quinta-feira, 5 de junho de 2025

Heartbnb

De Filó não sei a voz. Reconheci mais velha no sorriso de Mafalda, a mãe, aniversariando ao lado das hortênsias bem roxinhas com o colar de ouro, os brincos de pérolas, os vincos na pele do rosto de quem criou como podia os sete filhos que lhe fazem companhia em quadradinhos recortados de outras fotos emoldurados num rolo de filme no quadro antigo do corredor. Foi boa a mãe. Sei só pelo poema emocionado atribuído a Rui Barbosa entremeando as carinhas deles sete. Em cursiva estilizada no fim: Mafalda. 80 anos. Sorrio: "Igual à de Quino, mas acho que veio antes".
De Filó não decorei o nome. Conheço o vulgo. Comi o pão fresquinho, dei dois goles na sua cerveja, sentei no sofá grande com um remendinho impecável, admirei o trilho coloridíssimo da mesa (um qualquer coisa de arte peruana). A sala parecendo maior por conta do espelho gigante, paraíso de leonina. As cores dos móveis ornando com a beleza do tapete. O friozinho que se sente manhã cedo abrindo a brisa da sacada, São Joaquim toda com o céu azul, azul bem lindo, dá vontade de morar em dia assim e contemplar. O móvel há gerações na família, os vinhos da noite passada, em que comemos a margherita com as mãos, o aquecedor ligado e as gurias sentadas no chão. Eu espiando de canto de olho o troféu do Baile da Neve e pensando como é e quando que a mulher ganhou este troféu e num baile e com neve. Quase que me esqueço que no início tive que fazer força para esquecer das sete saias da cantiga.
De Filó, é claro, Filó de quem não sei mais que suas imagens paradas e a gentileza em movimento via WhatsApp. Filó primeiro na foto de host-perfil com a camisa do Lakers e o mar de fundo, sorrindo de óculos escuros. Depois Filó nas taças bonitas com pois não tão petits cravadas a laser no cristal para dançar com o tinto. Filó no sétimo andar do Imperatore inteiro. Filó em cada porta-retrato. No zelo de informar o secador de cabelo, nas poucas gavetas cadeadas com pertences que imaginei modestos. Filó homenageada com acróstico de múltiplas qualidades a cada uma das quatro letras pelos adolescentes do esporte na parede do escritório. Filó no tampo vermelho de vidro do fogão combinando com a cor da chaleira elétrica. E, por falar em cor, Filó nos cinzas-claro cuidadosamente harmônicos dos jogos de cama. O lençol térmico, não esqueçam, meninas, de usar o lençol térmico.
E finalmente os sorrisos de Talita, uma doce lembrança. As fotos antigas e muito joviais de Talita de frente para Mafalda, Talita solo, Talita acompanhada dos amigos e da família, também com a gêmea de quem não soubemos o nome, Talita pequenina e mais moça, fazendo pose, e crismando, e levando um trote mas sem idade para que seja da faculdade, na virada dos anos 2000, com o olhar concentrado da dança contemporânea. A vida finda da Talita se pronunciando atrás da saudade da Filó, que exala de cada foto da montagem atrás daquele vidro, não se sabe como, mas claramente muito prematura.
De Filó não sei a voz. Mas conheci a casa. Por isso o sorriso, insistente. Por isso o espírito, aventureiro e esportista. Um pouco da bondade. As homenagens. As camas quentes. E uma partezinha de seu coração. Conheci o buraco no peito, que não parece lhe ter endurecido. Deve ser porque há de haver para sempre, do que não passa breve — como a gentileza da Filó — uma doce lembrança.
De Filó não sei a voz, mas talvez saiba um pouco do que de principal possa haver pra saber sobre alguém.