em provocações e lágrimas
De revanche e remorso
Ignorantes de todos os avisos
Prévios
Luminosos e sonoros
De que merecias mais
(e não cada vez menos)
Viu a vida virar
essa novela
Boa de acompanhar
sentado
acomodado
e olhando de fora
Ruim de ser
Protagonista
ciente, consciente
Até dos próprios deslizes
A vilã
A anti-heroína
Digo mesmo:
Uma persona
Com tantas
camadas
De moralidade ambígua e
mea culpa e
Desejo
de sair
por cima
além
Do que permitem
os tropos narrativos
terem as mocinhas
para que delas o público se compadeça
Em uníssono
Em unanimidades
burras
E clichês
Como querer
Merecer
Não ter
E enlouquecer
de coragem
De enlouquecer.
O último a sair
paga a conta e
apaga a chama
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Frau Valente
Clarice era Valente de casada
e abdicou da condição
sem deixar de ser
***
É redonda a cabeça do alfinete
em todo lugar do mapa
em que estive enquanto pensava
o que não devia
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
PEMDAS
(Manhã eu
dou a ré da minha vaga
O vizinho do bloco D já saiu
Me dando ângulo e coragem
Na rua dos ipês
só tem dois carros
Baixo os vidros
Respiro a música
que posso ouvir bem alta
sem atrapalhar na condução
Todo dia de manhã
Eu dou Sorte
Acordo tarde
Atraso calma
e sem sanção
Posso de novo poupar em vez de correr
Caminho rápido
Conheço
Reponho
Desejo e prontamente
Realizo
Festejo
Um descanso, se quiser.
Manhã bem cedo eu dou vista à Sorte
Às vezes não a reconheço
Sigo-a perseguindo
o resto do dia
desviando dos latidos
do mundo
Só no final computo
Os fatores
Os resultados
Vislumbro
As Subtrações alheias
Faço um balanço
Como nos colegiados
O dia é sempre bom
quando pode começar
Com Sorte a consciência
máxima do privilégio
É dar e ver
Quem sabe até louvar a
Sorte tida
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
Tome notas - sabor canela
Vestígio
Minha mãe costuma dizer
"Quem a gente é
vai conosco a qualquer parte."
— não cita autor e não duvido a
canetada seja dela.
Minha mãe é serrana e
"Quem a gente é
vai conosco a qualquer parte."
— não cita autor e não duvido a
canetada seja dela.
Minha mãe é serrana e
um pouco rapper.
Seu saber
conciso.
conciso.
Sua voz
marcante.
Sua verdade
raiz.
O que se é
Com consistência
não desgruda mesmo fácil
ou por deslize
Do nosso pelo
Da nossa alma
não desgruda mesmo fácil
ou por deslize
Do nosso pelo
Da nossa alma
A reputação é um destino
— que nos precede;
sucede
sucede
e acompanha.
***
Obrigada, Gladiador
por me deixar ser a Besta
às vezes
***
Tão difícil
surpreender
um ansioso
***
Saudades
Ciúmes e
Pêsames
São sempre um pouco plurais
***
Tear
Um nó em cada ponta
senão desfaz
o trabalho de tear.
(Re)aprendi o ponto
alto
Só pra fazer render
o fio
que une e conserta
buracos abertos
(Re)tecer é magia de
i
x a
r
de novo inteiro
Valer um elo.
***
Desinvestir.
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Girassol
Do pó viemos todos — tu retornaste antes.
Estar preso é como estar um pouco morto.
Estar preso é um interdito, é sentir frio, e sentir medo, e se sentir bem mais sozinho quão mais cheia for a cela, tanto que já não se é mais as coisas boas que foram sidas antes.
Estar preso é se sentir o Aquém-Homem. À margem dos Súperes.
E lá vem mandado ser cumprido, de novo, todo dia de manhã um pouco mais, e tu com o riso nervoso, de novo, foi como um susto, de novo. E eu sei que tu rias no momento exato, numa espécie de soluço mostrando os dentes. Os olhos arregalados. Aquele cabelo. O coração na boca. Tu sem as rédeas da situação implorando, em silêncio, uma misericórdia que a vida agora talvez pareça não ter te dado nunca, mas eu acho até que deu. E rindo. Rindo como quem Coringa: tu indo de Augusto a Tramp em um instante sem nunca ter tido meia aula de clown. Trocando as vestes ali, ao vivo, na frente do agente penitenciário. Ser palhaço tu sempre soubeste. Faltou eleger bem a modalidade. Viraste um pouco do que não queria parte da plateia. Viraste tua própria plateia quando houveste por bem converter a tua dor em riso. Dor mas não só: dor, vergonha, desleixo, desistência. Um jogo de imitação. E aí também foi tanto luto, e foi dilacerante, e foi a queda de um púlpito alto com a escova de cabelo imitando microfone, e depois riste mais um tanto, e o teu riso era tão falso, e o teu riso era sintético, e o teu riso era um pouco branco no canto do nariz, o teu riso era um estado da matéria granulado, o teu riso custando o peso da grama do ouro e tu pagando porque precisava, e nisso não pagando o que de fato precisava. Enquanto isso recolheste, como em concha, pra nos proteger de ti ou pra se proteger das nossas reprovações, que afinal isto tu sempre soubeste que te daríamos de mão beijada.
Mas o sangue amalgama os elementos heterogêneos. E agora funde essa água da chuva e o pó; do chão; por baixo do colchonete. O sangue chora a tua angústia escorrendo por entre as grades, desce sem freio a Serra Canoas, lubrifica uma compaixão toda nova que atravessa a BR. A mesma de quando nos fazes rir. E tudo que mordemos, embora seja nobre, tem o gosto de merenda de presídio. É o sabor insosso de saber que talvez nada mais te ponha na linha, ainda que o fim do teu desespero de hoje tenha preço.
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Dália
Daí do lado de lá você se tornou onipotente? Pergunto porque às vezes queria ter pra quem rezar e fosse humilde. Alguém que já foi de verdade e encostei com os olhos, e as mãos, e os defeitos, mas na passagem de tempo e plano pudesse agora não apenas me ver, mas também saber e poder. Tudo. De preferência do céu, que é pra ter bom ângulo. Queria que você ainda fosse de carne e osso onde estiver, ainda que me seja invisível. Porque confio mais em nós, os imperfeitos, cujas imperfeições se sustentam em pé ajeitando-se entre as carnes e os ossos. Sou capaz de uma fé cega em quem pode falhar. Acho que só isso pode dar complacência. Empatia. E cancha. Embora também possa ferir. Sinto que ter vivido, e morrido, e falhado no intervalo, é mais confiável do que nunca ter sido visto. Talvez por isso se tenha inventado Jesus? Daí dá pra saber? Escuta: Jesus existiu mesmo? Dois mil e tantos anos atrás? Agora vaga por aí, junto com todos os outros? Está sentado? À direita? A história é só um exagero ou foi inteira inventada em nome do dogma? Me diz: quando se chega no Além, todo mundo que partiu está reunido em ciranda ou fileira nos campos verdejantes? Exatamente como faz crer a Igreja Católica? Tem rodízio de almas, como creem os espíritas? No céu também há tempos diferentes? Ciclos? Moitas? Feriados? Descansa-se? Diverte-se? Há uma enfermaria de aflitos pra quem chega? É cada um com a sua varinha de condão? Só os melhores? Queria que você sim. Não pra me resolver a vida, não, não, isso não. Eu já me acostumei que isso não. Nem ia ter graça. Só queria que você tivesse agora um poder, não, um poder também não, uma diversão, mas também não é isso que quero dizer. Queria que você tivesse uma justiça? Talvez uma influência. Sim, uma influência. Que transcendesse o exemplo. Algo como um voto de Minerva em resoluções importantes tomadas de assembleia para o lado de cá, como quem fica com que mágoa e como elas se dissolverão enquanto corre o inventário. Queria que, assim que chegou aí, você possa ter tido um tête-à-tête com Deus. Com o Seu Deus. Ou pelo menos que seja, já a essa altura, uma das próximas da fila a tê-lo. Melhor ainda: queria que você pudesse ser um pouco de Deus, agora que também não posso mais te ver. Que Ele existisse mesmo, de verdade e só pra te emprestar a mágica da Criação. Que você conhecesse e quem sabe interferisse um pouco agora no que nos virá depois do livre arbítrio. No que sentimos de mais revolto. Todas as explicações que nos faltam; as que sempre nos faltarão; do que sempre nos faltará — faltava mesmo a ti, a quem Deus era o pastor —; das explicações que abrem espaço para outras perguntas novas chegarem na medida em que a vida avança e os caminhos se modificam. Sempre definitivamente. E eu tenho tanta curiosidade. Queria ver como o mundo seria se pudéssemos mesmo ser inteiramente conduzidos pelos teus caprichos e crenças. Rio só de pensar: seríamos tão mais sovinas. Usaríamos até a última gota de pasta de dente e perfume. Mas isso eu já faço. Então vou dizer assim: queria que Deus te desse boca. Pra poder me responder nessas nossas conversas que eu ainda poderia e queria ter, se pudesse rezar, e rezaria pra ti, e saberia que sou ouvida ou lida. E, enfim, respondida. Queria que na sua dimensão você ainda tivesse olhos de enxergar e voz de acalantar, exatamente como teve antes. Dá-se às coisas o sentido que se quer, eu sei. Incluso para a morte. A morte é não saber. A morte faz falar com quem possivelmente não escuta. E torcer pra continuar chegando a mensagem. Para que saiba. Sinta. Veja. Possa. Fazer gestos, ações e acenos. Com as mãos, que são mesmo os instrumentos de fazer coisas.
Se eu soubesse que a beata virou mesmo um pouco Deus e agora tudo sabe, perguntaria de amanhã.
Enlaçaria os dedos pra te
invocar e perguntar
se isso é normal.
Pediria paz
nessa inconstância
que é viver —
e um sinal.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Cativo [final]
Havia uma lua plantada
no centro do topo do céu limpo gelado
irradiando luz difusa da noite
sobre as nossas vidas
No começo
do fim
da semana
Enquanto eu ia pra casa
na sexta
Estive mentalmente sentada
no chão (que agora imita madeira
como criança construindo castelo
na areia
da praia
que a água salgada pode & há
de vir
Tomar
Com dois joelhos pro mesmo lado,
Pensando em
Nós —
oitenta e vinte
por cento sempre
Em construção,
Pensando:
Com que material
cimentarei
as bases de alguma fortaleza
que nos protegerá
por certo sempre
Das intempéries
Chegadas
em discos voadores
pra sacudir nossos quase mortos
mas muito vivos
e parvos
dilemas de dois
Tão ressuscitados quanto um Cristo
nos dias seguintes
Pensando:
Em que castelo; ou
Protegida por que fortaleza
Eu posso ser princesa
Se você me vê através
De todos os espelhos
em que não se reflete;
Desse domo de vidro
fosco
atravessado por vultos;
em brumas
imbróglios
Em códigos
Feiuras
Onde já não se guardam mais nem
os segredos
sadios?
Você me vê?
Quero fugir
E me proteger
Dos conflitos que causo
Intransigente
Eu parto
pra briga
Eu travo
batalhas épicas
em nome de uma
Justiça
burra,
com as próprias mãos
e os próprios goles,
ilegitimamente
passiva.
Você, não.
Você não parte
Você fica
Você pivota
Você só entra
em guerra
por
Paz.
Me condenei,
Sou culpada:
De um cinismo
De amor
de
-scrente
E agora quero voltar
a ser
inocente.
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Tome notas - sabor groselha
Palíndromo silábico
Quanto tempo
vale y leva
o insight
***
“Mas tinha tudo”
É que a felicidade alheia
nunca é vinculada
à vossa inteireza
***
Déficit primário
No fim das contas,
não sentir em dívida
pelas expectativas que criei
nas pessoas
***
Out of my own league
Como é que eu faço
pra alcançar
o sarrafo
que eu ergui
***
Quem dera fosse bem pavimentada
A estrada que dá
na última montanha-
horiz'onde se esvai
Subir fácil
Poupar esforços
Poder conter o sol com toda força
(e as duas mãos
A fim que o bom do dia
claro
nunca fosse embora
***
Desinvestir.
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Marta-Viva
Marta quer sentir que vive.
Quer viver mais
do que trabalhar,
mas sem não tem la plata
pra comer e morar.
Quer viver mais
do que trabalhar,
mas sem não tem la plata
pra comer e morar.
Porque aprendeu
a palavra
C a p i t a l i s m o
A des-
A des-
culpa não lhe sai da boca:
Ora o mundo gira à base
dos suores,
especialmente aqueles
Ora o mundo gira à base
dos suores,
especialmente aqueles
escorridos pelas têmporas
de quem para tudo socializar
de quem para tudo socializar
é a única perfeita solução;
Ora encuca com aqueles outros
a quem o trabalho
Ora encuca com aqueles outros
a quem o trabalho
é máxima da vida,
e fecham o nariz,
e trabalham, e trabalham,
E prosperam
e fecham o nariz,
e trabalham, e trabalham,
E prosperam
em ignorar
um Desconforto que vive ali
todo mês
sem honrar o aluguel
Só não tem nome.
Em ambos se reconhece
Visto que alterna entre
O workaholic e O sentir
que vamos todos morrer
Bem loguinho e de fadiga.
Só mesmo não se identifica
Co'aqueles terceiros
A quem o Desconforto de um século
tardio como o C a p i t a l i s m o
também vive ali
A atormentar, como pulga, saltando em coceiras
Que resolvem arranhando chamar
C o m u n i s t a s
de vagabundos que
de vagabundos que
não querem mesmo trabalhar
Ainda que,
bem conversadinho,
Trabalhar seja uma coisa que
Pouquíssima
gente
queira
realmente.
Não é bem
questão
de
Querer
Querer mesmo,
Marta só quer
Sentir que vive.
Ontem comprou três picolés gourmet
Ontem comprou três picolés gourmet
inflacionados
que valeram — a pena;
um prazer culpado;
e a hora extra da terça;
derretendo na boca um gosto de
água e
fruta congelada
e merecimento.
Esteve vivíssima.
Outro dia se pegou bem viva
Porque o xampú
Porque o xampú
tinha
acabado e dinheiro de sobra
Pra comprar outro bem bom
Pra comprar outro bem bom
De pronto,
Um só,
Que é pra não acumular nos armários.
Fazendo com pouco uma espuma, dia a dia,
De limpar
a vida acontecendo
Os ciclos acabando
E as unhas vem crescendo
Meio tortas, por dentro das meias
Por dentro das botas.
Marta não quer sentir que morre
Um pouco a cada dia
E, para tanto,
Vezenquando hiper-
valoriza
Um cafezinho,
Um xampú,
Um dia de sol,
Três picolés,
Um básico perrengue.
Aprende um pouco por dia a lidar
Com tantos Desconfortos
Inconsistências
E hipocrisias
Quanto tem qualquer um
E outros até maiores.
O trabalho empurra Marta
para a frente
do P
r
e
c
i
p
í
c
i
o
em que vira Morta
caso se jogue sem cuidado e ressalva,
E meio-dia estende a rede
Que não lhe deixa
falhar
empobrecer
diminuir
esborrachar ou
morrer.
Mas Marta não quer só viver.
Quer sentir que vive.
Para desopilar,
Marta-Viva é bem capaz
Marta-Viva é bem capaz
De assistir a um filme cabeça
De fazer um poema de amor
De fazer um poema de amor
De inventar um jeito de viver
— avant la lettre —
Que inaugure o gênero
Marta-Viva
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Eco [final]
A vida real é o melhor feitiço pra desconhecer. O tempo, sabedor de todos os caminhos depois do fim, o tempo, sabedor de caminhos quaisquer do durante. É o cotidiano quem gasta e pui a tessitura do inventado. Digo mais: o amarelo daquele semáforo tem cores de "Fulva" e o dúbio do sinal me faz recair em "Grafomania". Sim, Laura, um narrador pedante bem dentro da minha cabeça ainda faz isso o tempo inteiro. E com as maiúsculas estilizadas na cursiva, ainda por cima. Pior: pratico o vocabulário arcaico só pra reter a acepção de palavras novas.
Não te endereço mais, porém, a maioria das minhas divagações. Estas frases toscas que acabei de escrever, como as das aulas de novo idioma pra impressionar professor, são especiais só porque gastam de um jeito rústico e de propósito as duas primeiras palavras que, quando aprendi o que queriam dizer, guardei anotadas num bloco, por hábito e pretensão, para um dia escrevê-las pra ti, sem as aspas, mostrando que as sabia bem.
Mas já não podia.
Retive-as até hoje mais cedo, no íntimo, como se guarda a um segredo, junto com a imagem mental e iluminada que seus significados me acendem, com o barulho das buzinas do trânsito escoando lento aqui na minha frente e tudo.
Eu fiz sem fim de vezes este mesmo trajeto, às vezes mais longo que o necessário, muito atento, só pra ter chance de assisti-la à distância, agitando bagulhos dentro da bolsa imensa até encontrar o molho de chaves pra entrar em casa, toda a vida apressada. Eu percorri sem fim de vezes, com a imaginação e com a esperança, esta mesma cena — na qual eu sempre a revia magicamente naquele lugar mais provável.
Mesmo depois de saber que já tinha até mudado de endereço. E de estado civil. Mesmo depois de saber que ao se afastar de alguém, desconhece-se esse alguém e seus percursos, porque não se acompanha mais de perto as mudanças de endereço, de estado ou de ideia. Mesmo depois de saber que às vezes se desconhece alguém mesmo estando bem perto. Mesmo depois de saber que, se for parar pra filosofar, a gente nunca pode confiar que sabe verdadeiramente alguém.
Parei sem fim de vezes nesse semáforo com o amarelo fulva. Poderia ter seguido — mas era como se, mesmo bem viva e caminhando por outra freguesia, a Laura ainda pudesse vagar, com todas as penas de sua alma atormentada, ainda o mesmo e velho e conhecido fantasma, na versão que construí e pela qual me apaixonei, só pra que eu pudesse revê-la. Repetindo-se, idêntica, imaginada, onipresente, ou pelo menos em todos os lugares em que eu sei/imagino que ela já esteve. Como um eco. Um eco alimentado. Fabricado. Invocado, com afinco (três descargas e um espelho, como a Maria Sangrenta dos banheiros de colégio). Um eco — por isso mesmo, unilateral. Amiúde. Um eco zunido. Ensurdecedor de outras vozes, mais reais e melodiosas.
Ressoam em mim as memórias das todas ocasiões em que, vendo um carro minimamente parecido com o dela, com o coração ainda disparado, eu esticava o pescoço para conferir a placa. E nunca eram os mesmos sete dígitos de que só lembrávamos no estacionamento depois de fazer piada sobre o que significavam as letras, em livres associações, na forma de micro poemas bem humorados. Nunca saía pelo visor da calculadora do meu para-brisa o resultado certo na prova real da matemática nova que um dia inventamos para tentar decorar algarismos numéricos. Muito provavelmente, em alguma altura de todos aqueles anos, ela também já houvesse trocado de carro, inclusive, e o que eu perseguia era apenas a propagação do ruído que eu mesmo emitia no universo. Já disse e vou dizer de novo: um eco.
Porque nunca era ela saindo do banco ao lado da farmácia. Mexendo no cabelo, de costas. Ou cruzando a faixa de pedestre carregando sacolas enquanto ajeitava os óculos. Nunca era ela de xadrez. Nem de vestido. Nem mesmo de azul. Nunca era ela de mãos dadas com outro cara de estatura semelhante à minha passeando pelo shopping. Ponto turístico qualquer. Nunca, nunca mesmo, era ela. Era sempre uma sósia. Uma dublê de sobrancelhas. Um arquétipo. Uma minha projeção no horizonte inalcançável, etereamente intocado, mesmo a passo corrido.
Por tanto tempo qualquer símbolo que remetesse à Laura, quero dizer, que remetesse à ideia que conservei da Laura, foi pra mim como um ídolo!
Por tanto tempo qualquer mínimo sinal que me lembrasse dela e do que senti com ela foi arte sacra da minha devoção por suas heresias e por seus milagres até então insuspeitados!
Agora eu custo a acreditar que toda a fé já se esvaiu. Que demorei tanto pra aprender a lição que a Laura deixou ensinada quando seguiu a própria vida. Ignorei a lição, tangenciei a lição, escamoteei a lição, mesmo tão vívida e clara, o quanto pude.
E agora a tenho bem sabida.
Parado aqui, escrevendo, deste lado de cá dos sinais fulvos que se acendem e se apagam pela cidade, alternando-se, eu consigo perceber que namorei por mais tempo àquela vontade de reaparecer de surpresa, certo de que provocaria nela um abalo sísmico e sísifo capaz de nos reunir, ou quem sabe todos os Ford Fiestas do trânsito, do que a ela mesma, em pessoa, carne osso defeito e dilemas, para além das letras que se articulam sem parar em construções bonitas do meu vocabulário.
Hoje me dei conta, parado aqui, neste mesmo local em que conjurei os desejos mais infames de, pelo menos, revê-la, ter finalmente dessensibilizado para tudo — até para o uso sem pudor nem jeito das palavras bem novas que eu tinha guardadas na gaveta, como presentes, com bilhetes. Fulva. Grafomania.
Agora sou a pantomima de uma cobra que nada precisa dizer para que a gente se dê conta, assistindo, de que ela mesma percebeu que abocanhou é o próprio rabo, que doeu, puta que pariu como doeu, e basta que tenha doído tanto para que, num gesto de iluminação divina, tremenda, num belo instante, recobre o tino e se cuspa. Depois me estico em outra direção. Para ainda mais longe do fim, ou do dano de mim.
O tempo, sabedor de todos os caminhos, banalizou os nossos absurdos. Ensinou-me que ao Santo Deus de Coincidências não se faz promessas, porque não aceita chantagens nem precauções. A vida nunca se cozinha em slow burn: a vida às vezes passa do ponto, noutras se come crua. Já passou muito da hora de eu tirar a Laura da geladeira (e descartá-la, mesmo sem tê-la preparado), mofada como ingrediente velho, para dar aos porcos, que tudo devoram e reciclam, para depois fazer virar torresmos novos. Ela não merece mais nem metáforas melhores.
Hoje constatei ter removido o último obstáculo — distante — no qual a reflexão das ondas de som batia e me voltava. Hoje parei naquele mesmo semáforo e esqueci um pouco o que queria dizer Fulva, embora bem me lembre o que sempre quis dizer Grafomania.
Excomunguei um beijo de adeus e misericórdia na testa do busto de marfim que um dia esculpi em tributo para Santa Laura na praça de armas do meu imaginário antes de destroçá-lo inteiro, com violência, às tacadas, transformando-a em poeira fina, diminuta. Que bem no fim eu sempre soube que precisaria varrer de mim se me quisesse curar dos acufenos. E ainda que, em agonia, eu tantas vezes não pude suportar a constatação de que devo amar pelo que tenho e não porque imagino, com esse moai de Laura já desfeito, o que sobra pra adorar é o que existe ao redor, empoeirado. O que sobra pra adorar é o que existe ao redor. O que sobra pra adorar é o que existe.
quarta-feira, 2 de julho de 2025
segunda-feira, 30 de junho de 2025
Cadernos de anotar a vida urbana
As vagas de garagem de um prédio antigo são para sempre do tamanho dos carros que circulavam no ano e local em que foi construído. O porteiro pode virar perito em dar pitaco de manobra, vem de frente até aqui, agora distorce tudo e vai endireitando, mas as colunas largas da estrutura se pronunciam duríssimas sustentando sete, dez ou talvez doze andares inteiros ou mais, uns quatro apartamentos cada. Por isso não há meio de magicamente alargar os espaços. Sempre se sabe que é este o defeito, imutável, das moradas verticais dos grandes centros. E haja manobra com o assistente de estacionamento apitando muito nos sensores da frente e de trás até enfiar uma SUV “robusta” (como anunciaram de boca cheia na publicidade off-road, mas mal e mal ‘guenta a 470 esburacada no trecho sem duplicar) na vaga milimetricamente planejada — para um Celta, no máximo. Quando muito uma Brasília.
Se bem que eu nunca vi um Celta com direção hidráulica ou câmera de ré.
Então talvez não me caiba (a mim, que entendo mal o tráfego de seis pistas que só vão pela Visconde de Guarapuava, por qualquer razão hoje divididas de três em três por canteiro) praguejar contra os avanços da engenharia automotiva. Ou os retrocessos da solidez da engenharia. Nem contra outras modernidades mui urbanas: tratar pet por descendente; viver de ser digital e influente; aleitamento materno de filho com muito dente. E eu assinto que, realmente, só vivendo pra saber, mas até que se prove o contrário eu tenho uma única vida e talvez nessa, nessa aqui, pra concordar, concordar mesmo, não vá dar tempo. Então só observo. E comento.
A cada ida eu me convenço mais que os jeitos de viver vêm das experiências. Do timing dessas experiências. Do que se pôde fazer com elas e quando. E eu até posso crer que as possibilidades asfálticas de uma metrópole são tantas mais mas a liberdade, a liberdade mesmo, a de ir e vir, não consegue ultrapassar um parque belíssimo ou outro, não consegue se sobrepor às agruras apertadas da mobilidade urbana que já foi referência e hoje sucumbiu ao Uber, nem ao drible dos mendigos aninhados vadiando nas marquises, ou dos pombos dando rasantes pela calçada dos camelôs. E, finalmente, não consegue se sobrepor às solidões submergidas pelo pesado da falta de conexões reais e mais histórias compartilhadas. Há uma falta de encontrar conhecido nos hiper mercados. Há uma mentalidade a que chamarei shopping center: tudo é prático de comprar, mas não se sabe mais se é dia.
Somos produto do nosso tempo. De cada arranjo de circunstâncias. A mudança de um fatorzinho que seja da equação muda, sim, os resultados. Que se dirá dos grandes fatores. Ter teatro, feira livre, Guairão, museu, Leminski, choro na praça. O advento das mini-saias. Mas é preciso aprender a fazer balizas. E não é porque podiam ir que foram. Menos ainda de mini-saias. Basta-nos ter sempre para nem querer, às vezes. E não é porque havia passe livre pra cultura que se tornaram cultos (alguns sim). Nem é porque descobriram antes o que era um Cosmopolitan que se tenham tornado (e entornado) cosmopolitas (alguns, sim).
Na vitrola deles tocava o que lançava de mais fresco na cena. A versão acústica daquele show internacional (que puderam ver ao vivo) na mídia física recém chegada, parecendo que revogava as anteriores. Sei que este multi-player de fita cassete e CD foi substituído antes por um DVD e agora está aí pra bonito. Antes, muito antes que o Pioneer pirata véio de guerra que só apareceu lá em casa depois das primeiras expedições profissionais do meu pai ao Paraguai mais pro fim dos anos 2000. Na cidade grande tudo chega antes — e tudo se move antes, ainda que pro fim da fila.
Estas paredes de prédios altos construídos há tanto tempo contam a quem está fora a história dos habitantes de dentro das casas. Dos donos das casas. E, sobretudo, das famílias dos moradores das casas. Os altos andares contam de onde se veio e o que se vê da janela é a densidade de uma legião de estranhos. E placas. Não as rachaduras, mas as cores e texturas. Arquiteturas. Cômodos labirintos. O nome da rua, decorado e tradicional, que já constava do mapa físico. Perto de que outro prédio. Bairro cercano de um estádio, e não do outro. O centro cívico. O clube de ir nadar e casar. As distâncias longínquas das sedes campestres. Os elevadores e escadas rolantes, que aprenderam a usar desde novos. Os móveis planejados. Tudo bem antigo. Tudo bem datado. Como se o direito ao acesso fosse um carbono de contar idades da cidade em ritmo diverso, sempre um novo número. Já está a contar um carbono trezentos mil.
Já que ter história é mais import, digo, imponente do que ter dinheiro, em molduras enormes devem estar e permanecer orgulhosas as fotos em preto e branco das construções que rendem, passivamente passadas de pai para filhos (que reivindicam, esbravejam e digladiam por seus quinhões e alugueres) desde o avô, o bisavô, tataravô. Eles sabem de cor a cor do concreto desde um tempo em que, que a gente saiba, era tudo mato. Eles quase não viram mato. Nem os pais. Nem os filhos. Não são herdeiros de quem viu. O que eles foram é funcionários da Caixa Econômica. Professores de idiomas. Sucessores de Gutenberg. Por isso aposentaram cedo. Tudo isso se vê no pé direito alto. Os cinco ou seis pregos finos e tortos que costumam segurar corajosamente os quadros que escolhi a dedo na promoção para a sala lá de casa que o digam: as paredes dizem mesmo, e dizem muito, sobre quem mora.
Se eu fosse uma traça, a minha mega-sena seria encontrar um prédio com nome e sobrenome quatrocentão num bairro nobre de um lugar bem úmido e frio e viver para sempre roendo até o caroço das páginas amarelas de clássicos em inglês ou português do império. Começaria de trás pra frente. As capas duras de couro enfileiradas com títulos dourados? Seriam por mim roídas com determinação. Só pra ver se o devorar das letras de decoração sem pausa, há tantas gerações na família, dá barato ou só cansaço.
As vagas de garagem são moldadas para sempre do tamanho da época e lugar em que foram construídas. Talvez as cabeças também.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Cadernos de anotar a vida bucólica
Também no campo acabam os domingos — como o pão de forma caseiro, em farelos fininhos sobre a mesa, sob os ecos da Copa Mundial de Clubes a tarde toda rolando, como bola, na TV.
Acaba, com cartela verde, o bingo de Santo Antônio ao anunciar o narrador, com suspense, depois de pedir rogai por nós: cinqueeentaaa eee ooooitooOo. É que se tem uma coisa que santo adora, é jogo.
Acabam as vendas das bandeirinhas e, depois, o leilão do bolo principal, com o consórcio de compadres que se querem saber prósperos dando um vistoso lance de setecentos e cinquenta reais fora o baile.
Acaba o quentão, antes do fim da festa, porque a cozinheira que preparou (“eu vou bem! cada vez mais bonita, mais nova… e mais gorda!”) gargalha a autocrítica bem humorada nos avisando que não podia mesmo prever tanta gente caridosa fora do tempo da política. E, ainda assim, quando é hora de cantar a pedra treze, o globo misteriosamente cospe “doze mais um” — e uns setenta por cento da festa se acotovela cúmplice, com risinhos abafados, dizendo ou pensando que “treze aqui não se cria”. O ruim mesmo é que empresa grande também não.
Sei que estes bancos enfileirados sem encosto são tão duros quanto quase todas estas cabeças, tantas que reconheço e que me conhecem desde que nasci, e que não veem motivo nem tiveram qualquer circunstância de pensar muito diferente entre si ao longo da vida.
Sei que este líquido viscoso que está sendo despejado fumegando nas tigelas de buffet de restaurante a kilo, ao lado dos pratos com queijo ralado e cheiro verde cortado bem miudinho (que não porei no prato), terá o sabor conhecido — e um pouquinho gorduroso — de merenda de colégio em prato azul de plástico.
Sei, ainda assim, que estar aqui, cercada destas pessoas, tem o gosto confortável de regressar à casa.
Na qual minha mãe não dorme sem antes lavar os copos e as taças, nem sai do quarto de manhã sem antes arrumar a cama. A casa que tem sempre no fim de semana algo de molho ou batendo na máquina, outro algo que foi lavado antes balançando no varal, outro algo entregue ainda ontem pelo Mercado Livre, com o sol de sempre ali batendo na varanda e entrando pelas basculantes verticais da garagem. E se quando chego adquiriu-se um qualquer vício novo (como passar a ponta da língua no vãozinho entre os dentes de baixo), basta-me advertir-lhe com a seriedade que sempre usou comigo que, brevemente, concordará que sim, precisa parar com isso, mas para se convencer racionalmente vai forjar um pequeno aforismo que serve de lição para nós duas: “Meu cérebro tem que aprender a controlar a minha língua”.
Casa na qual meu pai, que cozinha e teima muito melhor que nós todos juntos, mexe a panela em que frita com bastante banha de porco o queijinho com ovo que faz para me agradar de manhã bem cedo, enquanto repete com tom de sabedoria suas teses: de que o que está matando lentamente as pessoas, na verdade, são as verduras (com tanto agrotóxico, onde é que já se viu, o tomate se estiver meio verde se sente o veneno na boca); de que os ratos devem ser emboscados com doses de veneno lento, porque se comunicam de forma senciente; de que o aquecimento global, se for parar pra pensar, pode nem existir, porque desde que o mundo é mundo há enchentes, e este calorão, e os ciclos normais da natureza de tempos em tempos, e não sei quanto por cento, agora lhe falha a memória, de água que compõe a maioria do planeta, e por isso nem em cem mil anos daríamos conta de interferir nela inteira com o pouquinho de terra submersa que a humanidade habita.
Estas suas certezas, sempre tão enfáticas, ensinam-nos sobre o (seu) mundo, e por certo devem confortar-nos para não pensarmos mais a respeito, nem sofrermos, nem preocuparmo-nos, nem nunca mais cogitarmos não lhes dar netos por qualquer bobagem assemelhada (sem o embasamento lógico na coerência que alcançamos com nossos conhecimentos empíricos), imagino. São parecidas com o fato (por ele comprovado) de que o único negro que conhece é muito amigo seu e nunca sofreu preconceito de ninguém.
Os tempos mudam, é claro que mudam, muitas vezes até para melhor, mas a marcha da subida é tão lenta que quando algo muito fora da Curva da Banana acontece, espanta.
Especula-se, a título de novidade na praça, sobre histórias novas que, mesmo sendo novas, têm nome certo, sobrenome e toda a genealogia, como a da mulher que viciou no jogo do Tigrinho; as razões que levaram o marido de uma a implantar cabelos e agora parecer mais novo; e como estufa o peito empombado quando anda o marido daquela outra.
Não há, porém, novidades ou vácuos de poder na presidência do CPC da capela — que é uma baita vitrine para os jovens e aspirantes a vereadores, com ideias tão, tão antigas que parecem os mesmos desde os tempos áureos, quase imemoriais, nos quais o pavilhão, a rodoviária ou a pia da cozinha aqui de casa foram construídos, e ainda por cima com o mesmo exato tipo de tijolinhos à vista.
É quando meu pai se lembra de um outro amigo seu, que lhe disse um dia que se alguém for montado numa vaca à missa, no primeiro domingo todos reparam e comentam, no segundo menos, no terceiro ninguém mais nota e no quarto é normal mais gente ir.
Em parábola, todos os preconceitos perdem todo o seu sentido.
Quando envolve bicho, a coisa fica natural.
Ainda ontem minha afilhada mais nova se viu confusa sem saber se são “pipiu” ou “cocó” as galinhas que se empoleiram mediante saltos ornamentais acima do telhado de eternite do rancho, numa escalada ousadíssima até os lugares mais altos da árvore conexa, para fugirem de qualquer predador que venha pelo mato à noite.
Sim, as galinhas do meu pai sabem voar e se proteger. Quase como águias. Mas este fato, ao contrário de alguns avanços sociais e científicos tidos como absurdos porque subvertem o que lhe é conhecido, escapa muito ligeiro ao seu assombro — é diário, é quase trivial. Como a lagoa esverdeada, que sobe e desce com a chuva. Como o vizinho arando com o trator a terra, que logo é tempo de plantar.
Este recanto é a minha Macondo: sempre a mesma, o que tem de real tem de mágico.
São sempre épicas as histórias que lhe circundam.
São conhecidos os seus encantos, mas ainda mais seus espantos.
Foi dentro das cercas aramadas (e um pouco farpadas) destas fronteiras que começam na Bracatinga e se estendem até a Palhocinha que eu cresci, recusando com mau gênio a comer as cebolas que muito tentaram me servir. Foi aqui que temperei os princípios do meu espírito, respeitoso e anárquico, até engrossar o caldo de minha desobediência indolente, que discorda tanto e, ainda assim, tão pouco busca convencer aos meus de ideias novas — que pode bem ser que um homem de fora me tenha metido na cabeça, porque eu não fui criada assim, embora tenha sido criada para ser exata e rigorosamente assim.
Por um tropeço no sufixo e da semântica, não me tornei submissa, mas subversiva aos usos e costumes desta simplicidade interiorana. Estes hábitos que agora, de visita, considero apaziguadoramente modestos. Com estes meus modos de criança que respeitava a catequista mesmo tendo certeza de que rezava Jolvei ao invés de Volvei naquela passagem da Salve Rainha Mãe de Misericórdia.
E, de repente, degredada filha de Eva, eu me pego querendo que o que conheço do meu lugar nunca acabe.
Para além dos meus silêncios ou convictas objeções, sei que aqui eu posso entrar, que eu sou de casa.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Tome notas - sabor abacaxi
Cuspir pra cima
É tiro e queda
***
Aos pobre-diabos
Que ignoram o que sabemos
A tranquilidade
***
Comprar disposição
para se produzir bem cedo
E não pifar as prestações
do modo soneca
***
Maldição
Zica vem em trinca
Pedi truco
Vieram 6
***
Argumento nenhum persuade
Um energúmeno
Lágrima alguma penetra
Um coração peludo
***
Desinvestir.
domingo, 8 de junho de 2025
Antiofídico
Uns meus passados se amarrotam
Em’squecimentos
Voluntários
O superpoder é primo distante
do dos flautistas que encantam serpentes
Cancelo o pensamento.
A convivência
Com o pensamento.
Ocorrendo de reaparecerem
uma ou outra testemunha
Torno a resetar
as provas,
Ignorando-as.
Furtiva e hábil,
Fecho os olhos e sopro
na poeira fina
das estradas onde andei
Forma-se espécie de nuvem rasteira
Daqui pra trás
Na qual os mais Traiçoeiros, e
Peçonhentos, e
Verdes, e Llenos de escamas, e Bem gelados, Animalescos, Ruins passados
Por mim treinados
Saem da posição de bote
Guardam suas presas e venenos
— com que já não me fazem morrer
de vergonha ou de medo
E entram de novo no cesto de vime
Donde, em sono fundo,
não hão de vir julgar
O que já fui
Ou com quem já estive
Sorte eu ter método:
Uns meus passados
São espetáculo
A que só assisto de costas
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Heartbnb
De Filó não sei a voz. Reconheci mais velha no sorriso de Mafalda, a mãe, aniversariando ao lado das hortênsias bem roxinhas com o colar de ouro, os brincos de pérolas, os vincos na pele do rosto de quem criou como podia os sete filhos que lhe fazem companhia em quadradinhos recortados de outras fotos emoldurados num rolo de filme no quadro antigo do corredor. Foi boa a mãe. Sei só pelo poema emocionado atribuído a Rui Barbosa entremeando as carinhas deles sete. Em cursiva estilizada no fim: Mafalda. 80 anos. Sorrio: "Igual à de Quino, mas acho que veio antes".
De Filó não decorei o nome. Conheço o vulgo. Comi o pão fresquinho, dei dois goles na sua cerveja, sentei no sofá grande com um remendinho impecável, admirei o trilho coloridíssimo da mesa (um qualquer coisa de arte peruana). A sala parecendo maior por conta do espelho gigante, paraíso de leonina. As cores dos móveis ornando com a beleza do tapete. O friozinho que se sente manhã cedo abrindo a brisa da sacada, São Joaquim toda com o céu azul, azul bem lindo, dá vontade de morar em dia assim e contemplar. O móvel há gerações na família, os vinhos da noite passada, em que comemos a margherita com as mãos, o aquecedor ligado e as gurias sentadas no chão. Eu espiando de canto de olho o troféu do Baile da Neve e pensando como é e quando que a mulher ganhou este troféu e num baile e com neve. Quase que me esqueço que no início tive que fazer força para esquecer das sete saias da cantiga.
De Filó, é claro, Filó de quem não sei mais que suas imagens paradas e a gentileza em movimento via WhatsApp. Filó primeiro na foto de host-perfil com a camisa do Lakers e o mar de fundo, sorrindo de óculos escuros. Depois Filó nas taças bonitas com pois não tão petits cravadas a laser no cristal para dançar com o tinto. Filó no sétimo andar do Imperatore inteiro. Filó em cada porta-retrato. No zelo de informar o secador de cabelo, nas poucas gavetas cadeadas com pertences que imaginei modestos. Filó homenageada com acróstico de múltiplas qualidades a cada uma das quatro letras pelos adolescentes do esporte na parede do escritório. Filó no tampo vermelho de vidro do fogão combinando com a cor da chaleira elétrica. E, por falar em cor, Filó nos cinzas-claro cuidadosamente harmônicos dos jogos de cama. O lençol térmico, não esqueçam, meninas, de usar o lençol térmico.
E finalmente os sorrisos de Talita, uma doce lembrança. As fotos antigas e muito joviais de Talita de frente para Mafalda, Talita solo, Talita acompanhada dos amigos e da família, também com a gêmea de quem não soubemos o nome, Talita pequenina e mais moça, fazendo pose, e crismando, e levando um trote mas sem idade para que seja da faculdade, na virada dos anos 2000, com o olhar concentrado da dança contemporânea. A vida finda da Talita se pronunciando atrás da saudade da Filó, que exala de cada foto da montagem atrás daquele vidro, não se sabe como, mas claramente muito prematura.
De Filó não sei a voz. Mas conheci a casa. Por isso o sorriso, insistente. Por isso o espírito, aventureiro e esportista. Um pouco da bondade. As homenagens. As camas quentes. E uma partezinha de seu coração. Conheci o buraco no peito, que não parece lhe ter endurecido. Deve ser porque há de haver para sempre, do que não passa breve — como a gentileza da Filó — uma doce lembrança.
De Filó não sei a voz, mas talvez saiba um pouco do que de principal possa haver pra saber sobre alguém.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Alcautraz [final]
Bem-vindos ao derradeiro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
É sorte grande termos hoje estes ares de cerimônia, microfone e caixas de som, que assim as explicações ficam um pouco mais altas do que o barulho de obra. Novos presos, novas celas. Outras vazias, reformadas. Quanto maiores os Medos, maiores os muros. Quanto menor a segurança, maior o risco de que os meliantes segregados aqui se rebelem e alcancem a superfície, levando com eles para cima sabe-se lá que ordem de feiura, tragédias e reviravoltas.
Porque todos aqui acreditamos na máxima de que é melhor prevenir do que reencarcerar, gostaríamos de agradecer com profundíssima sinceridade aos nossos patrocinadores, que com generosidade nos proveem escavamentos, grades, pedras, cimento, as paredes grossas que segregam o que fica no alto dos marginalizados que ficam aqui embaixo deste empreendimento. Não nos esqueçamos, porém, que o que está na superfície e quem se encontra neste patamar têm ligação indissociável — e juntos moldam, com acentuada complexidade, a beleza da propriedade em sua inteireza. São peças contrastantes do jogo, inconfundivelmente diversas, opostas até, mas como aquelas do xadrez em que pretas e brancas valsam em casas brancas e pretas, cada uma em seu turno, cada uma a seu modo. Um balé torto, mas sincronizado. Uma casa para cá, duas celas para lá. Assim o farão continuamente, sabedoras de que suas luzes não pareceriam tão claras sem suas sombras, e suas sombras nunca teriam significado não fosse a chance de em um mau dia chegarem à luz, desprevenidas. Aqui, nestas masmorras, tenta-se guardá-las (ou recuperá-las) até o dia do xeque-mate final.
Sei que não é bem novo o conceito de criminalizar e penalizar o que se quer tentar reprimir, mas mesmo assim (ou talvez por isso) nossa atuação neste estabelecimento despertou, por anos, o interesse da comunidade, que pouco entendia dos critérios para nossas prisões e o bom funcionamento da casa. Então, nesta noite solene, gostaríamos de agradecer à gerência por tudo que este projeto de visitação proporcionou — ou, se quisermos usar da modéstia, tudo o que pode ter proporcionado — ao público que se dispôs a cada tour. Esta era uma tentativa grosseira e inicial de colaborar na mera classificação dos presos, e terminou por ser uma chance ímpar de elaborarmos um estudo, uma análise, um tratado (mezzo empírico, mezzo foucaultiano) do que importa para que o Caustelo permaneça de pé e operante; de tudo, tudo o que importa dos portões para dentro de quem tanto se vigia quanto se pune.
Nossos intentos de ressocialização falham muitas vezes — sabemos. As saídas de sete dias trazem-nos mais dores de cabeça do que proveitos. Alguns dos presos permanecerão neste subsolo perpetuamente, à espreita ou adormecidos, porque jamais ninguém estará preparado a pleno para lidar com eles. Outros se evadirão quando menos esperarmos. Uns poucos, refeitos de todo, irão embora em definitivo, o tapete vermelho estendido, porque já não oferecem perigo. Todos eles que daqui saírem, entretanto, darão meia volta, forçados a regressar pelo umbral da porta por onde entraram.
E é desta noção tão clara que emana a importância desta noite — na qual, em instantes, teremos a oportunidade de conhecer onde fica a última das celas, o pior preso deste vasto corredor, o fim da linha de nossas curiosas expedições.
Já lhes foi informado que diariamente chegam aqui novos Traumas, Ojerizas e Paranoias, e também novos Medos, alguns parentes dos antigos, outros de facção rival. E é verdade. Temos consciência, todavia, de que os novatos pouco ou nada interessam aos visitantes. Por mais que enfeitemos suas histórias para dar-lhes pompa e circunstância em contornos de ficção, sabemos que os recém-chegados pouco chamam às vossas atenções, porque há neles o frescor pueril de menores infratores. Quase uma graça se suporem malvados.
Foram sempre os presos das profundezas, de maior periculosidade, os que inspiraram maior atenção, respeito e parcimônia, os que exerceram maior fascínio aos estranhos e, por que não admitir, à Administração. Ganham cartas, documentários, séries, admiradores até. Seus crimes causam-nos maior comoção. E é assim também, ou principalmente, com aquele escondido por esta cortina que agora removeremos.
Rufem os tambores!
Ruja o leão alado entalhado em metal acima do portão principal do Caustelo!
Senhoras e senhores, eis aqui
o Não Vivido.
É só em tom circense que consigo anunciar este perigo gigante, delirante, sem rosto, incerto, assustador.
É isso mesmo que estão vendo: dele só se conhece o formato desta porta grossa, maciça, fechada, ao que se sabe sempre emperrada, pela qual ninguém deste corredor jamais conseguiu ver através nem conseguirá sair. É a ignorância completa sobre seu real conteúdo que o fabrica e consagra o maior Medo de todos. O medo imaginário, o medo imaginado.
Teme-se que algum dia alguma ventania de lá para cá possa abrir esta porta de golpe, sem ruído, sem aviso, dali saindo sorrateiras: qualquer sorte de lamentações; as piores cobras-lagartos, híbridos; ou um susto, um visgo, uma neve, uma febre, um abismo, a contaminação letal.
Mesmo assim, é tamanho o encanto que envelopa o tema que ninguém jamais ousou cadear esta entrada ou saída, o que implicaria algemar-lhe. Cultivamos neste preso todos nós, guias destas visitas, qualquer espécie de fé, uma esperança de salvação (sabe-se lá do quê), um deslumbramento. E, acima de tudo, um desejo de ver de perto o seu teor — desconhecido de horóscopos, do tarot, dos búzios e das bolas de cristal —, de modo que ninguém da segurança jamais teve a coragem e o desprendimento necessários para acrescer a esta porta tão grossa uma proteção adicional.
O Não Vivido é tão vasto que, diz-se, pode existir em forma de conjuntos (profissões, relações, conjunturas). Ele se acomoda na maior das celas atrás desta porta que podemos ver daqui. É um salão que, segundo a lenda, estende-se por milhas infinitas de comprimento e profundidade, avançando para baixo e para os lados, chegando a especular-se se ele quem forma a base de toda a construção (que poderia, assim, ser oca, não fosse as coisas dele se apinharem todas, compactadas, quase em vácuo, porque são tantas, tantas).
O Não Vivido é um acumulador. Guarda, por praxe, os formatos dos talheres de restaurantes chiques, que jamais se soube usar. Guarda uma foto adolescente abraçada no Mickey, o aparelho ortodôntico nos dentes, bem ao lado dos sonhos de ir pra Disney, que jamais se teve na infância. Guarda um piercing. Uma ou várias tatuagens. O Não Vivido contém até mesmo os rascunhos dos planos embrionários de um intercâmbio em outro idioma. Guarda pronúncias. A grinalda fincada num véu bem branquinho sob a abóbada ilustrada de uma Igreja Católica. Um jantar para pedir a mão à família. A justa causa de uma rescisão ao dizer umas verdades. Um pet com mais de dez anos de idade que deu pelos nas roupas, vida e doçura à casa e ensinou a não temer as mordidas. Um show lotado da Marília Mendonça no auge da carreira. O Não Vivido esconde os perdões tempranos que só vieram tarde ou ainda nem chegaram.
O Não Vivido é tão, mas tão poderoso que, segundo se sabe, pode inverter a lógica do tempo linear: nele estão retidas todas as ramificações, todas as possibilidades deixadas para trás em cada escolha, todos os sins de cada não, todas as imprudências e desvarios, todos os conselhos seguidos e não seguidos. O futuro inteiro mas, também, cada variação do passado.
O Não Vivido assusta mais do que qualquer fantasma, porque nega as verdades mais absolutas, como se nunca tivessem sido. Este preso é o mistério que há em cada possibilidade. E é só dispondo-se a olvidá-lo — soterrando sua existência junto com tudo que pode estar contido para além desta porta — que se pode encerrar esta grande noite, para seguirmos passeando leves pelo Caustelo.
Escauda acima, senhores.
Peço o favor de que desocupem estes assentos improvisados de expectativas onde se sentaram.
Esqueçamos, tanto quanto possível, as misérias e agruras deste Caulabouço.
É só à luz da superfície, neste baile promovido no dia de hoje para celebrar as conciliações e dinâmicas exigidas para o bom funcionamento da mansão da minha caubeça, que poderemos desfrutar felizes, em trajes de gala, enquanto a banda toca.
O último a sair, apague a luz.
terça-feira, 27 de maio de 2025
Desautomação
Quem disse
que as máquinas
logo fariam tudo
mentiu.
Experimenta não limpar o filtro.
Experimenta não comprar mais nuvem.
Testa aí não ampliar os giga.
Desrespeitar a potência
O ciclo
A voltagem
O manual
Ou não atualizar o sistema
operacional
mas nem tanto
Se não respeitar à fórmula
Experimenta conversar com ela
Num idioma que ainda esteja aprendendo
Tenta tirar pra amiga
Sem chutar ou chacoalhar
Quando precisa
Experimenta não saber a senha
Ou esquecer de botar gasolina
Não obedecer ao algoritmo
Ou a algo
Ou ao ritmo
Que só sabe tocar zero e um
Pede a ela aí pra ver
Um chá, se chega na xícara
preferida
Se sabe mesmo passar o café
Só frasezinha pronta com travessão
Ou qualquer coisa de íntimo
Um dia hei de perder a memória
Esquecer os programas
E onde ficam os botões de ligar;
De dar enter
Um dia, com
tudo automatizado
As máquinas sentirão mais que eu
O que já sabem
+
Até lá queria experimentar
Não depender delas pra nada
Pensando bem, faz melhor:
Experimenta tirar da tomada.
domingo, 25 de maio de 2025
Cativo [13]
É no estômago que roncam as promessas de normalidade e paz da vida a dois. Não olhar mais a taça quebrada na pedra dura da pia, dessa vez foi de champanhe, da outra agora só tem duas. Cuida com esses cacos, passa uma água no que sobrou, tudo bem usar um guardanapo sim mas eu não faria assim, ouve só como grita a máquina de lavar que não escoa nem seca mais nada apitando “E21”, tenho te dito há semanas, sim, tem que chamar o encanador, tem - sujeito indefinido, tem é ninguém, alguém tem, tenho eu então, ah, sim, deve ser porque eu sou ansiosa. Ou resolutiva. Ou lavo a roupa, e não a louça. Ou tenho mais que uma calça jeans que presta, e em todas elas os bolsos cheios de empatia com o teu minimalismo distraído. Tenho aqui o contato, é do mesmo careiro da outra vez, eu só queria resolver logo, se soubesse que ia te irritar tanto não tinha agendado pra segunda, só o que me faltava é ter que vir recebê-lo, chama você de golpista e na cara dele de preferência, dá o teu show mas não pra mim, faz um pouco aí a linha macho man, esquece um pouco a educação mas não comigo, não, não é tédio o que eu estou sentindo, que eu não sou como aquela minha tia, é vontade de resolver tudo e logo e deixar funcional. Se reparar um pouco, quando eu dou pra procrastinar sou pior. Já devias ter aprendido que eu odeio absolutamente tudo o que só funciona no jeitinho. Pensei agora que relacionamento só funciona no jeitinho. Então vamos dizer que odeio quase tudo. Aqui eu fico. Não jogo fora. Não troco. Se chamo ajuda é pra consertar. Deve ter algo que preste pra salvar aqui. Senta pra meditar sobre isso nessa tampa do vaso que quebrou há três meses e agora enxuga o cheiro dos nossos mijos, de repente eu desparafuso e enfio ela num saco, que aí é ir comprar no dia ou cagar com a bunda direto na louça. Aposto que não vais querer. E ainda assim tenho muito claro que não estou louca. Não sou metódica. É isso ou usar o banheiro da visita, o que por motivos desconhecidos sei que também não vais querer. É isso ou ignorar outro dia as pequenezas que consomem o dia e, se não cuidar, o preenchem. É assim uma vida sem grandes questões atuais pra destrinchar. Fora as latentes. As mais ou menos antigas, agora e sempre mal resolvidas. As que voltam violentas na cara em pleno dia tal do mês tal do ano tal deitados na cama de manhã me chamando de hipócrita depois da visita ir embora só de ver de perto qualquer parente de segundo grau. E eu nos pergunto se é isso um relacionamento: às vezes engolir um pedaço seco de “apesar de” na esperança de depois ter molho. Verde, tártaro. Pimenta ou vinagrete? Pimenta. Sentir o canto da língua arder como as palavras de mais cedo, que não voltam mais para dentro da boca como agora esta comida entra. Esqueceram de tirar o alho do arroz. E se os dias andassem de dois em dois? Quem sabe o tempo passasse mais rápido. E se a honra fosse finalmente vingada num canto da festa, e se as goteiras de apartamento (eu que nem sabia que em prédio ia telha pra quebrar) pingassem também em cima das cabeças deles, na casa que eles ainda não compartilham, talvez nunca o façam, certos eles, coitados deles, e se de repente o piso deles também estufasse todo num anúncio estralado de estouro no meio da madrugada, e se ficasse o barulho fofo do oco entre o cimento e a cerâmica sem saber se foi na construção ou no assentar sem folga dos cantos e das fugas mas agora já venceu a garantia quanto é que vai custar o vinílico. E se o primeiro pensamento da manhã ao pisar no chão fosse sempre esse oco, esses cantos, essas iminências de quebra, esses erros e adiamentos, essas providências e fugas, amor? Quão incomodados ficaríamos até a barriga nos lembrar de novo que essa energia que gastamos há pouco em discussão interminável precisa vir de algum lugar. Vamos almoçar um peixe? À noite pedir um South ou inventar uma sopa, como a que revigora com cuidado e nutrientes os moribundos - como vez ou outra parece ficar o amor. Depois de comer melhora.
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