quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Cativo [final]

Havia uma lua plantada
no centro do topo do céu limpo gelado
irradiando luz difusa da noite
sobre as nossas vidas
No começo
do fim
da semana
Enquanto eu ia pra casa
na sexta

Estive mentalmente sentada
no chão (que agora imita madeira
como criança construindo castelo
na areia
da praia
que a água salgada pode & há
de vir
Tomar

Com dois joelhos pro mesmo lado,
Pensando em
Nós —
oitenta e vinte
por cento sempre
Em construção,
Pensando:
Com que material
cimentarei
as bases de alguma fortaleza
que nos protegerá
por certo sempre
Das intempéries
Chegadas
em discos voadores
pra sacudir nossos quase mortos
mas muito vivos
e parvos
dilemas de dois
Tão ressuscitados quanto um Cristo
nos dias seguintes

Pensando:
Em que castelo; ou
Protegida por que fortaleza
Eu posso ser princesa
Se você me vê através
De todos os espelhos
em que não se reflete;
Desse domo de vidro fosco
atravessado por vultos;
em brumas
imbróglios
Em códigos
Feiuras
Onde já não se guardam mais nem
os segredos
sadios?

Você me vê?
Quero fugir
E me proteger
Dos conflitos que causo

Intransigente
Eu parto
pra briga
Eu travo
batalhas épicas
em nome de uma
Justiça
burra,
com as próprias mãos
e os próprios goles,
ilegitimamente
passiva.

Você, não.
Você não parte
Você fica
Você pivota
Você só entra
em guerra
por
Paz.

Me condenei,
Sou culpada:
De um cinismo
De amor
de
    -scrente
E agora quero voltar
a ser
inocente.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tome notas - sabor groselha

Palíndromo silábico

Quanto tempo
vale y leva
o insight


***

“Mas tinha tudo”
É que a felicidade alheia
nunca é vinculada
à vossa inteireza


***

Déficit primário

No fim das contas,
não sentir em dívida
pelas expectativas que criei
                                            nas pessoas


***

Out of my own league

Como é que eu faço pra alcançar
o sarrafo
que eu ergui


***

Quem dera fosse bem pavimentada
A estrada que dá
na última montanha-
horiz'onde se esvai

Subir fácil
Poupar esforços
Poder conter o sol com toda força
(e as duas mãos
A fim que o bom do dia
claro
nunca fosse embora


***

Desinvestir.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Marta-Viva

Marta quer sentir que vive.
Quer viver mais
do que trabalhar,
mas sem não tem la plata
pra 
comer e morar.

Porque aprendeu
a palavra
C a p i t a l i s m o
A des-
culpa não lhe sai da boca:
Ora o mundo gira à base
dos suores,
especialmente aqueles
escorridos pelas têmporas
de quem para tudo socializar
é a única perfeita solução;
Ora encuca com aqueles outros
a quem o trabalho
é máxima da vida,
e fecham o nariz,
e trabalham, e trabalham,
E prosperam
em ignorar
um Desconforto que vive ali
todo mês
sem honrar o aluguel
Só não tem nome.

Em ambos se reconhece
Visto que alterna entre
workaholic e O sentir
que vamos todos morrer
Bem loguinho e de fadiga.

Só mesmo não se identifica
Co'aqueles terceiros
A quem o Desconforto de um século
tardio como o C a p i t a l i s m o
também vive ali
A atormentar, como pulga, saltando em coceiras
Que resolvem arranhando chamar
C o m u n i s t a s
de vagabundos 
que
não querem mesmo trabalhar
Ainda que,
bem conversadinho,
Trabalhar seja uma coisa que
Pouquíssima
gente
queira
realmente.

Não é bem

questão

de

Querer
Querer mesmo,
Marta só quer
Sentir que vive. 
Ontem comprou três picolés gourmet
inflacionados
que valeram — a pena;
      um prazer culpado;
e  a hora extra da terça;
derretendo na boca um gosto de
água e
fruta congelada
e merecimento.
Esteve vivíssima.

Outro dia se pegou bem viva
Porque o xampú
tinha 
        acabado e dinheiro de sobra
Pra comprar outro bem bom
De pronto,
Um só,
Que é pra não acumular nos armários.
Fazendo com pouco uma espuma, dia a dia,
De limpar
a vida acontecendo
Os ciclos acabando
E as unhas vem crescendo
Meio tortas, por dentro das meias
Por dentro das botas.

Marta não quer sentir que morre
Um pouco a cada dia
E, para tanto,
Vezenquando hiper-
valoriza
Um cafezinho,
Um xampú,
Um dia de sol,
Três picolés,
Um básico perrengue.
Aprende um pouco por dia a lidar
Com tantos Desconfortos
Inconsistências
E hipocrisias
Quanto tem qualquer um
E outros até maiores.

O trabalho empurra Marta
                                          para a frente
do                                                               P
                                                                    r
                                                                    e
                                                                    c
                                                                    i
                                                                    p
                                                                    í
                                                                    c
                                                                    i
                                                                    o
em que vira Morta
caso se jogue sem cuidado e ressalva,
E meio-dia estende a rede
Que não lhe deixa
falhar
empobrecer
diminuir
esborrachar ou
morrer.

Mas Marta não quer só viver.
Quer sentir que vive.
Para desopilar,
Marta-Viva 
é bem capaz
De assistir a um filme cabeça
De fazer um poema de amor
De inventar um jeito de viver
— avant la lettre —
Que inaugure o gênero
Marta-Viva

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Eco [final]


A vida real é o melhor feitiço pra desconhecer. O tempo, sabedor de todos os caminhos depois do fim, o tempo, sabedor de caminhos quaisquer do durante. É o cotidiano quem gasta e pui a tessitura do inventado. Digo mais: o amarelo daquele semáforo tem cores de "Fulva" e o dúbio do sinal me faz recair em "Grafomania". Sim, Laura, um narrador pedante bem dentro da minha cabeça ainda faz isso o tempo inteiro. E com as maiúsculas estilizadas na cursiva, ainda por cima. Pior: pratico o vocabulário arcaico só pra reter a acepção de palavras novas.
Não te endereço mais, porém, a maioria das minhas divagações. Estas frases toscas que acabei de escrever, como as das aulas de novo idioma pra impressionar professor, são especiais só porque gastam de um jeito rústico e de propósito as duas primeiras palavras que, quando aprendi o que queriam dizer, guardei anotadas num bloco, por hábito e pretensão, para um dia escrevê-las pra ti, sem as aspas, mostrando que as sabia bem.
Mas já não podia.
Retive-as até hoje mais cedo, no íntimo, como se guarda a um segredo, junto com a imagem mental e iluminada que seus significados me acendem, com o barulho das buzinas do trânsito escoando lento aqui na minha frente e tudo.
Eu fiz sem fim de vezes este mesmo trajeto, às vezes mais longo que o necessário, muito atento, só pra ter chance de assisti-la à distância, agitando bagulhos dentro da bolsa imensa até encontrar o molho de chaves pra entrar em casa, toda a vida apressada. Eu percorri sem fim de vezes, com a imaginação e com a esperança, esta mesma cena — na qual eu sempre a revia magicamente naquele lugar mais provável.
Mesmo depois de saber que já tinha até mudado de endereço. E de estado civil. Mesmo depois de saber que ao se afastar de alguém, desconhece-se esse alguém e seus percursos, porque não se acompanha mais de perto as mudanças de endereço, de estado ou de ideia. Mesmo depois de saber que às vezes se desconhece alguém mesmo estando bem perto. Mesmo depois de saber que, se for parar pra filosofar, a gente nunca pode confiar que sabe verdadeiramente alguém.
Parei sem fim de vezes nesse semáforo com o amarelo fulva. Poderia ter seguido — mas era como se, mesmo bem viva e caminhando por outra freguesia, a Laura ainda pudesse vagar, com todas as penas de sua alma atormentada, ainda o mesmo e velho e conhecido fantasma, na versão que construí e pela qual me apaixonei, só pra que eu pudesse revê-la. Repetindo-se, idêntica, imaginada, onipresente, ou pelo menos em todos os lugares em que eu sei/imagino que ela já esteve. Como um eco. Um eco alimentado. Fabricado. Invocado, com afinco (três descargas e um espelho, como a Maria Sangrenta dos banheiros de colégio). Um eco — por isso mesmo, unilateral. Amiúde. Um eco zunido. Ensurdecedor de outras vozes, mais reais e melodiosas.
Ressoam em mim as memórias das todas ocasiões em que, vendo um carro minimamente parecido com o dela, com o coração ainda disparado, eu esticava o pescoço para conferir a placa. E nunca eram os mesmos sete dígitos de que só lembrávamos no estacionamento depois de fazer piada sobre o que significavam as letras, em livres associações, na forma de micro poemas bem humorados. Nunca saía pelo visor da calculadora do meu para-brisa o resultado certo na prova real da matemática nova que um dia inventamos para tentar decorar algarismos numéricos. Muito provavelmente, em alguma altura de todos aqueles anos, ela também já houvesse trocado de carro, inclusive, e o que eu perseguia era apenas a propagação do ruído que eu mesmo emitia no universo. Já disse e vou dizer de novo: um eco.
Porque nunca era ela saindo do banco ao lado da farmácia. Mexendo no cabelo, de costas. Ou cruzando a faixa de pedestre carregando sacolas enquanto ajeitava os óculos. Nunca era ela de xadrez. Nem de vestido. Nem mesmo de azul. Nunca era ela de mãos dadas com outro cara de estatura semelhante à minha passeando pelo shopping. Ponto turístico qualquer. Nunca, nunca mesmo, era ela. Era sempre uma sósia. Uma dublê de sobrancelhas. Um arquétipo. Uma minha projeção no horizonte inalcançável, etereamente intocado, mesmo a passo corrido.
Por tanto tempo qualquer símbolo que remetesse à Laura, quero dizer, que remetesse à ideia que conservei da Laura, foi pra mim como um ídolo!
Por tanto tempo qualquer mínimo sinal que me lembrasse dela e do que senti com ela foi arte sacra da minha devoção por suas heresias e por seus milagres até então insuspeitados!
Agora eu custo a acreditar que toda a fé já se esvaiu. Que demorei tanto pra aprender a lição que a Laura deixou ensinada quando seguiu a própria vida. Ignorei a lição, tangenciei a lição, escamoteei a lição, mesmo tão vívida e clara, o quanto pude.
E agora a tenho bem sabida.
Parado aqui, escrevendo, deste lado de cá dos sinais fulvos que se acendem e se apagam pela cidade, alternando-se, eu consigo perceber que namorei por mais tempo àquela vontade de reaparecer de surpresa, certo de que provocaria nela um abalo sísmico e sísifo capaz de nos reunir, ou quem sabe todos os Ford Fiestas do trânsito, do que a ela mesma, em pessoa, carne osso defeito e dilemas, para além das letras que se articulam sem parar em construções bonitas do meu vocabulário.
Hoje me dei conta, parado aqui, neste mesmo local em que conjurei os desejos mais infames de, pelo menos, revê-la, ter finalmente dessensibilizado para tudo — até para o uso sem pudor nem jeito das palavras bem novas que eu tinha guardadas na gaveta, como presentes, com bilhetes. Fulva. Grafomania. 
Agora sou a pantomima de uma cobra que nada precisa dizer para que a gente se dê conta, assistindo, de que ela mesma percebeu que abocanhou é o próprio rabo, que doeu, puta que pariu como doeu, e basta que tenha doído tanto para que, num gesto de iluminação divina, tremenda, num belo instante, recobre o tino e se cuspa. Depois me estico em outra direção. Para ainda mais longe do fim, ou do dano de mim.
O tempo, sabedor de todos os caminhos, banalizou os nossos absurdos. Ensinou-me que ao Santo Deus de Coincidências não se faz promessas, porque não aceita chantagens nem precauções. A vida nunca se cozinha em slow burn: a vida às vezes passa do ponto, noutras se come crua. Já passou muito da hora de eu tirar a Laura da geladeira (e descartá-la, mesmo sem tê-la preparado), mofada como ingrediente velho, para dar aos porcos, que tudo devoram e reciclam, para depois fazer virar torresmos novos. Ela não merece mais nem metáforas melhores.
Hoje constatei ter removido o último obstáculo — distante — no qual a reflexão das ondas de som batia e me voltava. Hoje parei naquele mesmo semáforo e esqueci um pouco o que queria dizer Fulva, embora bem me lembre o que sempre quis dizer Grafomania.
Excomunguei um beijo de adeus e misericórdia na testa do busto de marfim que um dia esculpi em tributo para Santa Laura na praça de armas do meu imaginário antes de destroçá-lo inteiro, com violência, às tacadas, transformando-a em poeira fina, diminuta. Que bem no fim eu sempre soube que precisaria varrer de mim se me quisesse curar dos acufenos. E ainda que, em agonia, eu tantas vezes não pude suportar a constatação de que devo amar pelo que tenho e não porque imagino, com esse moai de Laura já desfeito, o que sobra pra adorar é o que existe ao redor, empoeirado. O que sobra pra adorar é o que existe ao redor. O que sobra pra adorar é o que existe.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

30 de novembro

Uma vidente me disse
e eu lembro do dia
que eu era ajudada
por sua energia

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida urbana

As vagas de garagem de um prédio antigo são para sempre do tamanho dos carros que circulavam no ano e local em que foi construído. O porteiro pode virar perito em dar pitaco de manobra, vem de frente até aqui, agora distorce tudo e vai endireitando, mas as colunas largas da estrutura se pronunciam duríssimas sustentando sete, dez ou talvez doze andares inteiros ou mais, uns quatro apartamentos cada. Por isso não há meio de magicamente alargar os espaços. Sempre se sabe que é este o defeito, imutável, das moradas verticais dos grandes centros. E haja manobra com o assistente de estacionamento apitando muito nos sensores da frente e de trás até enfiar uma SUV “robusta” (como anunciaram de boca cheia na publicidade off-road, mas mal e mal ‘guenta a 470 esburacada no trecho sem duplicar) na vaga milimetricamente planejada — para um Celta, no máximo. Quando muito uma Brasília. 
Se bem que eu nunca vi um Celta com direção hidráulica ou câmera de ré.
Então talvez não me caiba (a mim, que entendo mal o tráfego de seis pistas que só vão pela Visconde de Guarapuava, por qualquer razão hoje divididas de três em três por canteiro) praguejar contra os avanços da engenharia automotiva. Ou os retrocessos da solidez da engenharia. Nem contra outras modernidades mui urbanas: tratar pet por descendente; viver de ser digital e influente; aleitamento materno de filho com muito dente. E eu assinto que, realmente, só vivendo pra saber, mas até que se prove o contrário eu tenho uma única vida e talvez nessa, nessa aqui, pra concordar, concordar mesmo, não vá dar tempo. Então só observo. E comento.
A cada ida eu me convenço mais que os jeitos de viver vêm das experiências. Do timing dessas experiências. Do que se pôde fazer com elas e quando. E eu até posso crer que as possibilidades asfálticas de uma metrópole são tantas mais mas a liberdade, a liberdade mesmo, a de ir e vir, não consegue ultrapassar um parque belíssimo ou outro, não consegue se sobrepor às agruras apertadas da mobilidade urbana que já foi referência e hoje sucumbiu ao Uber, nem ao drible dos mendigos aninhados vadiando nas marquises, ou dos pombos dando rasantes pela calçada dos camelôs. E, finalmente, não consegue se sobrepor às solidões submergidas pelo pesado da falta de conexões reais e mais histórias compartilhadas. Há uma falta de encontrar conhecido nos hiper mercados. Há uma mentalidade a que chamarei shopping center: tudo é prático de comprar, mas não se sabe mais se é dia.
Somos produto do nosso tempo. De cada arranjo de circunstâncias. A mudança de um fatorzinho que seja da equação muda, sim, os resultados. Que se dirá dos grandes fatores. Ter teatro, feira livre, Guairão, museu, Leminski, choro na praça. O advento das mini-saias. Mas é preciso aprender a fazer balizas. E não é porque podiam ir que foram. Menos ainda de mini-saias. Basta-nos ter sempre para nem querer, às vezes. E não é porque havia passe livre pra cultura que se tornaram cultos (alguns sim). Nem é porque descobriram antes o que era um Cosmopolitan que se tenham tornado (e entornado) cosmopolitas (alguns, sim).
Na vitrola deles tocava o que lançava de mais fresco na cena. A versão acústica daquele show internacional (que puderam ver ao vivo) na mídia física recém chegada, parecendo que revogava as anteriores. Sei que este multi-player de fita cassete e CD foi substituído antes por um DVD e agora está aí pra bonito. Antes, muito antes que o Pioneer pirata véio de guerra que só apareceu lá em casa depois das primeiras expedições profissionais do meu pai ao Paraguai mais pro fim dos anos 2000. Na cidade grande tudo chega antes — e tudo se move antes, ainda que pro fim da fila.
Estas paredes de prédios altos construídos há tanto tempo contam a quem está fora a história dos habitantes de dentro das casas. Dos donos das casas. E, sobretudo, das famílias dos moradores das casas. Os altos andares contam de onde se veio e o que se vê da janela é a densidade de uma legião de estranhos. E placas. Não as rachaduras, mas as cores e texturas. Arquiteturas. Cômodos labirintos. O nome da rua, decorado e tradicional, que já constava do mapa físico. Perto de que outro prédio. Bairro cercano de um estádio, e não do outro. O centro cívico. O clube de ir nadar e casar. As distâncias longínquas das sedes campestres. Os elevadores e escadas rolantes, que aprenderam a usar desde novos. Os móveis planejados. Tudo bem antigo. Tudo bem datado. Como se o direito ao acesso fosse um carbono de contar idades da cidade em ritmo diverso, sempre um novo número. Já está a contar um carbono trezentos mil.
Já que ter história é mais import, digo, imponente do que ter dinheiro, em molduras enormes devem estar e permanecer orgulhosas as fotos em preto e branco das construções que rendem, passivamente passadas de pai para filhos (que reivindicam, esbravejam e digladiam por seus quinhões e alugueres) desde o avô, o bisavô, tataravô. Eles sabem de cor a cor do concreto desde um tempo em que, que a gente saiba, era tudo mato. Eles quase não viram mato. Nem os pais. Nem os filhos. Não são herdeiros de quem viu. O que eles foram é funcionários da Caixa Econômica. Professores de idiomas. Sucessores de Gutenberg. Por isso aposentaram cedo. Tudo isso se vê no pé direito alto. Os cinco ou seis pregos finos e tortos que costumam segurar corajosamente os quadros que escolhi a dedo na promoção para a sala lá de casa que o digam: as paredes dizem mesmo, e dizem muito, sobre quem mora.
Se eu fosse uma traça, a minha mega-sena seria encontrar um prédio com nome e sobrenome quatrocentão num bairro nobre de um lugar bem úmido e frio e viver para sempre roendo até o caroço das páginas amarelas de clássicos em inglês ou português do império. Começaria de trás pra frente. As capas duras de couro enfileiradas com títulos dourados? Seriam por mim roídas com determinação. Só pra ver se o devorar das letras de decoração sem pausa, há tantas gerações na família, dá barato ou só cansaço.
As vagas de garagem são moldadas para sempre do tamanho da época e lugar em que foram construídas. Talvez as cabeças também.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida bucólica


Também no campo acabam os domingos — como o pão de forma caseiro, em farelos fininhos sobre a mesa, sob os ecos da Copa Mundial de Clubes a tarde toda rolando, como bola, na TV.
Acaba, com cartela verde, o bingo de Santo Antônio ao anunciar o narrador, com suspense, depois de pedir rogai por nós: cinqueeentaaa eee ooooitooOo. É que se tem uma coisa que santo adora, é jogo.
Acabam as vendas das bandeirinhas e, depois, o leilão do bolo principal, com o consórcio de compadres que se querem saber prósperos dando um vistoso lance de setecentos e cinquenta reais fora o baile. 
Acaba o quentão, antes do fim da festa, porque a cozinheira que preparou (“eu vou bem! cada vez mais bonita, mais nova… e mais gorda!”) gargalha a autocrítica bem humorada nos avisando que não podia mesmo prever tanta gente caridosa fora do tempo da política. E, ainda assim, quando é hora de cantar a pedra treze, o globo misteriosamente cospe “doze mais um” — e uns setenta por cento da festa se acotovela cúmplice, com risinhos abafados, dizendo ou pensando que “treze aqui não se cria”. O ruim mesmo é que empresa grande também não.
Sei que estes bancos enfileirados sem encosto são tão duros quanto quase todas estas cabeças, tantas que reconheço e que me conhecem desde que nasci, e que não veem motivo nem tiveram qualquer circunstância de pensar muito diferente entre si ao longo da vida.
Sei que este líquido viscoso que está sendo despejado fumegando nas tigelas de buffet de restaurante a kilo, ao lado dos pratos com queijo ralado e cheiro verde cortado bem miudinho (que não porei no prato), terá o sabor conhecido — e um pouquinho gorduroso — de merenda de colégio em prato azul de plástico.
Sei, ainda assim, que estar aqui, cercada destas pessoas, tem o gosto confortável de regressar à casa.
Na qual minha mãe não dorme sem antes lavar os copos e as taças, nem sai do quarto de manhã sem antes arrumar a cama. A casa que tem sempre no fim de semana algo de molho ou batendo na máquina, outro algo que foi lavado antes balançando no varal, outro algo entregue ainda ontem pelo Mercado Livre, com o sol de sempre ali batendo na varanda e entrando pelas basculantes verticais da garagem. E se quando chego adquiriu-se um qualquer vício novo (como passar a ponta da língua no vãozinho entre os dentes de baixo), basta-me advertir-lhe com a seriedade que sempre usou comigo que, brevemente, concordará que sim, precisa parar com isso, mas para se convencer racionalmente vai forjar um pequeno aforismo que serve de lição para nós duas: “Meu cérebro tem que aprender a controlar a minha língua”. 
Casa na qual meu pai, que cozinha e teima muito melhor que nós todos juntos, mexe a panela em que frita com bastante banha de porco o queijinho com ovo que faz para me agradar de manhã bem cedo, enquanto repete com tom de sabedoria suas teses: de que o que está matando lentamente as pessoas, na verdade, são as verduras (com tanto agrotóxico, onde é que já se viu, o tomate se estiver meio verde se sente o veneno na boca); de que os ratos devem ser emboscados com doses de veneno lento, porque se comunicam de forma senciente; de que o aquecimento global, se for parar pra pensar, pode nem existir, porque desde que o mundo é mundo há enchentes, e este calorão, e os ciclos normais da natureza de tempos em tempos, e não sei quanto por cento, agora lhe falha a memória, de água que compõe a maioria do planeta, e por isso nem em cem mil anos daríamos conta de interferir nela inteira com o pouquinho de terra submersa que a humanidade habita.
Estas suas certezas, sempre tão enfáticas, ensinam-nos sobre o (seu) mundo, e por certo devem confortar-nos para não pensarmos mais a respeito, nem sofrermos, nem preocuparmo-nos, nem nunca mais cogitarmos não lhes dar netos por qualquer bobagem assemelhada (sem o embasamento lógico na coerência que alcançamos com nossos conhecimentos empíricos), imagino. São parecidas com o fato (por ele comprovado) de que o único negro que conhece é muito amigo seu e nunca sofreu preconceito de ninguém.
Os tempos mudam, é claro que mudam, muitas vezes até para melhor, mas a marcha da subida é tão lenta que quando algo muito fora da Curva da Banana acontece, espanta.
Especula-se, a título de novidade na praça, sobre histórias novas que, mesmo sendo novas, têm nome certo, sobrenome e toda a genealogia, como a da mulher que viciou no jogo do Tigrinho; as razões que levaram o marido de uma a implantar cabelos e agora parecer mais novo; e como estufa o peito empombado quando anda o marido daquela outra.
Não há, porém, novidades ou vácuos de poder na presidência do CPC da capela — que é uma baita vitrine para os jovens e aspirantes a vereadores, com ideias tão, tão antigas que parecem os mesmos desde os tempos áureos, quase imemoriais, nos quais o pavilhão, a rodoviária ou a pia da cozinha aqui de casa foram construídos, e ainda por cima com o mesmo exato tipo de tijolinhos à vista.
É quando meu pai se lembra de um outro amigo seu, que lhe disse um dia que se alguém for montado numa vaca à missa, no primeiro domingo todos reparam e comentam, no segundo menos, no terceiro ninguém mais nota e no quarto é normal mais gente ir.
Em parábola, todos os preconceitos perdem todo o seu sentido.
Quando envolve bicho, a coisa fica natural.
Ainda ontem minha afilhada mais nova se viu confusa sem saber se são “pipiu” ou “cocó” as galinhas que se empoleiram mediante saltos ornamentais acima do telhado de eternite do rancho, numa escalada ousadíssima até os lugares mais altos da árvore conexa, para fugirem de qualquer predador que venha pelo mato à noite.
Sim, as galinhas do meu pai sabem voar e se proteger. Quase como águias. Mas este fato, ao contrário de alguns avanços sociais e científicos tidos como absurdos porque subvertem o que lhe é conhecido, escapa muito ligeiro ao seu assombro — é diário, é quase trivial. Como a lagoa esverdeada, que sobe e desce com a chuva. Como o vizinho arando com o trator a terra, que logo é tempo de plantar.
Este recanto é a minha Macondo: sempre a mesma, o que tem de real tem de mágico.
São sempre épicas as histórias que lhe circundam.
São conhecidos os seus encantos, mas ainda mais seus espantos.
Foi dentro das cercas aramadas (e um pouco farpadas) destas fronteiras que começam na Bracatinga e se estendem até a Palhocinha que eu cresci, recusando com mau gênio a comer as cebolas que muito tentaram me servir. Foi aqui que temperei os princípios do meu espírito, respeitoso e anárquico, até engrossar o caldo de minha desobediência indolente, que discorda tanto e, ainda assim, tão pouco busca convencer aos meus de ideias novas — que pode bem ser que um homem de fora me tenha metido na cabeça, porque eu não fui criada assim, embora tenha sido criada para ser exata e rigorosamente assim. 
Por um tropeço no sufixo e da semântica, não me tornei submissa, mas subversiva aos usos e costumes desta simplicidade interiorana. Estes hábitos que agora, de visita, considero apaziguadoramente modestos. Com estes meus modos de criança que respeitava a catequista mesmo tendo certeza de que rezava Jolvei ao invés de Volvei naquela passagem da Salve Rainha Mãe de Misericórdia.
E, de repente, degredada filha de Eva, eu me pego querendo que o que conheço do meu lugar nunca acabe.
Para além dos meus silêncios ou convictas objeções, sei que aqui eu posso entrar, que eu sou de casa.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Tome notas - sabor abacaxi

Cuspir pra cima
É tiro e queda

***

Aos pobre-diabos
Que ignoram o que sabemos
A tranquilidade

***

Comprar disposição
para se produzir bem cedo
E não pifar as prestações
do modo soneca

***

Maldição

Zica vem em trinca
Pedi truco
Vieram 6


***

Argumento nenhum persuade
Um energúmeno
Lágrima alguma penetra
Um coração peludo

***

Desinvestir.

domingo, 8 de junho de 2025

Antiofídico

Uns meus passados se amarrotam
Em’squecimentos
Voluntários

O superpoder é primo distante
do dos flautistas que encantam serpentes

Cancelo o pensamento.
A convivência
Com o pensamento.
Ocorrendo de reaparecerem
uma ou outra testemunha
Torno a resetar
as provas,
Ignorando-as.

Furtiva e hábil,
Fecho os olhos e sopro
na poeira fina
das estradas onde andei
Forma-se espécie de nuvem rasteira
Daqui pra trás
Na qual os mais Traiçoeiros, e Peçonhentos, e Verdes, e Llenos de escamas, e Bem gelados, Animalescos, Ruins passados
Por mim treinados
Saem da posição de bote
Guardam suas presas e venenos
— com que já não me fazem morrer
de vergonha ou de medo
E entram de novo no cesto de vime
Donde, em sono fundo,
não hão de vir julgar
O que já fui
Ou com quem já estive

Sorte eu ter método:
Uns meus passados
São espetáculo
A que só assisto de costas

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Heartbnb

De Filó não sei a voz. Reconheci mais velha no sorriso de Mafalda, a mãe, aniversariando ao lado das hortênsias bem roxinhas com o colar de ouro, os brincos de pérolas, os vincos na pele do rosto de quem criou como podia os sete filhos que lhe fazem companhia em quadradinhos recortados de outras fotos emoldurados num rolo de filme no quadro antigo do corredor. Foi boa a mãe. Sei só pelo poema emocionado atribuído a Rui Barbosa entremeando as carinhas deles sete. Em cursiva estilizada no fim: Mafalda. 80 anos. Sorrio: "Igual à de Quino, mas acho que veio antes".
De Filó não decorei o nome. Conheço o vulgo. Comi o pão fresquinho, dei dois goles na sua cerveja, sentei no sofá grande com um remendinho impecável, admirei o trilho coloridíssimo da mesa (um qualquer coisa de arte peruana). A sala parecendo maior por conta do espelho gigante, paraíso de leonina. As cores dos móveis ornando com a beleza do tapete. O friozinho que se sente manhã cedo abrindo a brisa da sacada, São Joaquim toda com o céu azul, azul bem lindo, dá vontade de morar em dia assim e contemplar. O móvel há gerações na família, os vinhos da noite passada, em que comemos a margherita com as mãos, o aquecedor ligado e as gurias sentadas no chão. Eu espiando de canto de olho o troféu do Baile da Neve e pensando como é e quando que a mulher ganhou este troféu e num baile e com neve. Quase que me esqueço que no início tive que fazer força para esquecer das sete saias da cantiga.
De Filó, é claro, Filó de quem não sei mais que suas imagens paradas e a gentileza em movimento via WhatsApp. Filó primeiro na foto de host-perfil com a camisa do Lakers e o mar de fundo, sorrindo de óculos escuros. Depois Filó nas taças bonitas com pois não tão petits cravadas a laser no cristal para dançar com o tinto. Filó no sétimo andar do Imperatore inteiro. Filó em cada porta-retrato. No zelo de informar o secador de cabelo, nas poucas gavetas cadeadas com pertences que imaginei modestos. Filó homenageada com acróstico de múltiplas qualidades a cada uma das quatro letras pelos adolescentes do esporte na parede do escritório. Filó no tampo vermelho de vidro do fogão combinando com a cor da chaleira elétrica. E, por falar em cor, Filó nos cinzas-claro cuidadosamente harmônicos dos jogos de cama. O lençol térmico, não esqueçam, meninas, de usar o lençol térmico.
E finalmente os sorrisos de Talita, uma doce lembrança. As fotos antigas e muito joviais de Talita de frente para Mafalda, Talita solo, Talita acompanhada dos amigos e da família, também com a gêmea de quem não soubemos o nome, Talita pequenina e mais moça, fazendo pose, e crismando, e levando um trote mas sem idade para que seja da faculdade, na virada dos anos 2000, com o olhar concentrado da dança contemporânea. A vida finda da Talita se pronunciando atrás da saudade da Filó, que exala de cada foto da montagem atrás daquele vidro, não se sabe como, mas claramente muito prematura.
De Filó não sei a voz. Mas conheci a casa. Por isso o sorriso, insistente. Por isso o espírito, aventureiro e esportista. Um pouco da bondade. As homenagens. As camas quentes. E uma partezinha de seu coração. Conheci o buraco no peito, que não parece lhe ter endurecido. Deve ser porque há de haver para sempre, do que não passa breve — como a gentileza da Filó — uma doce lembrança.
De Filó não sei a voz, mas talvez saiba um pouco do que de principal possa haver pra saber sobre alguém.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Alcautraz [final]


Bem-vindos ao derradeiro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
É sorte grande termos hoje estes ares de cerimônia, microfone e caixas de som, que assim as explicações ficam um pouco mais altas do que o barulho de obra. Novos presos, novas celas. Outras vazias, reformadas. Quanto maiores os Medos, maiores os muros. Quanto menor a segurança, maior o risco de que os meliantes segregados aqui se rebelem e alcancem a superfície, levando com eles para cima sabe-se lá que ordem de feiura, tragédias e reviravoltas.
Porque todos aqui acreditamos na máxima de que é melhor prevenir do que reencarcerar, gostaríamos de agradecer com profundíssima sinceridade aos nossos patrocinadores, que com generosidade nos proveem escavamentos, grades, pedras, cimento, as paredes grossas que segregam o que fica no alto dos marginalizados que ficam aqui embaixo deste empreendimento. Não nos esqueçamos, porém, que o que está na superfície e quem se encontra neste patamar têm ligação indissociável — e juntos moldam, com acentuada complexidade, a beleza da propriedade em sua inteireza. São peças contrastantes do jogo, inconfundivelmente diversas, opostas até, mas como aquelas do xadrez em que pretas e brancas valsam em casas brancas e pretas, cada uma em seu turno, cada uma a seu modo. Um balé torto, mas sincronizado. Uma casa para cá, duas celas para lá. Assim o farão continuamente, sabedoras de que suas luzes não pareceriam tão claras sem suas sombras, e suas sombras nunca teriam significado não fosse a chance de em um mau dia chegarem à luz, desprevenidas. Aqui, nestas masmorras, tenta-se guardá-las (ou recuperá-las) até o dia do xeque-mate final.
Sei que não é bem novo o conceito de criminalizar e penalizar o que se quer tentar reprimir, mas mesmo assim (ou talvez por isso) nossa atuação neste estabelecimento despertou, por anos, o interesse da comunidade, que pouco entendia dos critérios para nossas prisões e o bom funcionamento da casa. Então, nesta noite solene, gostaríamos de agradecer à gerência por tudo que este projeto de visitação proporcionou — ou, se quisermos usar da modéstia, tudo o que pode ter proporcionado — ao público que se dispôs a cada tour. Esta era uma tentativa grosseira e inicial de colaborar na mera classificação dos presos, e terminou por ser uma chance ímpar de elaborarmos um estudo, uma análise, um tratado (mezzo empírico, mezzo foucaultiano) do que importa para que o Caustelo permaneça de pé e operante; de tudo, tudo o que importa dos portões para dentro de quem tanto se vigia quanto se pune.
Nossos intentos de ressocialização falham muitas vezes — sabemos. As saídas de sete dias trazem-nos mais dores de cabeça do que proveitos. Alguns dos presos permanecerão neste subsolo perpetuamente, à espreita ou adormecidos, porque jamais ninguém estará preparado a pleno para lidar com eles. Outros se evadirão quando menos esperarmos. Uns poucos, refeitos de todo, irão embora em definitivo, o tapete vermelho estendido, porque já não oferecem perigo. Todos eles que daqui saírem, entretanto, darão meia volta, forçados a regressar pelo umbral da porta por onde entraram.
E é desta noção tão clara que emana a importância desta noite — na qual, em instantes, teremos a oportunidade de conhecer onde fica a última das celas, o pior preso deste vasto corredor, o fim da linha de nossas curiosas expedições.
Já lhes foi informado que diariamente chegam aqui novos Traumas, Ojerizas e Paranoias, e também novos Medos, alguns parentes dos antigos, outros de facção rival. E é verdade. Temos consciência, todavia, de que os novatos pouco ou nada interessam aos visitantes. Por mais que enfeitemos suas histórias para dar-lhes pompa e circunstância em contornos de ficção, sabemos que os recém-chegados pouco chamam às vossas atenções, porque há neles o frescor pueril de menores infratores. Quase uma graça se suporem malvados.
Foram sempre os presos das profundezas, de maior periculosidade, os que inspiraram maior atenção, respeito e parcimônia, os que exerceram maior fascínio aos estranhos e, por que não admitir, à Administração. Ganham cartas, documentários, séries, admiradores até. Seus crimes causam-nos maior comoção. E é assim também, ou principalmente, com aquele escondido por esta cortina que agora removeremos.

Rufem os tambores!

Ruja o leão alado entalhado em metal acima do portão principal do Caustelo!

Senhoras e senhores, eis aqui

o Não Vivido.

É só em tom circense que consigo anunciar este perigo gigante, delirante, sem rosto, incerto, assustador.
É isso mesmo que estão vendo: dele só se conhece o formato desta porta grossa, maciça, fechada, ao que se sabe sempre emperrada, pela qual ninguém deste corredor jamais conseguiu ver através nem conseguirá sair. É a ignorância completa sobre seu real conteúdo que o fabrica e consagra o maior Medo de todos. O medo imaginário, o medo imaginado.
Teme-se que algum dia alguma ventania de lá para cá possa abrir esta porta de golpe, sem ruído, sem aviso, dali saindo sorrateiras: qualquer sorte de lamentações; as piores cobras-lagartos, híbridos; ou um susto, um visgo, uma neve, uma febre, um abismo, a contaminação letal.
Mesmo assim, é tamanho o encanto que envelopa o tema que ninguém jamais ousou cadear esta entrada ou saída, o que implicaria algemar-lhe. Cultivamos neste preso todos nós, guias destas visitas, qualquer espécie de fé, uma esperança de salvação (sabe-se lá do quê), um deslumbramento. E, acima de tudo, um desejo de ver de perto o seu teor — desconhecido de horóscopos, do tarot, dos búzios e das bolas de cristal —, de modo que ninguém da segurança jamais teve a coragem e o desprendimento necessários para acrescer a esta porta tão grossa uma proteção adicional.
O Não Vivido é tão vasto que, diz-se, pode existir em forma de conjuntos (profissões, relações, conjunturas). Ele se acomoda na maior das celas atrás desta porta que podemos ver daqui. É um salão que, segundo a lenda, estende-se por milhas infinitas de comprimento e profundidade, avançando para baixo e para os lados, chegando a especular-se se ele quem forma a base de toda a construção (que poderia, assim, ser oca, não fosse as coisas dele se apinharem todas, compactadas, quase em vácuo, porque são tantas, tantas).
O Não Vivido é um acumulador. Guarda, por praxe, os formatos dos talheres de restaurantes chiques, que jamais se soube usar. Guarda uma foto adolescente abraçada no Mickey, o aparelho ortodôntico nos dentes, bem ao lado dos sonhos de ir pra Disney, que jamais se teve na infância. Guarda um piercing. Uma ou várias tatuagens. O Não Vivido contém até mesmo os rascunhos dos planos embrionários de um intercâmbio em outro idioma. Guarda pronúncias. A grinalda fincada num véu bem branquinho sob a abóbada ilustrada de uma Igreja Católica. Um jantar para pedir a mão à família. A justa causa de uma rescisão ao dizer umas verdades. Um pet com mais de dez anos de idade que deu pelos nas roupas, vida e doçura à casa e ensinou a não temer as mordidas. Um show lotado da Marília Mendonça no auge da carreira. O Não Vivido esconde os perdões tempranos que só vieram tarde ou ainda nem chegaram.
O Não Vivido é tão, mas tão poderoso que, segundo se sabe, pode inverter a lógica do tempo linear: nele estão retidas todas as ramificações, todas as possibilidades deixadas para trás em cada escolha, todos os sins de cada não, todas as imprudências e desvarios, todos os conselhos seguidos e não seguidos. O futuro inteiro mas, também, cada variação do passado.
O Não Vivido assusta mais do que qualquer fantasma, porque nega as verdades mais absolutas, como se nunca tivessem sido. Este preso é o mistério que há em cada possibilidade. E é só dispondo-se a olvidá-lo — soterrando sua existência junto com tudo que pode estar contido para além desta porta — que se pode encerrar esta grande noite, para seguirmos passeando leves pelo Caustelo.
Escauda acima, senhores.
Peço o favor de que desocupem estes assentos improvisados de expectativas onde se sentaram.
Esqueçamos, tanto quanto possível, as misérias e agruras deste Caulabouço.
É só à luz da superfície, neste baile promovido no dia de hoje para celebrar as conciliações e dinâmicas exigidas para o bom funcionamento da mansão da minha caubeça, que poderemos desfrutar felizes, em trajes de gala, enquanto a banda toca.
O último a sair, apague a luz.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Desautomação

Quem disse que as máquinas
logo fariam tudo
mentiu.

Experimenta não limpar o filtro.
Experimenta não comprar mais nuvem.
Testa aí não ampliar os giga.
Desrespeitar a potência
O ciclo
A voltagem
O manual
Ou não atualizar o sistema 
operacional
mas nem tanto
Se não respeitar à fórmula
Experimenta conversar com ela
Num idioma que ainda esteja aprendendo
Tenta tirar pra amiga
Sem chutar ou chacoalhar
Quando precisa
Experimenta não saber a senha
Ou esquecer de botar gasolina
Não obedecer ao algoritmo
Ou a algo
Ou ao ritmo
Que só sabe tocar zero e um
Pede a ela aí pra ver
Um chá, se chega na xícara
preferida
Se sabe mesmo passar o café
Só frasezinha pronta com travessão
Ou qualquer coisa de íntimo

Um dia hei de perder a memória
Esquecer os programas
E onde ficam os botões de ligar;
De dar enter
Um dia, com
                      tudo automatizado
As máquinas sentirão mais que eu
O que já sabem
+
Até lá queria experimentar
Não depender delas pra nada

Pensando bem, faz melhor:
Experimenta tirar da tomada.

domingo, 25 de maio de 2025

Cativo [13]

É no estômago que roncam as promessas de normalidade e paz da vida a dois. Não olhar mais a taça quebrada na pedra dura da pia, dessa vez foi de champanhe, da outra agora só tem duas. Cuida com esses cacos, passa uma água no que sobrou, tudo bem usar um guardanapo sim mas eu não faria assim, ouve só como grita a máquina de lavar que não escoa nem seca mais nada apitando “E21”, tenho te dito há semanas, sim, tem que chamar o encanador, tem - sujeito indefinido, tem é ninguém, alguém tem, tenho eu então, ah, sim, deve ser porque eu sou ansiosa. Ou resolutiva. Ou lavo a roupa, e não a louça. Ou tenho mais que uma calça jeans que presta, e em todas elas os bolsos cheios de empatia com o teu minimalismo distraído. Tenho aqui o contato, é do mesmo careiro da outra vez, eu só queria resolver logo, se soubesse que ia te irritar tanto não tinha agendado pra segunda, só o que me faltava é ter que vir recebê-lo, chama você de golpista e na cara dele de preferência, dá o teu show mas não pra mim, faz um pouco aí a linha macho man, esquece um pouco a educação mas não comigo, não, não é tédio o que eu estou sentindo, que eu não sou como aquela minha tia, é vontade de resolver tudo e logo e deixar funcional. Se reparar um pouco, quando eu dou pra procrastinar sou pior. Já devias ter aprendido que eu odeio absolutamente tudo o que só funciona no jeitinho. Pensei agora que relacionamento só funciona no jeitinho. Então vamos dizer que odeio quase tudo. Aqui eu fico. Não jogo fora. Não troco. Se chamo ajuda é pra consertar. Deve ter algo que preste pra salvar aqui. Senta pra meditar sobre isso nessa tampa do vaso que quebrou há três meses e agora enxuga o cheiro dos nossos mijos, de repente eu desparafuso e enfio ela num saco, que aí é ir comprar no dia ou cagar com a bunda direto na louça. Aposto que não vais querer. E ainda assim tenho muito claro que não estou louca. Não sou metódica. É isso ou usar o banheiro da visita, o que por motivos desconhecidos sei que também não vais querer. É isso ou ignorar outro dia as pequenezas que consomem o dia e, se não cuidar, o preenchem. É assim uma vida sem grandes questões atuais pra destrinchar. Fora as latentes. As mais ou menos antigas, agora e sempre mal resolvidas. As que voltam violentas na cara em pleno dia tal do mês tal do ano tal deitados na cama de manhã me chamando de hipócrita depois da visita ir embora só de ver de perto qualquer parente de segundo grau. E eu nos pergunto se é isso um relacionamento: às vezes engolir um pedaço seco de “apesar de” na esperança de depois ter molho. Verde, tártaro. Pimenta ou vinagrete? Pimenta. Sentir o canto da língua arder como as palavras de mais cedo, que não voltam mais para dentro da boca como agora esta comida entra. Esqueceram de tirar o alho do arroz. E se os dias andassem de dois em dois? Quem sabe o tempo passasse mais rápido. E se a honra fosse finalmente vingada num canto da festa, e se as goteiras de apartamento (eu que nem sabia que em prédio ia telha pra quebrar) pingassem também em cima das cabeças deles, na casa que eles ainda não compartilham, talvez nunca o façam, certos eles, coitados deles, e se de repente o piso deles também estufasse todo num anúncio estralado de estouro no meio da madrugada, e se ficasse o barulho fofo do oco entre o cimento e a cerâmica sem saber se foi na construção ou no assentar sem folga dos cantos e das fugas mas agora já venceu a garantia quanto é que vai custar o vinílico. E se o primeiro pensamento da manhã ao pisar no chão fosse sempre esse oco, esses cantos, essas iminências de quebra, esses erros e adiamentos, essas providências e fugas, amor? Quão incomodados ficaríamos até a barriga nos lembrar de novo que essa energia que gastamos há pouco em discussão interminável precisa vir de algum lugar. Vamos almoçar um peixe? À noite pedir um South ou inventar uma sopa, como a que revigora com cuidado e nutrientes os moribundos - como vez ou outra parece ficar o amor. Depois de comer melhora.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Buscar o balde

Quem inventou as horas
deu-nos a inventar a gestão do tempo
Noção de obrigação
Procrastinação
E o controle dos im-
pulsos, que tic-tacam.

Foram as horas que engenharam a moral
E esse lance de ser pontual

Ponteiro menor, perpendicular
Número em número
Marca o’clock
Apontando
Em ponto
ou traço
A raiz quadrada
dos começos
Das entradas
E compromissos
Mentais

Pouco ócio
Muito cálcio
Pra aguentar a dor nos ossos
de quebrar
o tempo em fatias
E sobre elas ser responsável
Por chegar
E sair
O atrasar
De repente
É caso de não pensar em
Sentir-se devendo
À etiqueta da agenda alheia

O tempo-rei de Gil avança
— e não se compra o Rei,
como à terra dos feudos
Ou a uma carta de baralho.
Incorruptível,
Só sabe andar pra frente
Sem olhar pros lados.

O tempo é um sol
que gira em curva no céu:
metade até chegar a pino
fazendo alarde
e soar um sino
Outra metade em queda
pra chegar à noite
que lhe põe de novo um fim, zera a contagem
De buscar o balde.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Trend alert

Se a boca não tivesse lábios
Acharíamos bonito ou feio
ter os dentes bronzeados
- penso, enquanto uns cliques me tele-transportam
do guarda-roupa abarrotado
aqui de casa
diretamente à pilha
de poliéster do Atacama
que se vê do espaço.
Já foi tendência
Voltará a ser um dia
Hoje é lixo
Lixo puro que não decompõe
- penso, enquanto o diabo veste a Prada
que não foi comprada em brechó
E a alfaiataria da Renner
E a Shein
vez ou outra
Exceto quando não está
A inventar rapidamente a moda
Produzida pra gente vestir e calçar
E consumir
a moda até
Derreter 
a moda até
Gastar a moda
Usando
a moda até
ano que vem no máximo
Quando a descartará
pra nova moda vir
- penso, no dia em que Virgínia
(e Pepes morrem!)
vestindo moletom
no Instagram
na CPI
As vitrines da avenida
estão bem cheias
Das peças que não precisamos
Combinando com outras
Das quais precisaremos
Depois das primeiras
- penso, com um laço em forma de flor atado ao corpo marcando a cintura
bochechas cheias de blush
camisa e botões
saia de cetim
os pés içados
massacrados
por salto 9
disse um dia Vivier
- penso, “bonito assim”.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Mão francesa

É o que me atravessa de ti que me sustenta em pé
O que se inclina em minha direção me firma
Feito mão francesa

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Salve Jactar

Na semente da minha árvore genealógica
houve um escravo
Deixou de ser cativo
Germinou
E fez nós todos:
Bravios, fortes e bravos
Rebeldes
de doer
terrivelmente
Insubordinados.

Aquele escravo arredio vagueia
Ancestral
Em espírito
Em cada folha tempestuosa
De sobrancelhas grossas.

No tronco, abraça a fúria resistente
de não se dobrar
Por pouco
ainda carrega
Dores tão tão antigas
Das quais a memória
da pele, há muito parda,
dos piores açoites
Nunca se esqueceu

Nossas mulheres
De largos quadris
E cinturas bem finas
Jactam-se ébrias em brios
De serem fortes
Muito mais que os homens
— os seus primeiros,
que não prestavam,
já se foram —
Tanto quanto as que vieram antes,
E infelizmente também
já se foram
De maneiras outras
Pelas quais lamentamos
demasiado.

Feito o que se pode
com o que se tinha
Na neblina da primeira hora da manhã
Rezam a metade de um terço com fé
feito papagaio:
Iluminai-me!
Iluminai-me,
Ó Pai bem forte,
Ensina-me a
não precisar tanto
A plena liberdade.
Rezam enquanto o germe
ainda brota
Nos corações
quando aflitos
Enquanto descansa
Combalido dos combates
olhando
de baixo
da terra
da árvore frondosa
Travado nas rodas
de uma cadeira
Orgulhosíssimo

Assustados com o que não soubemos
Como ele, ex-
Cravo um amor por qualquer poder
Pra sermos vistos, amados
Considerados
Mais votados.
Como ele, odiamos para sempre:
perder;
preguiça;
a escassez;
a ingratidão;
mesquinharia;
devedores contumazes;
não sermos donos
nem de nós mesmo
alforriados;
quem nos tem ofendido; a
mesma cobra
mesmo
que nunca mais nos pique;
quem tratou os dentes cedo
e com bom plano de saúde; ou
que suficientemente
— para nos fazer esquecer do passado
não nos
Acatem
Adivinhem,
Amem.

Incondicionalmente.
Como, enterrada em propósito,
hostil não soube
a semente.

O sangue vale mais que a reza.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Achismos

Acho engraçado alguém achar que psicóloga brinca de marionete. Não sei se minhas articulações e falanges nasceram atrofiadas e rígidas demais para encaixar nos fios, mas me parece mesmo impossível que mesmo vulnerável qualquer delas fosse capaz de me conduzir exatamente como quisesse na base do conselho. Deliro de ser i-ma-ni-pu-lá-vel.

Acho perigoso olhar muito pra cima ou muito para baixo nos degraus sociais. Me dá um torcicolo do cão ficar julgando o quão mais eu poderia fazer tendo um pouco mais desde o princípio e há um abismo muito do lado do meu pé, no qual tenho vertigem de cair e nunca mais levantar, ao pensar que nenhuma das minhas dores é legítima a depender do quanto doa mais o básico, na maioria. Podia fazer uma moral da história falando em validação das dores e em olhar para frente, mas não era — não era mesmo — sobre isso que eu queria falar.

Acho presunçoso para um caralho escrever sem ler muito. Ainda que pra mim escrever seja apenas um procedimento padrão de profilaxia, como é a punheta para os homens. Passando dos 30 descobri que posso desagradar livremente escrevendo textos com palavras de gente grande chula como “caralho” e “punheta” — a palavra crua, a palavra nua, a boca suja da palavra decadente dos becos, como ela me ocorre na cabeça em pensamento — e simplesmente seguir minha vida. Não vou elaborar.

Acho que likes, corações e palmas direcionam muito o conteúdo. Um algoritmo um quê de mental: algo como sentir que precisa muito de algo depois de ver muitas vezes o anúncio. Ainda assim, sigo adepta do contador de visitas. Por isso não usei a palavra view: pode-se ser entusiasta do alcance e não refém da aprovação. Dar aos outros o direito de acesso e o de discordância, simultaneamente. Até lidar com isso.

Acho as respostas da inteligência artificial com base nos textos enlatados por normas meia-boca que o mecanismo de pesquisa fez bons redatores terem que escrever por anos só para rankear bem nos resultados um produto produto produto. Vídeos? Só de até um minuto e meio, que ninguém aguenta mais. E eu meio que não aguento mais viver na época em que ninguém aguenta mais.

Acho que se digo coisas como “ainda estou decidindo se sou racista ao ler mentalmente a primeira pessoa de um autor negro com a voz do Mano Brown” e recebo de volta um silêncio, este é um silêncio elegante que diz bastante. Emendado com um “Não gostei de Kundera, achei chatíssimo”, então? Vish. Diz tudo. Será que eu também achei chato? Será que eu posso? Que um dia me darei o direito? Tenho a impressão de que, ao contrário da comida, seria uma heresia dizer que não gosto de algo sem primeiro experimentar tudo. Entender tudo. Todas as obras, contexto e nuances. Sim, eu me dei uma tarefa impossível, como adivinhou? Como se eu vivesse em constante processo etnográfico dos meus próprios hábitos e gostos, mas ainda estivesse na fase da coleta de dados, sem tecer juízo de valor. Ao mesmo tempo, a vida é tão curta. Deve ser libertador, sim, deve ser libertador ler só mulher, saber fazer mais silêncio (e eles ainda assim dizerem coisas) e ter por pilar da existência se dar o direito de ser desagradada.

Acho que um dia eu chego lá.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

As serei

sonhei com sua senhora sorrindo
redondamente grávida
                            enganada também
banhada às águas dulcíssimas do equívoco
no escuro prestes a parir
cópia de si
ou Ana ou Vitória ou
outra filha da
santa
sabe-se lá das escolhas dessas moças de hoje em dia
em serem santas
podendo ser tudo
escolhem justo
chás revelação
olhar de candura
vestidinhos soltos de florzinha em tom pastel com lastex
barato
sainhas rodadas pra baixo do joelho
caras
como você
afundados em papéis
bem definidos
subindo montanhas
de isolamento racional
e a vozinha dela mansa
ela toda mansinha
lentificada e meiga
nenhum pelo fora do lugar
nenhuma falta de juízo
nenhum excesso de passado
que possa contar

e se jamais as serei
é que eu me fiz primeiro eu
pergunte a Cássia
à voz rasgada
dos cheques e pileques
meu carro
de ir embora
e tudo o mais

não que minha mesa não seja posta
às vezes
não que eu tenha visto bem onde deu
o onde vai dar
nem que eu possa, dando fé, atestar
se é mesmo boa sorte
o azar
de eu ser das outras, que só caladas são poetas
de eu ser das outras, que sentem
muito de dentro
ainda o assomo
de retaliar
nem que seja
com um poeminha raiz
que
        eles não dizem o que a gente diz
        eles não tocam bem onde lateja
        eles não fazem o que a gente faz
        se danem eu e
        é'ssa mania
de não me deixar em paz

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Essas coisas acontecem

Fantasiei muito com o dia em que eu bateria o carro. Essas coisas acontecem, o trânsito é implacável, meu pai é motorista, fui criada pra morrer de medo. Há na rua loucos de todos os tipos, aqueles que saem do Mosquito bêbados domingo à noite pela BR em vez de irem embora por dentro, os que fazem jornadas de mil e uma horas na boleia de um caminhão ou de um ônibus de linha e sentem sono, daqueles que acabaram de fazer a carteira e ainda não praticaram que chega, dos que andam a duzentos por hora achando que são por isso mais ou muito machos. E os piores de todos: ciclistas em cima da pista.
Esta racionalidade sobre quem posso encontrar na estrada, que sempre me pôs muito atenta, nunca impediu de enfurecer. Eu tenho ímpetos de buzinância. Algum chapeleiro entra sem dar seta, para no meio da pista ou resolve ultrapassar em faixa dupla e eu xingo alto, altíssimo, até a décima terceira geração. Xingo de CORNO (o meu preferido), de BARBEIRO (ué?), pergunto até POR QUE NÃO FICOU EM CASA EM VEZ DE SAIR COM ESTA MERDA DE UNO MILLE BOLA DE MASSA COM O FAROL QUEIMADO POR AÍ (a consciência de classe presa no porta-malas), ou apelo ao clássico: só podia mesmo ser um filho DA PUTA de um ALEMÃO BURRO desses (a misoginia de sempre, mas com aquela pitada de xenofobia do bem). Falo sempre com os vidros fechados. Batendo as mãos vigorosamente no volante ou balançando no ar. Só não buzino como eu quero de medo de levar tiro, que ultimamente nunca se sabe. Mas brava, na versão motorizada, eu fico muito. Transformada.
Em minha defesa, é quase tudo medo. O medo velho, enraizado e alastrado, de não ser sempre a motorista do ano. O medo de ser lenta (ou não ser safa?). O medo de bater e manchar minha CNH com um incidente grave, quem sabe até, deusmelivre, uma indenizatória que custe dez anos e dure meio milhão além da apólice.
Por essas e outras sinto que era mesmo preciso que eu tivesse alguma estrutura emocional para o dia em que acontecesse. Então eu fui me preparando pouco em pouco. Fantasiei muito, de pouco em pouco. Às vezes, desviando de colisões por um fio, depois de muito ralhar, eu pensava: não foi hoje, vai ser na próxima. A ideia continuava ali, com seu poder da (dis)(a)tração. Talvez, de tanto pensar em como me comportar no momento, eu pudesse repelir a possibilidade — ou pelo menos me comportar bem, sem dizer tudo que eu digo de vidros fechados seguindo viagem.
No meu delírio imaginativo de antecipação e controle, seria assim: eu respiraria fundo e desceria do carro paciente, para não arrumar encrenca. Acalmaria o cara, que estaria mais nervoso que eu, porque é sempre um cara, é sempre bronco, os caras nunca costumam saber lidar direito com nada, quem dirá com as emoções imprevistas — menos ainda as que envolvam carros, esta extensão com rodas e lataria de seus paus e bolas. Finíssima e equilibrada, de scarpin e bem vestida, com a voz baixa, eu diria: não tem problema. O senhor só foi um pouquinho desatento. Esse cruzamento é mesmo mal sinalizado. Meu carro é preto, talvez o senhor não tenha visto. Teve que parar para não atropelar o menino? Acontece. Não tem seguro? Não tem problema, posso acionar o meu. Vamos fazer assim, vou anotar o seu número e voltamos a conversar quando meu corretor responder. Quer que eu faça o b.o.?
Nem nas fantasias mais aleatórias que sou capaz de engendrar imaginei que estaria no trevo da minha cidade natal, justo o mais perigoso de todos, sobre o qual fui repetidamente alertada por mais vezes na vida para ter sempre a atenção redobrada. O meu perigoso portal para o mundo além da BR. Também não alcancei, em imaginação, o fato de que estaria na carona do meu próprio carro. Tampouco que instantes antes Rodrigo e eu nos digladiaríamos tão feiamente com uma pequena aranha descida por uma teia, um pulo mortal ou um voo (essa certamente sabia voar) desde o vão do teto solar fechado. A aranha pulou nele, depois pulou em mim, ficou pairando um pouco no ar, agitei os braços gritando como para espantar urso, aí pulou de novo nele, agora nas costas. Fica parado. De repente eu mato com esta pasta cheia de documentos do inventário da vó Cecília, que tal.
Tamanha a imprevisão das rápidas circunstâncias do destino, as fantasias que eu sempre alimentei não me precaveram sobre ele distraidamente soltar o pé do freio do Cruze no instante em que lhes agredi com a pasta, e então colidir de leve na traseira de uma EcoSport branca que puxava a fila em que éramos os segundos, esperando para cruzar a BR. Como não tenho tesão em me sentir culpada e gosto de me ver — mesmo nas ideias mais longínquas e hipóteses remotas — tendo sempre a razão, nisso, nisso mesmo que aconteceu, eu sinto que mesmo fantasiando muito eu jamais pensaria.
Também não fui capaz de prever dona Rosa. Descendo da EcoSport com suas panturrilhas grossas, envoltas em seu vestido florido de liganete. As sobrancelhas tatuadas, muito pretas e retas, como num desenho animado. A irmã, mais idosa ainda que ela, descendo demorada da carona de bengala, bem devagar, para nos avisar que se ela estava fotografando todos os (poucos) danos e a minha placa tantas vezes, certificando-se de que o celular captou tudo na tela contra o sol, mas sem me responder uma só palavra, não é que ela seja mal educada ou esteja furiosa, como estaria qualquer cara. É que ela é meio surda. Tem que falar bem alto com ela. 
A senhora ME DESCULPE, dona Rosa. FOI UMA ARANHA. EU SEI, dona Rosa, SE CONTAR NINGUÉM ACREDITA. Não, carros como os nossos não morrem. Foi batida. Culpa nossa. Ah, já bateu várias vezes nos últimos tempos, dona Rosa? DESSA VEZ A SENHORA NÃO TEVE CULPA. Da última vez lhe deram o cano? FIQUE TRANQUILA, dona Rosa. Mas será que não foi por causa dessas suas mensagens temporárias do WhatsApp, que fizeram sumir a que o cidadão lhe enviou, assim como sumirão completamente todas as minhas amanhã de manhã? O quê!? Perdeu o marido essa semana, dona Rosa? NÃO ACREDITO! Era ele que dirigia e resolvia as coisas pra senhora? Tá sem cabeça, dona Rosa? Eu imagino. Eu SINTO MUITO, viu? QUE BOM QUE NÃO FOI NADA GRAVE. Tá aqui o meu telefone, sim, sim, deixa que eu salvo no seu, e esse é o endereço DO ESCRITÓRIO ONDE EU TRABALHO. Sim, eu trabalho lá, na mesma cidade que a senhora. Qualquer coisa pode me PROCURAR PESSOALMENTE, viu? TERÇA EU TE CHAMO DE NOVO pra garantir.

"Eu falo sempre por áudio mas você tem que escrever, minha filha. Senão, eu não escuto".

Acredita, dona Rosa, que eu sempre digo que escrevo melhor do que falo? Até prefiro. Não vai compensar acionar o seguro. Contra terceiro não tem franquia, mas aí vai demorar. Tem muita burocracia. Pode escolher a chapeação que a gente paga. Sim, pode esperar seu filho chegar pra ir orçar. Depois me avisa. Sinto muito pela sua perda. Sim, o meu carro também vai precisar de conserto. Não se preocupa, também foi pouquinho. Não vou precisar trocar o farol. Obrigada pela paciência. Não, a senhora não teve culpa. De verdade. Não precisa se desculpar nem dizer que velho é assim mesmo. Eu também faço muito isso de antecipar as coisas, dona Rosa, mas não deixo de me surpreender quando acontecem. A senhora também? Seus métodos preocupativos também não lhe garantem nada? Sua diarista também nunca entende o seu esquema tático da organização das roupas nas prateleiras do armário quando vai guardar passadas? A senhora também já se cansou de fazer coisas grandiosas, com um padrão de exigência altíssimo, e agora quer fazer as coisas pequenosas com atenção nas pessoas e mais gentileza? Dona Rosa, eu sou tão adulta, mas tão adulta já, que ao meio-dia eu vou correr em casa lavar uma maquinada de roupa. Tenho usado camiseta de malha embaixo de blazer. Talvez seja de tênis que eu vou descer na próxima. Mas vou ser mansa como a senhora foi. A vida é cheia de mistérios assim.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Princesa Narcisa

A princesa
no alto da torre
Penteava os cabelos
Enfrentando a um grande
Espelho
Enquant… Oh!
espera.
Ser salva!? Por
Alguém que
Arrombe a porta
Afoito e forte
Aos pontapés e lhe
Alcance
enfim mas só
Após subir
quase ao nível de
Platibanda!?

Penteava os cabelos curtos, na altura dos ombros, como
Para estimular que crescessem
e lhe desembaraçassem
a fuga
e então um dia,
Como em outra estória famosa,
Finalmente
Lançá-los-ia
Trançados
Pela janela pequena
Para fazê-los de escad…
Até que ouviu seu nome:
— Narcisa! — Narcisa!
Umas seis vezes seguidas.
Foi o tempo de um espanto,
e de novo: — Narcisa!

Alguém lhe chama
pelo nome
pela janela ao
pé da torre e não se ouvem
passos.

“Como assim, quer que eu desça!?
E os perigos de ser tão
acessível e
aberta
na travessia
o Corredor-reflexo
dando pra ver
até o caroço
do medo
da queda
mais um tanto
de medo
de ir ao raso
e lá ficar
Não era alguém que subiria me salvar!?”

E ouve outra vez
— Narcisa!
E além do mais
Como abrirá a porta
com esta chave qu…
espera.
Estava
Espetada
na fechadura
do lado de dentro
Esse tempo todo!?

Toma coragem e caminha
Flexionando os calcanhares
Degraus abaixo,
Em direção
Ao nível mais elementar e
Ao longe
Ouve ecoar:
— Narcis… Aaaaah!
‘té me dói o quadril
de tanto correr
pra chegar!
O Príncipe lhe diz, e apressa:
— Desce, princesa atrasada
Espero há cinco e nem
um minuto mais
Se te ocorre mesmo ser salva,
Desce ligeira daí
e experimenta
Ser finalmente feliz
Aqui,
Realizando um
plano horizontal
Onde nos
perderemos
Outras centenas de
vezes de
vista e mesmo assim
voltaremos ao
Encontro
Se formos mais 
a nossa procura
E ao espelho
menos, Narcisa.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Trepadeira

Me vem vivo o momento em que nos entreolhamos, todos sentados no bar, a música acabada, as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos pela metade em cima da mesa. Foi um pouco antes de te dizermos, entrecortando o silêncio constrangedor: nós não sabemos. Ninguém quer começar a responder à tua pergunta e é porque nós não sabemos. É isso mesmo que você ouviu. Desculpe, nós não sabemos. Não sabemos exatamente quais são nossos planos de longo prazo. Lamento desapontar, estamos tão perdidas quanto você, mas cada um a seu modo, e refém (não-refém) de nossas crianças interiores e suas próprias circunstâncias — inventadas ou não, marcando-nos como elas nos marcaram.
De minha parte sempre foi assim, tu sabes. Eu não faço planos longos, a faculdade foi o último deles e sinto que não fui eu quem a sonhei pra mim. Desde então todos os planos me vêm em lampejo e de sobressalto. Até as viagens, entende? Nunca as sonhei tão de véspera para que, fazendo-as, houvesse um único e grande sonho se realizando. Houve satisfação em todas elas, é claro que houve, houve um ar fresco entrando pelos pulmões que me ensinou um punhado de coisas sobre independência e eliminar fronteiras, mas nunca houve a impressão de que aquela era uma meta importante se cumprindo. De minha parte, eu vou vivendo. Vendo no que vai dar. Remoendo — às vezes demais, com todas aquelas teorias mirabolantes que os meus vinte centavos de TCC bem feitinha e psicanálise selvagem me proporcionaram. Falando tanto, tanto. Fazendo muito pouco silêncio. Tu és igual.
Meu maior sonho, me ocorre agora, não exige tanto planejamento, só obstinação, porque é o de preservar o encantamento com as coisas boas mais pequenas e com aquelas que antes pareciam impossíveis e agora são realizáveis. É isso e saber dizer não. São coisas que eu também desejo pra ti, do fundo do meu coração, como se faz com os melhores amigos. Quanto a mim, também facilita muito nunca ter tido a ambição de morar fora: facilita me esconder sob o manto da filha única zelosa e diligente que não o faz só por isso.
Não é só por isso. Sabemos. Era sobre isso que tu querias a resposta, certo? Sobre nossas intenções de desbravar o mundo, já que ele é tão imenso? Sobre por que ainda sentimos que cabemos neste lugar minúsculo, se somos garotas grandes e tão parecidas contigo? Se sentimos algum pertencimento permanecendo aqui?
Pera, eu me sinto no Show do Milhão, só que sem os universitários. E sem as cartas. E sem a ligação para a família. Para ser franca, até sem as quatro ou cinco alternativas para eleger para chutar uma das duas mais prováveis. A vida do adulto não tem quatro ou cinco respostas, amigo. Ela tem sempre mil e uma possibilidades e suas borboletas, com efeitos que vêm muito logo depois das escolhas.
A minha resposta, então, tem de ser assim: discursiva. Deve ser um pouco mais completa. Deve passar pelo fato de que qualquer lugar do mundo vai me exigir o esforço de caber. Caber em mim. Eu sou uma casa tão confortável. Às vezes tão espaçosa. Noutras, como tu também te sentes, eu sou tão apertada que me esforço para que a ansiedade não faça vazarem partes feias de mim pelas janelas do meu corpo afora, para que não machuquem os outros.
Dessa loucura eu sei que conheces bem, o que muito provavelmente é o que fez com que sejamos tão próximos com esta América e este Brasil com S de distâncias. É isso e os sincericídios de não precisar medir as palavras porque o carinho e o afeto se pressupõem, adiantando-se, precipitados, sob o impacto de qualquer verdade dita na lata. "No fim do dia" (ou das tantas horas de voo e escalas até chegar), mesmo sendo dois chatos completos iguaizinhos à mãe da nossa amiga, nós somos mais nós. Ainda é meu o teu primeiro abraço de chegada em casa. É minha, sem precisar pedir, a tua primeira foto do carrossel logo depois das madrinhas. A gente sabe sem precisar dar corda para competições com teus outros amores.
Me perdi em divagações. Vou tentar recapitular a pergunta. Para quem sabe dar uma resposta melhor.
Eu vou ser sempre grata pelo teu olhar generoso e de admiração com os meus compromissos em ser dez com três estrelinhas, mas nem isso é pra mim exatamente um sonho ou uma realização. É antes um riscado traçado. Guardadas as diferenças entre as nossas realidades, é como se nós nunca tivéssemos tido outra opção que não suar muito para fazer a vida mudar, se quiséssemos apenas não repetir tudo. Tu sabes. Talvez um dia eu vire de volta para a estrada da mediocridade e entenda que somos todos iguais, todos especiais, todos tremendamente substituíveis. Que estamos todos no mesmo barco. Sinto que estou cada vez mais perto disso. Já sinto que é hora de remar só com a ponta para não morrer (ou endoidar) afogada de tanto tentar me definir pelo meu trabalho, mas sei que pra ti os anos de workaholic ainda me dão crédito para esta guinada. Viemos de tão perto que isso é sentido nos poros.
Alguns de nós têm vidas mais interessantes, porque se abrem mais. Tu és mais titular desse time do que eu (pega aí essa referência de futebol mesmo sem entender nada). Tu és mais desse time dos vorazes por viver abertos do que eu, mas estou aqui, no banco da reserva, te aplaudindo em nome do espírito de equipe. Te aplaudo enquanto os outros se enclausuram na mesmice do que os "outros outros" vão pensar. E eu os entendo. Não respeito, trabalho para não imitar, mas entendo, porque o interior geográfico modifica o interior da gente.
Só não mais que a sua amizade me modificou. Te juro, conviver contigo mudou tudo. Tenho isso muito claro, vou escrever em seguida para ficar marcado em brasa nessas páginas eletrônicas: sem ti, as coisas para mim seriam muito diferentes. As cercas de preconceito teriam ficado trancadas sem permitir a minha própria saída. A empatia não teria ido até o capítulo dois. Meus medos se acanharam todos diante da tua coragem.
Deve ser por isso que o teu grande sonho sempre foi chegar na maior metrópole do maior lugar do planeta que conhecemos e aí abrir bem as asas. Depois fechá-las para refletir um pouco sobre compromisso em relacionamentos ou riquezas além da conta em certas coberturas de Ipanema. O pacote da vida vem com todas as renúncias e engessamentos sim, meu amor. Várias delas, vários deles. Mas sinto (e torço que às vezes venhas a sentir também) que a gente cresce nos desafios da convivência a dois, nos pontos de contato, nas faíscas, na determinação em ter com um outro eleito para ser nosso quem sabe o mesmo respeito incondicional e dedicação gigante que nutrimos pelos amigos. Sim, vamos ter que antes dissolver as expectativas. Não dá pra ganhar todas.
Essa procura por sentido e por respostas, que eu sei que só estás sentindo por já ter sentido muito e um pouco de tudo, olhando daqui, do meu lugar de tua amiga 30+, parece fundamental para o processo de amadurecimento. Esta busca é tudo com o que podemos nos comprometer até que o sentido da vida mude outra vez. A experimentação de tanto mundo, de tanto sexo, de tantas liberdades e de tantas desigualdades sociais nos últimos tempos nunca mais vai deixar de existir para ti. Espreme bem o que sobrou desse caldo de frutas tropicais e faz um suco de aprendizado à tua maneira, como foi sempre até aqui. Bebo contigo, problematizo contigo, saio mais forte contigo.
As crianças do João e Maria acabaram de sair barulhentas para o pátio aqui na frente do escritório. Minhas janelas estão todas abertas e entrou por elas o pensamento de que nós dois seremos sempre um pouco como estas crianças. Ansiosos pela hora do recreio, para dar uns berros, soltar os bichos, ser mais nós mesmos. Neste intervalo, também cresceremos. Eventualmente, depois, voltaremos de novo para a casinha, onde haverá alguma ordem. E sempre, sempre, bons amigos. Capazes de nos provar que, só por sermos de verdade, mesmo um pouco perdidos, oscilantes e tão inquietos, nunca estaremos sós neste mundo. Voltaremos de tempos em tempos: a enlouquecer, mas também ao abraço no mercado da chegada, às comemorações na Lagoa do teu aniversário, a estarmos todos sentados no bar, a música acabada (depois de você tirar a regata e o segurança mandar pôr de novo), as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos — meio cheios — em cima da mesa. Nós também meio cheios das nossas perguntas que o mundo ainda não respondeu. Juntos, mesmo sem entender tudo.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Zeitgeist

Sou uma Lila às avessas, você sabe: eu quero escrever para durar além de mim e não passar batido. Voltar e ler a captura de um momento exato em que tudo pareceu mais leve porque você estava. Você
que já me enxergava antes de eu estar totalmente a descoberto. Você que desvia de todos os caminhos da presunção e admira a poesia concreta. Contida não em palavras e sim nas escolhas, nas certezas, nas constâncias, nos gestos. Nosso amor é esse livro que escolhemos ler antes dos outros apesar de todas as bibliotecas que por isso permanecerão intocadas. Amar você me orienta. Arrisco em dizer que me orienta até mais quando é difícil. Porque talvez a maior lição da minha vida seja aprender a persistir
no acerto
até quando ele me desconforta. E você é um acerto dos grandes. Um equilíbrio de doçura e dureza, mas sobretudo de disponibilidade e cuidado com o que é frágil de mim. Se minha boca adormece, meu coração palpita ou minha náusea embrulha, num gesto íntimo você me desculpa pelo trabalho que eu dou ao trocarmos a direção me dizendo: Ana, a ansiedade é um zeitgeist.
E sei que porque eu caminho contigo às vezes sinto essa impressão de que estou a salvo. Que só divergimos no superficial e que concordamos no fundamental. E isso é tão raro, amor. Atravessar a vida com essa certeza é de uma raridade raríssima, pleonástica, superlativa, e você me empresta ela um pouco mais a cada vez que fazemos o caminho de volta para os braços um do outro depois das dúvidas e dos problemas que até então não tínhamos.
Você me alcança com palavras que nunca tinham tocado antes: diz “progressivo”; “psicodélico”; “experimental”; e eu me alegro de pensar no quanto ainda tenho para ser descoberto, e me dá também uma vaidade alegre imaginar as coisas que te alcancei e apresentei primeiro, por menores que sejam, e aí esta outra coisa a que se pode chamar um encontro ganha contornos de mistério em como por que é que eu encostei no pendrive de um cabeludo tímido na frente do bar e perguntei: o que é isso? E ri ainda sem saber ali que depois nossas vidas seriam entrelaçadas tão significativamente.
Você me toca. Ser tocada por ti me comove. Te enxergar inteiro é um exercício que vai durar pra mim. Como durarão também estas declarações de amor: um retrato fiel do que a gente é capaz de fazer enquanto o mundo lá fora pode nos torcer, caótico, e estar prestes a explodir em calor, guerra ou crenças mirabolantes. Tendo a difícil paciência mansa de se amar com insistência, se encaixar até caber, entregar tudo, curar onde dói.