quinta-feira, 27 de junho de 2024

Não sou eu, é meu eu-lírico

Ontem fui dormir assombrada. Terei vocabulário, ainda que prosaico, para fazer frente a esta dubiedade estrangeira que eu não apreendo por completo a menos que banque a açougueira? Dissecando as vísceras dos versos, como se dali pudessem ser extraídas certezas, e examinando com lupa, repetidamente, cada escolha e cada pausa, a fim de garantir que nada me escape. Lançando mão do tempo, este bisturi cirúrgico com o qual posso acessar repetidamente: a pele, a carne e os tecidos das rimas. A pele, a carne, o sangue, para deste beber as referências escorrendo pelo queixo, feito bárbara. Quase satisfeita. Teu idioma finalmente atravessando a minha fronteira. Devoro tudo de novo, quase um urso - que se alimenta, sôfrego, para depois hibernar. Contemplar. Retomar a digestão, se necessário. Poupar energia. Cocriá-la. Dou outra risada nervosa escrevendo esta palavra imbecil: cocriá-la. Depois me estiro pra trás, dou duas batidas na boca do meu estômago intelectual e palito os dentes com os ossinhos feitos das vírgulas, dois pontos e travessões cuidadosamente distribuídos no esqueleto que sustenta those corpos poéticos.

Em resposta, conjuro o meu arsenal. 

Reúno todas as palavras do meu léxico num saquinho de tecido acetinado que é amarrado por uma pequena corda com dois nós nas pontas. Muito chique, inspirado nos vestidos das musas gregas. Também muito sujo e puído. No qual palavras de toda ordem e calão podem ser pescadas. Investigo, enfiando a mão e tateando as possibilidades do meu fluxo de consciência, para deixar um pouco pela conta da sorte, como se não tivesse escolha. A velha mania de fingir que eu não tenho escolha. Que sou capturada ou arrebatada - estes sim, predicados cuidadosamente escolhidos, por minha conta - e a partir de então elas simplesmente precisam sair, ainda que aleatórias.

Que explicações imprecisas e prolixas sairão dali, deste saco, quando eu for confrontada por essa dispersão ou para essa inspiração de agora? Eu, que ainda não sei explicar o que vem do ego, e boto tudo na conta deste saco (mesmo que eu muito procure, não há sinônimo mais erudito para esta e algumas outras palavras, porque algumas coisas simplesmente são o que são, então é isso mesmo: este s-a-c-o). Cheio de palavras. Pesadas, inúmeras, carregadas como o fardo do meu elitismo linguístico, um pouco torpe, que sempre que fica fascinado quer cooptar e arrebanhar as novidades de qualquer língua, para sempre saber dar nome às coisas em qualquer canto. Que às vezes finge que (se) conhece muito bem e depois percebe que não e aí se contém, fechado, acumulador, até ter outra chance ou a missão de gastá-las. Palavras para serem lidas. Investigadas com minúcia. Bebidas, como é o sangue nos pactos, até a última gota.