sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tratar aqui

Entro pela porta. A sala é pequena, deve medir 3x3. Tem nela um cabideiro, uma maca, uma pia, um lixeiro e uma parafernalha tecnológica que ocupa um terço do espaço livre no chão. Entrando sinto o cheiro. Sou capaz de apostar que seja o mesmo cheiro que teria eletrocutar em alta potência uma granja inteira de galinhas. Não lembrava que era tanto. Minha memória olfativa dura mais do que as outras. Me traiu dessa vez. Mas não vou fazer piada com isso em voz alta. E agora não adianta torcer o nariz. Estou aqui, de pé, já chamaram o meu nome no horário correto, cheguei aqui voluntariamente, para a minha segunda sessão. Pelo protocolo que me recordo, agora devo tirar as calças. Tiro as calças. É sempre um pouco embaraçosa essa parte de tirar as calças sem nenhuma dose de romance ou putaria envolvidos. Depois que eu tirar as calças vai começar. A máquina já ligada. E essa mulher com arcada dentária de criança travessa com a máscara abaixada entre o queixo e o pescoço rindo um riso forçado. Será que eu confio nela? Me manda deitar. Primeiro de barriga pra cima. Vai me encaixando na cabeça uns óculos de nadador com um guardanapo enjambrado dentro, um tom meio é-para-preservar-a-sua-segurança-senhora. Fala uma amenidade sobre o clima enquanto eu, já cegada, agora tenho a audição mais aguçada que o olfato. Ouço o esticar do elástico dela botando as luvas. Sou capaz de pressentir que depois tenha estendido e contraído os dedos para assentar o látex e otimizar a sensibilidade dos quirodáctilos. Ouço três disparos ritmados: pi, pi, tuff... pi, pi, tuff... pi, pi, tuff. Lembro que sou péssima em onomatopeias. Pi, pi, tuff... Não consigo entender para onde estão sendo direcionados, já que não estou vendo nada e a poderosa chefona da cena é essa ruiva tingida e estranha que divide a sala comigo. Deve ser um teste. Me pergunta se senti dor da última vez. A dicção meio embaçada. Intuo que agora já esteja com a máscara tapando a boca. Digo que não, que praticamente não. Me lembro, em silêncio, que era outra moça da última vez. Um semblante mais terno e capacitado. Onde foi aquela? Eu preferia aquela. Vou marcar no horário daquela daqui a quarenta e cinco dias - penso, torcendo para que esse meu desdém lombrosiano e antecipado não esteja passando num outdoor pra fora da testa, em cima dos óculos, e com isso eu ative o sadismo dela. Pi, pi, tuff... Sinto o primeiro tuff bem no começo da perna direita, a parte alta da coxa nua, quase na emenda com as ancas. Um calor extremo (isso é nervoso ou tá calor aqui?) e um frio concomitante. Como se fossem microagulhadas superficiais. Estranho a impressão como se fosse a primeira vez. Ouch. Acho que doeu. Fiquei arrepiada junto com a dor. Ela começa a repetir a operação. O pi, pi, tuff... é o mesmo de antes, mas os disparos parecem mais acelerados. Ela percorre a parte alta da coxa, cada movimento centimétrico para os lados um novo pi, pi, tuff... E faz na vertical, o que me parece anti-intuitivo. Depois prossegue, uma segunda camada vertical mais ou menos paralela, depois mais outra, todas até chegar ao joelho. Quanto mais perto do joelho, mais parece que a dor vem de dentro do osso. Onde há pouca carne e mais pele = mais dor, acabo de me lembrar. Contorço um pouco na maca. Ela diz que tudo bem, os marmanjos fazem pior. Imagino um marmanjo inserido na cena dolorosa e isso não melhora as coisas. Quando penso que não vou mais suportar, lembro que estou ridícula. Exposta. E que ela está com os olhos abertos. Me vendo aqui, contorcida, a versão feminina de um ciclope de baixo orçamento, as pernas entreabertas, torcidas um pouco mais a cada disparo. A blusa de lã um pouco amassada de estar por dentro das calças, que agora estão no cabideiro, a manhã inteira. Quando ela avança para a canela, penso já pela décima vez que não vou suportar. Esta é a primeira perna. Depois tem a outra. Uma dor nova a cada duplo pi, uma dor pior com o que deveria ser o alívio a cada tuff. Ela segura a minha pele para acalmar o efeito. Não adianta quase nada. Aí me manda virar de lado, virada para a parede. Estou desorientada. Não enxergo nada. Não lembro mais onde está a parede - que eu me lembre, eram quatro. E se eu estiver virando errado, de frente pra ela? Que vergonha. Estender a mão é pior, vai que eu toco na barriga dela, ou no peito, ou no equipamento, e a coisa toda fica ainda mais estranha. Afinal estou sem calças. Atrás da coxa a dor é ruim, mas suportável. Agora ela começa na horizontal. O que me parece mais correto, tendo em conta a anatomia do aparelho, mas agora também parece falta de método. Atrás do joelho, a dor é o capeta encarnado. Achava que ali o osso era mais longe do que na frente. Não é. Ela desce. Sinto a pele ficando meio áspera, repuxada, mas deve ser só impressão. Da outra vez não deu nada. Ela desce mais. Volta a trabalhar em tiras verticais. Perto do ossinho do tornozelo, ainda pior. Sinto as minhas mãos suadas. O buço também deve estar. Ensaio botar as mãos na cabeça como quem vacilou e acabou de descobrir - mas estou ocupada demais pensando se essa era a calcinha preta boa ou peguei a parecida que é meio desbotada na gaveta hoje de manhã. Que se dane. Ela já deve ter visto coisa pior. Não é hora para impressionar. Só preciso sobreviver e fingir plenitude. Enquanto ela me inflige uma dor nova e lancinante a cada espasmo que eu dou. Penso em chutá-la, esquecendo subitamente aquela minha forte convicção de nunca maltratar um trabalhador enquanto trabalha. Me detenho. Mais um disparo perto do osso da canela. Solto um gritinho. Ai. Depois peço desculpas. Tento me distrair. Penso no Caribe. O biquíni cavado, a água morna. A motivação original. Mas não dou conta de esquecer as dores ritmadas no compasso dessa pistola maluca a que me submeti espontaneamente. E ainda paguei por isso. Fico com medo de conspurcar a viagem inteira com esse stress pós-traumático se formando em conjunto das imagens passando na tela da minha mente de olhos fechados. Tiro o mar da cabeça. Uma perna já foi, agora falta a outra. Estamos mal e mal na metade. Estica essa, ela me diz. Isso. Agora dobra a outra. Que intimidade é essa, penso comigo. Mas cinismo, daquela porta pra dentro, não adianta. Acho que até piora. A tortura dura mais ou menos uns oito minutos, mas parece que durou uma vida. Agradeço e aceno com a cabeça, depois de arrancar os óculos malucos. Vou voltar, mas quando voltar espero já ter esquecido. Saio pensando que vou contar como se fosse piada e encerrar com: (re)vendo oito sessões de depilação a laser. Tratar aqui.