Fantasiei muito com o dia em que eu bateria o carro. Essas coisas acontecem, o trânsito é implacável, meu pai é motorista, fui criada pra morrer de medo. Há na rua loucos de todos os tipos, aqueles que saem do Mosquito bêbados domingo à noite pela BR em vez de irem embora por dentro, os que fazem jornadas de mil e uma horas na boleia de um caminhão ou de um ônibus de linha e sentem sono, daqueles que acabaram de fazer a carteira e ainda não praticaram que chega, dos que andam a duzentos por hora achando que são por isso mais ou muito machos. E os piores de todos: ciclistas em cima da pista.
Esta racionalidade sobre quem posso encontrar na estrada, que sempre me pôs muito atenta, nunca impediu de enfurecer. Eu tenho ímpetos de buzinância. Algum chapeleiro entra sem dar seta, para no meio da pista ou resolve ultrapassar em faixa dupla e eu xingo alto, altíssimo, até a décima terceira geração. Xingo de CORNO (o meu preferido), de BARBEIRO (ué?), pergunto até POR QUE NÃO FICOU EM CASA EM VEZ DE SAIR COM ESTA MERDA DE UNO MILLE BOLA DE MASSA COM O FAROL QUEIMADO POR AÍ (a consciência de classe presa no porta-malas), ou apelo ao clássico: só podia mesmo ser um filho DA PUTA de um ALEMÃO BURRO desses (a misoginia de sempre, mas com aquela pitada de xenofobia do bem). Falo sempre com os vidros fechados. Batendo as mãos vigorosamente no volante ou balançando no ar. Só não buzino como eu quero de medo de levar tiro, que ultimamente nunca se sabe. Mas brava, na versão motorizada, eu fico muito. Transformada.
Em minha defesa, é quase tudo medo. O medo velho, enraizado e alastrado, de não ser sempre a motorista do ano. O medo de ser lenta (ou não ser safa?). O medo de bater e manchar minha CNH com um incidente grave, quem sabe até, deusmelivre, uma indenizatória que custe dez anos e dure meio milhão além da apólice.
Por essas e outras sinto que era mesmo preciso que eu tivesse alguma estrutura emocional para o dia em que acontecesse. Então eu fui me preparando pouco em pouco. Fantasiei muito, de pouco em pouco. Às vezes, desviando de colisões por um fio, depois de muito ralhar, eu pensava: não foi hoje, vai ser na próxima. A ideia continuava ali, com seu poder da (dis)(a)tração. Talvez, de tanto pensar em como me comportar no momento, eu pudesse repelir a possibilidade — ou pelo menos me comportar bem, sem dizer tudo que eu digo de vidros fechados seguindo viagem.
No meu delírio imaginativo de antecipação e controle, seria assim: eu respiraria fundo e desceria do carro paciente, para não arrumar encrenca. Acalmaria o cara, que estaria mais nervoso que eu, porque é sempre um cara, é sempre bronco, os caras nunca costumam saber lidar direito com nada, quem dirá com as emoções imprevistas — menos ainda as que envolvam carros, esta extensão com rodas e lataria de seus paus e bolas. Finíssima e equilibrada, de scarpin e bem vestida, com a voz baixa, eu diria: não tem problema. O senhor só foi um pouquinho desatento. Esse cruzamento é mesmo mal sinalizado. Meu carro é preto, talvez o senhor não tenha visto. Teve que parar para não atropelar o menino? Acontece. Não tem seguro? Não tem problema, posso acionar o meu. Vamos fazer assim, vou anotar o seu número e voltamos a conversar quando meu corretor responder. Quer que eu faça o b.o.?
Nem nas fantasias mais aleatórias que sou capaz de engendrar imaginei que estaria no trevo da minha cidade natal, justo o mais perigoso de todos, sobre o qual fui repetidamente alertada por mais vezes na vida para ter sempre a atenção redobrada. O meu perigoso portal para o mundo além da BR. Também não alcancei, em imaginação, o fato de que estaria na carona do meu próprio carro. Tampouco que instantes antes Rodrigo e eu nos digladiaríamos tão feiamente com uma pequena aranha descida por uma teia, um pulo mortal ou um voo (essa certamente sabia voar) desde o vão do teto solar fechado. A aranha pulou nele, depois pulou em mim, ficou pairando um pouco no ar, agitei os braços gritando como para espantar urso, aí pulou de novo nele, agora nas costas. Fica parado. De repente eu mato com esta pasta cheia de documentos do inventário da vó Cecília, que tal.
Tamanha a imprevisão das rápidas circunstâncias do destino, as fantasias que eu sempre alimentei não me precaveram sobre ele distraidamente soltar o pé do freio do Cruze no instante em que lhes agredi com a pasta, e então colidir de leve na traseira de uma EcoSport branca que puxava a fila em que éramos os segundos, esperando para cruzar a BR. Como não tenho tesão em me sentir culpada e gosto de me ver — mesmo nas ideias mais longínquas e hipóteses remotas — tendo sempre a razão, nisso, nisso mesmo que aconteceu, eu sinto que mesmo fantasiando muito eu jamais pensaria.
Também não fui capaz de prever dona Rosa. Descendo da EcoSport com suas panturrilhas grossas, envoltas em seu vestido florido de liganete. As sobrancelhas tatuadas, muito pretas e retas, como num desenho animado. A irmã, mais idosa ainda que ela, descendo demorada da carona de bengala, bem devagar, para nos avisar que se ela estava fotografando todos os (poucos) danos e a minha placa tantas vezes, certificando-se de que o celular captou tudo na tela contra o sol, mas sem me responder uma só palavra, não é que ela seja mal educada ou esteja furiosa, como estaria qualquer cara. É que ela é meio surda. Tem que falar bem alto com ela.
A senhora ME DESCULPE, dona Rosa. FOI UMA ARANHA. EU SEI, dona Rosa, SE CONTAR NINGUÉM ACREDITA. Não, carros como os nossos não morrem. Foi batida. Culpa nossa. Ah, já bateu várias vezes nos últimos tempos, dona Rosa? DESSA VEZ A SENHORA NÃO TEVE CULPA. Da última vez lhe deram o cano? FIQUE TRANQUILA, dona Rosa. Mas será que não foi por causa dessas suas mensagens temporárias do WhatsApp, que fizeram sumir a que o cidadão lhe enviou, assim como sumirão completamente todas as minhas amanhã de manhã? O quê!? Perdeu o marido essa semana, dona Rosa? NÃO ACREDITO! Era ele que dirigia e resolvia as coisas pra senhora? Tá sem cabeça, dona Rosa? Eu imagino. Eu SINTO MUITO, viu? QUE BOM QUE NÃO FOI NADA GRAVE. Tá aqui o meu telefone, sim, sim, deixa que eu salvo no seu, e esse é o endereço DO ESCRITÓRIO ONDE EU TRABALHO. Sim, eu trabalho lá, na mesma cidade que a senhora. Qualquer coisa pode me PROCURAR PESSOALMENTE, viu? TERÇA EU TE CHAMO DE NOVO pra garantir.
"Eu falo sempre por áudio mas você tem que escrever, minha filha. Senão, eu não escuto".
Acredita, dona Rosa, que eu sempre digo que escrevo melhor do que falo? Até prefiro. Não vai compensar acionar o seguro. Contra terceiro não tem franquia, mas aí vai demorar. Tem muita burocracia. Pode escolher a chapeação que a gente paga. Sim, pode esperar seu filho chegar pra ir orçar. Depois me avisa. Sinto muito pela sua perda. Sim, o meu carro também vai precisar de conserto. Não se preocupa, também foi pouquinho. Não vou precisar trocar o farol. Obrigada pela paciência. Não, a senhora não teve culpa. De verdade. Não precisa se desculpar nem dizer que velho é assim mesmo. Eu também faço muito isso de antecipar as coisas, dona Rosa, mas não deixo de me surpreender quando acontecem. A senhora também? Seus métodos preocupativos também não lhe garantem nada? Sua diarista também nunca entende o seu esquema tático da organização das roupas nas prateleiras do armário quando vai guardar passadas? A senhora também já se cansou de fazer coisas grandiosas, com um padrão de exigência altíssimo, e agora quer fazer as coisas pequenosas com atenção nas pessoas e mais gentileza? Dona Rosa, eu sou tão adulta, mas tão adulta já, que ao meio-dia eu vou correr em casa lavar uma maquinada de roupa. Tenho usado camiseta de malha embaixo de blazer. Talvez seja de tênis que eu vou descer na próxima. Mas vou ser mansa como a senhora foi. A vida é cheia de mistérios assim.