segunda-feira, 30 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida urbana

As vagas de garagem de um prédio antigo são para sempre do tamanho dos carros que circulavam no ano e local em que foi construído. O porteiro pode virar perito em dar pitaco de manobra, vem de frente até aqui, agora distorce tudo e vai endireitando, mas as colunas largas da estrutura se pronunciam duríssimas sustentando sete, dez ou talvez doze andares inteiros ou mais, uns quatro apartamentos cada. Por isso não há meio de magicamente alargar os espaços. Sempre se sabe que é este o defeito, imutável, das moradas verticais dos grandes centros. E haja manobra com o assistente de estacionamento apitando muito nos sensores da frente e de trás até enfiar uma SUV “robusta” (como anunciaram de boca cheia na publicidade off-road, mas mal e mal ‘guenta a 470 esburacada no trecho sem duplicar) na vaga milimetricamente planejada — para um Celta, no máximo. Quando muito uma Brasília. 
Se bem que eu nunca vi um Celta com direção hidráulica ou câmera de ré.
Então talvez não me caiba (a mim, que entendo mal o tráfego de seis pistas que só vão pela Visconde de Guarapuava, por qualquer razão hoje divididas de três em três por canteiro) praguejar contra os avanços da engenharia automotiva. Ou os retrocessos da solidez da engenharia. Nem contra outras modernidades mui urbanas: tratar pet por descendente; viver de ser digital e influente; aleitamento materno de filho com muito dente. E eu assinto que, realmente, só vivendo pra saber, mas até que se prove o contrário eu tenho uma única vida e talvez nessa, nessa aqui, pra concordar, concordar mesmo, não vá dar tempo. Então só observo. E comento.
A cada ida eu me convenço mais que os jeitos de viver vêm das experiências. Do timing dessas experiências. Do que se pôde fazer com elas e quando. E eu até posso crer que as possibilidades asfálticas de uma metrópole são tantas mais mas a liberdade, a liberdade mesmo, a de ir e vir, não consegue ultrapassar um parque belíssimo ou outro, não consegue se sobrepor às agruras apertadas da mobilidade urbana que já foi referência e hoje sucumbiu ao Uber, nem ao drible dos mendigos aninhados vadiando nas marquises, ou dos pombos dando rasantes pela calçada dos camelôs. E, finalmente, não consegue se sobrepor às solidões submergidas pelo pesado da falta de conexões reais e mais histórias compartilhadas. Há uma falta de encontrar conhecido nos hiper mercados. Há uma mentalidade a que chamarei shopping center: tudo é prático de comprar, mas não se sabe mais se é dia.
Somos produto do nosso tempo. De cada arranjo de circunstâncias. A mudança de um fatorzinho que seja da equação muda, sim, os resultados. Que se dirá dos grandes fatores. Ter teatro, feira livre, Guairão, museu, Leminski, choro na praça. O advento das mini-saias. Mas é preciso aprender a fazer balizas. E não é porque podiam ir que foram. Menos ainda de mini-saias. Basta-nos ter sempre para nem querer, às vezes. E não é porque havia passe livre pra cultura que se tornaram cultos (alguns sim). Nem é porque descobriram antes o que era um Cosmopolitan que se tenham tornado (e entornado) cosmopolitas (alguns, sim).
Na vitrola deles tocava o que lançava de mais fresco na cena. A versão acústica daquele show internacional (que puderam ver ao vivo) na mídia física recém chegada, parecendo que revogava as anteriores. Sei que este multi-player de fita cassete e CD foi substituído antes por um DVD e agora está aí pra bonito. Antes, muito antes que o Pioneer pirata véio de guerra que só apareceu lá em casa depois das primeiras expedições profissionais do meu pai ao Paraguai mais pro fim dos anos 2000. Na cidade grande tudo chega antes — e tudo se move antes, ainda que pro fim da fila.
Estas paredes de prédios altos construídos há tanto tempo contam a quem está fora a história dos habitantes de dentro das casas. Dos donos das casas. E, sobretudo, das famílias dos moradores das casas. Os altos andares contam de onde se veio e o que se vê da janela é a densidade de uma legião de estranhos. E placas. Não as rachaduras, mas as cores e texturas. Arquiteturas. Cômodos labirintos. O nome da rua, decorado e tradicional, que já constava do mapa físico. Perto de que outro prédio. Bairro cercano de um estádio, e não do outro. O centro cívico. O clube de ir nadar e casar. As distâncias longínquas das sedes campestres. Os elevadores e escadas rolantes, que aprenderam a usar desde novos. Os móveis planejados. Tudo bem antigo. Tudo bem datado. Como se o direito ao acesso fosse um carbono de contar idades da cidade em ritmo diverso, sempre um novo número. Já está a contar um carbono trezentos mil.
Já que ter história é mais import, digo, imponente do que ter dinheiro, em molduras enormes devem estar e permanecer orgulhosas as fotos em preto e branco das construções que rendem, passivamente passadas de pai para filhos (que reivindicam, esbravejam e digladiam por seus quinhões e alugueres) desde o avô, o bisavô, tataravô. Eles sabem de cor a cor do concreto desde um tempo em que, que a gente saiba, era tudo mato. Eles quase não viram mato. Nem os pais. Nem os filhos. Não são herdeiros de quem viu. O que eles foram é funcionários da Caixa Econômica. Professores de idiomas. Sucessores de Gutenberg. Por isso aposentaram cedo. Tudo isso se vê no pé direito alto. Os cinco ou seis pregos finos e tortos que costumam segurar corajosamente os quadros que escolhi a dedo na promoção para a sala lá de casa que o digam: as paredes dizem mesmo, e dizem muito, sobre quem mora.
Se eu fosse uma traça, a minha mega-sena seria encontrar um prédio com nome e sobrenome quatrocentão num bairro nobre de um lugar bem úmido e frio e viver para sempre roendo até o caroço das páginas amarelas de clássicos em inglês ou português do império. Começaria de trás pra frente. As capas duras de couro enfileiradas com títulos dourados? Seriam por mim roídas com determinação. Só pra ver se o devorar das letras de decoração sem pausa, há tantas gerações na família, dá barato ou só cansaço.
As vagas de garagem são moldadas para sempre do tamanho da época e lugar em que foram construídas. Talvez as cabeças também.