Bem-vindos ao derradeiro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
É sorte grande termos hoje estes ares de cerimônia, microfone e caixas de som, que assim as explicações ficam um pouco mais altas do que o barulho de obra. Novos presos, novas celas. Outras vazias, reformadas. Quanto maiores os Medos, maiores os muros. Quanto menor a segurança, maior o risco de que os meliantes segregados aqui se rebelem e alcancem a superfície, levando com eles para cima sabe-se lá que ordem de feiura, tragédias e reviravoltas.
Porque todos aqui acreditamos na máxima de que é melhor prevenir do que reencarcerar, gostaríamos de agradecer com profundíssima sinceridade aos nossos patrocinadores, que com generosidade nos proveem escavamentos, grades, pedras, cimento, as paredes grossas que segregam o que fica no alto dos marginalizados que ficam aqui embaixo deste empreendimento. Não nos esqueçamos, porém, que o que está na superfície e quem se encontra neste patamar têm ligação indissociável — e juntos moldam, com acentuada complexidade, a beleza da propriedade em sua inteireza. São peças contrastantes do jogo, inconfundivelmente diversas, opostas até, mas como aquelas do xadrez em que pretas e brancas valsam em casas brancas e pretas, cada uma em seu turno, cada uma a seu modo. Um balé torto, mas sincronizado. Uma casa para cá, duas celas para lá. Assim o farão continuamente, sabedoras de que suas luzes não pareceriam tão claras sem suas sombras, e suas sombras nunca teriam significado não fosse a chance de em um mau dia chegarem à luz, desprevenidas. Aqui, nestas masmorras, tenta-se guardá-las (ou recuperá-las) até o dia do xeque-mate final.
Sei que não é bem novo o conceito de criminalizar e penalizar o que se quer tentar reprimir, mas mesmo assim (ou talvez por isso) nossa atuação neste estabelecimento despertou, por anos, o interesse da comunidade, que pouco entendia dos critérios para nossas prisões e o bom funcionamento da casa. Então, nesta noite solene, gostaríamos de agradecer à gerência por tudo que este projeto de visitação proporcionou — ou, se quisermos usar da modéstia, tudo o que pode ter proporcionado — ao público que se dispôs a cada tour. Esta era uma tentativa grosseira e inicial de colaborar na mera classificação dos presos, e terminou por ser uma chance ímpar de elaborarmos um estudo, uma análise, um tratado (mezzo empírico, mezzo foucaultiano) do que importa para que o Caustelo permaneça de pé e operante; de tudo, tudo o que importa dos portões para dentro de quem tanto se vigia quanto se pune.
Nossos intentos de ressocialização falham muitas vezes — sabemos. As saídas de sete dias trazem-nos mais dores de cabeça do que proveitos. Alguns dos presos permanecerão neste subsolo perpetuamente, à espreita ou adormecidos, porque jamais ninguém estará preparado a pleno para lidar com eles. Outros se evadirão quando menos esperarmos. Uns poucos, refeitos de todo, irão embora em definitivo, o tapete vermelho estendido, porque já não oferecem perigo. Todos eles que daqui saírem, entretanto, darão meia volta, forçados a regressar pelo umbral da porta por onde entraram.
E é desta noção tão clara que emana a importância desta noite — na qual, em instantes, teremos a oportunidade de conhecer onde fica a última das celas, o pior preso deste vasto corredor, o fim da linha de nossas curiosas expedições.
Já lhes foi informado que diariamente chegam aqui novos Traumas, Ojerizas e Paranoias, e também novos Medos, alguns parentes dos antigos, outros de facção rival. E é verdade. Temos consciência, todavia, de que os novatos pouco ou nada interessam aos visitantes. Por mais que enfeitemos suas histórias para dar-lhes pompa e circunstância em contornos de ficção, sabemos que os recém-chegados pouco chamam às vossas atenções, porque há neles o frescor pueril de menores infratores. Quase uma graça se suporem malvados.
Foram sempre os presos das profundezas, de maior periculosidade, os que inspiraram maior atenção, respeito e parcimônia, os que exerceram maior fascínio aos estranhos e, por que não admitir, à Administração. Ganham cartas, documentários, séries, admiradores até. Seus crimes causam-nos maior comoção. E é assim também, ou principalmente, com aquele escondido por esta cortina que agora removeremos.
Rufem os tambores!
Ruja o leão alado entalhado em metal acima do portão principal do Caustelo!
Senhoras e senhores, eis aqui
o Não Vivido.
É só em tom circense que consigo anunciar este perigo gigante, delirante, sem rosto, incerto, assustador.
É isso mesmo que estão vendo: dele só se conhece o formato desta porta grossa, maciça, fechada, ao que se sabe sempre emperrada, pela qual ninguém deste corredor jamais conseguiu ver através nem conseguirá sair. É a ignorância completa sobre seu real conteúdo que o fabrica e consagra o maior Medo de todos. O medo imaginário, o medo imaginado.
Teme-se que algum dia alguma ventania de lá para cá possa abrir esta porta de golpe, sem ruído, sem aviso, dali saindo sorrateiras: qualquer sorte de lamentações; as piores cobras-lagartos, híbridos; ou um susto, um visgo, uma neve, uma febre, um abismo, a contaminação letal.
Mesmo assim, é tamanho o encanto que envelopa o tema que ninguém jamais ousou cadear esta entrada ou saída, o que implicaria algemar-lhe. Cultivamos neste preso todos nós, guias destas visitas, qualquer espécie de fé, uma esperança de salvação (sabe-se lá do quê), um deslumbramento. E, acima de tudo, um desejo de ver de perto o seu teor — desconhecido de horóscopos, do tarot, dos búzios e das bolas de cristal —, de modo que ninguém da segurança jamais teve a coragem e o desprendimento necessários para acrescer a esta porta tão grossa uma proteção adicional.
O Não Vivido é tão vasto que, diz-se, pode existir em forma de conjuntos (profissões, relações, conjunturas). Ele se acomoda na maior das celas atrás desta porta que podemos ver daqui. É um salão que, segundo a lenda, estende-se por milhas infinitas de comprimento e profundidade, avançando para baixo e para os lados, chegando a especular-se se ele quem forma a base de toda a construção (que poderia, assim, ser oca, não fosse as coisas dele se apinharem todas, compactadas, quase em vácuo, porque são tantas, tantas).
O Não Vivido é um acumulador. Guarda, por praxe, os formatos dos talheres de restaurantes chiques, que jamais se soube usar. Guarda uma foto adolescente abraçada no Mickey, o aparelho ortodôntico nos dentes, bem ao lado dos sonhos de ir pra Disney, que jamais se teve na infância. Guarda um piercing. Uma ou várias tatuagens. O Não Vivido contém até mesmo os rascunhos dos planos embrionários de um intercâmbio em outro idioma. Guarda pronúncias. A grinalda fincada num véu bem branquinho sob a abóbada ilustrada de uma Igreja Católica. Um jantar para pedir a mão à família. A justa causa de uma rescisão ao dizer umas verdades. Um pet com mais de dez anos de idade que deu pelos nas roupas, vida e doçura à casa e ensinou a não temer as mordidas. Um show lotado da Marília Mendonça no auge da carreira. O Não Vivido esconde os perdões tempranos que só vieram tarde ou ainda nem chegaram.
O Não Vivido é tão, mas tão poderoso que, segundo se sabe, pode inverter a lógica do tempo linear: nele estão retidas todas as ramificações, todas as possibilidades deixadas para trás em cada escolha, todos os sins de cada não, todas as imprudências e desvarios, todos os conselhos seguidos e não seguidos. O futuro inteiro mas, também, cada variação do passado.
O Não Vivido assusta mais do que qualquer fantasma, porque nega as verdades mais absolutas, como se nunca tivessem sido. Este preso é o mistério que há em cada possibilidade. E é só dispondo-se a olvidá-lo — soterrando sua existência junto com tudo que pode estar contido para além desta porta — que se pode encerrar esta grande noite, para seguirmos passeando leves pelo Caustelo.
Escauda acima, senhores.
Peço o favor de que desocupem estes assentos improvisados de expectativas onde se sentaram.
Esqueçamos, tanto quanto possível, as misérias e agruras deste Caulabouço.
É só à luz da superfície, neste baile promovido no dia de hoje para celebrar as conciliações e dinâmicas exigidas para o bom funcionamento da mansão da minha caubeça, que poderemos desfrutar felizes, em trajes de gala, enquanto a banda toca.
O último a sair, apague a luz.