A vida real é o melhor feitiço pra desconhecer. O tempo, sabedor de todos os caminhos depois do fim, o tempo, sabedor de caminhos quaisquer do durante. É o cotidiano quem gasta e pui a tessitura do inventado. Digo mais: o amarelo daquele semáforo tem cores de "Fulva" e o dúbio do sinal me faz recair em "Grafomania". Sim, Laura, um narrador pedante bem dentro da minha cabeça ainda faz isso o tempo inteiro. E com as maiúsculas estilizadas na cursiva, ainda por cima. Pior: pratico o vocabulário arcaico só pra reter a acepção de palavras novas.
Não te endereço mais, porém, a maioria das minhas divagações. Estas frases toscas que acabei de escrever, como as das aulas de novo idioma pra impressionar professor, são especiais só porque gastam de um jeito rústico e de propósito as duas primeiras palavras que, quando aprendi o que queriam dizer, guardei anotadas num bloco, por hábito e pretensão, para um dia escrevê-las pra ti, sem as aspas, mostrando que as sabia bem.
Mas já não podia.
Retive-as até hoje mais cedo, no íntimo, como se guarda a um segredo, junto com a imagem mental e iluminada que seus significados me acendem, com o barulho das buzinas do trânsito escoando lento aqui na minha frente e tudo.
Eu fiz sem fim de vezes este mesmo trajeto, às vezes mais longo que o necessário, muito atento, só pra ter chance de assisti-la à distância, agitando bagulhos dentro da bolsa imensa até encontrar o molho de chaves pra entrar em casa, toda a vida apressada. Eu percorri sem fim de vezes, com a imaginação e com a esperança, esta mesma cena — na qual eu sempre a revia magicamente naquele lugar mais provável.
Mesmo depois de saber que já tinha até mudado de endereço. E de estado civil. Mesmo depois de saber que ao se afastar de alguém, desconhece-se esse alguém e seus percursos, porque não se acompanha mais de perto as mudanças de endereço, de estado ou de ideia. Mesmo depois de saber que às vezes se desconhece alguém mesmo estando bem perto. Mesmo depois de saber que, se for parar pra filosofar, a gente nunca pode confiar que sabe verdadeiramente alguém.
Parei sem fim de vezes nesse semáforo com o amarelo fulva. Poderia ter seguido — mas era como se, mesmo bem viva e caminhando por outra freguesia, a Laura ainda pudesse vagar, com todas as penas de sua alma atormentada, ainda o mesmo e velho e conhecido fantasma, na versão que construí e pela qual me apaixonei, só pra que eu pudesse revê-la. Repetindo-se, idêntica, imaginada, onipresente, ou pelo menos em todos os lugares em que eu sei/imagino que ela já esteve. Como um eco. Um eco alimentado. Fabricado. Invocado, com afinco (três descargas e um espelho, como a Maria Sangrenta dos banheiros de colégio). Um eco — por isso mesmo, unilateral. Amiúde. Um eco zunido. Ensurdecedor de outras vozes, mais reais e melodiosas.
Ressoam em mim as memórias das todas ocasiões em que, vendo um carro minimamente parecido com o dela, com o coração ainda disparado, eu esticava o pescoço para conferir a placa. E nunca eram os mesmos sete dígitos de que só lembrávamos no estacionamento depois de fazer piada sobre o que significavam as letras, em livres associações, na forma de micro poemas bem humorados. Nunca saía pelo visor da calculadora do meu para-brisa o resultado certo na prova real da matemática nova que um dia inventamos para tentar decorar algarismos numéricos. Muito provavelmente, em alguma altura de todos aqueles anos, ela também já houvesse trocado de carro, inclusive, e o que eu perseguia era apenas a propagação do ruído que eu mesmo emitia no universo. Já disse e vou dizer de novo: um eco.
Porque nunca era ela saindo do banco ao lado da farmácia. Mexendo no cabelo, de costas. Ou cruzando a faixa de pedestre carregando sacolas enquanto ajeitava os óculos. Nunca era ela de xadrez. Nem de vestido. Nem mesmo de azul. Nunca era ela de mãos dadas com outro cara de estatura semelhante à minha passeando pelo shopping. Ponto turístico qualquer. Nunca, nunca mesmo, era ela. Era sempre uma sósia. Uma dublê de sobrancelhas. Um arquétipo. Uma minha projeção no horizonte inalcançável, etereamente intocado, mesmo a passo corrido.
Por tanto tempo qualquer símbolo que remetesse à Laura, quero dizer, que remetesse à ideia que conservei da Laura, foi pra mim como um ídolo!
Por tanto tempo qualquer mínimo sinal que me lembrasse dela e do que senti com ela foi arte sacra da minha devoção por suas heresias e por seus milagres até então insuspeitados!
Agora eu custo a acreditar que toda a fé já se esvaiu. Que demorei tanto pra aprender a lição que a Laura deixou ensinada quando seguiu a própria vida. Ignorei a lição, tangenciei a lição, escamoteei a lição, mesmo tão vívida e clara, o quanto pude.
E agora a tenho bem sabida.
Parado aqui, escrevendo, deste lado de cá dos sinais fulvos que se acendem e se apagam pela cidade, alternando-se, eu consigo perceber que namorei por mais tempo àquela vontade de reaparecer de surpresa, certo de que provocaria nela um abalo sísmico e sísifo capaz de nos reunir, ou quem sabe todos os Ford Fiestas do trânsito, do que a ela mesma, em pessoa, carne osso defeito e dilemas, para além das letras que se articulam sem parar em construções bonitas do meu vocabulário.
Hoje me dei conta, parado aqui, neste mesmo local em que conjurei os desejos mais infames de, pelo menos, revê-la, ter finalmente dessensibilizado para tudo — até para o uso sem pudor nem jeito das palavras bem novas que eu tinha guardadas na gaveta, como presentes, com bilhetes. Fulva. Grafomania.
Agora sou a pantomima de uma cobra que nada precisa dizer para que a gente se dê conta, assistindo, de que ela mesma percebeu que abocanhou é o próprio rabo, que doeu, puta que pariu como doeu, e basta que tenha doído tanto para que, num gesto de iluminação divina, tremenda, num belo instante, recobre o tino e se cuspa. Depois me estico em outra direção. Para ainda mais longe do fim, ou do dano de mim.
O tempo, sabedor de todos os caminhos, banalizou os nossos absurdos. Ensinou-me que ao Santo Deus de Coincidências não se faz promessas, porque não aceita chantagens nem precauções. A vida nunca se cozinha em slow burn: a vida às vezes passa do ponto, noutras se come crua. Já passou muito da hora de eu tirar a Laura da geladeira (e descartá-la, mesmo sem tê-la preparado), mofada como ingrediente velho, para dar aos porcos, que tudo devoram e reciclam, para depois fazer virar torresmos novos. Ela não merece mais nem metáforas melhores.
Hoje constatei ter removido o último obstáculo — distante — no qual a reflexão das ondas de som batia e me voltava. Hoje parei naquele mesmo semáforo e esqueci um pouco o que queria dizer Fulva, embora bem me lembre o que sempre quis dizer Grafomania.
Excomunguei um beijo de adeus e misericórdia na testa do busto de marfim que um dia esculpi em tributo para Santa Laura na praça de armas do meu imaginário antes de destroçá-lo inteiro, com violência, às tacadas, transformando-a em poeira fina, diminuta. Que bem no fim eu sempre soube que precisaria varrer de mim se me quisesse curar dos acufenos. E ainda que, em agonia, eu tantas vezes não pude suportar a constatação de que devo amar pelo que tenho e não porque imagino, com esse moai de Laura já desfeito, o que sobra pra adorar é o que existe ao redor, empoeirado. O que sobra pra adorar é o que existe ao redor. O que sobra pra adorar é o que existe.