Para quem não sabe, as obsessões funcionam assim: tomam de assalto, atropelam, velam de incendiar até que o conteúdo todo da matéria, combusta, termine de evaporar pelos poros e a calmaria reine soberana novamente. Mas pode demorar muito. Até porque o tempo de uma obsessão dura o equivalente ao quanto se alimenta, e eu sou perito em alimentar as minhas. Então pode durar muito. E, sobretudo, demora para acontecer. Quando acontece, tenho essa energia toda acumulada. De séculos em séculos me aparece uma Laura (ou um hobby, ou uma comida, ou uma música) e aí entro em looping. Urge por dentro uma necessidade de agarrar com unhas e dentes, fascinado, para que não me escape, usando tanta pressão e produzindo tanto calor, também para tentar conter, até que exploda - ou escorra - ou me lambuze - ou suma.
Geralmente é o Verbo. Porque no princípio era o Verbo. Acho que o problema todo da (minha) humanidade é este. O Verbo, que veio e vem antes de tudo. Se eu tiver que definir o Verbo, complica. Reconheço-o nítido, entretanto, nas coisas simples como passar protetor solar de manhã na frente do espelho. Uma coisa à toa que, com o Verbo, vira poesia. A distribuição do produto em cruz no rosto, antes de espalhar, me impelindo a dizer amém. Como era no princípio, agora e sempre. O Verbo. Um sorriso. Babel. Amém. Nenhum inferno é suficiente para a heresia de usar referências bíblicas ao descrever tais sacrilégios.
Imbuído de intuitos motivados por esta espécie de possessão de todos os pequenos gestos, nos dias seguintes, procurei Laura nas gavetas abertas, no banho (pois é), nas prateleiras do supermercado e nas ligações de trabalho. Não estava. E, ao mesmo tempo, estava. Tive aquele sentimento de estar esquecendo algo, e suspeito que este algo fosse o funcionamento consciencioso das minhas engrenagens. Do que me adiantava saber que a distância romantiza o idealizado se esta mesma distância agora me consumia porque fazia idealizar mais e romantizar mais e querer ainda mais?
Para me autoexorcizar, peguei um livro aleatório da estante, como se pedisse um conselho a um velho amigo. Abri em página aleatória. Me disse qualquer coisa que não retive. Aí fui para a academia. Agachar com uns 50kg - fora o peso de ser doido - podia ter algum efeito positivo. Não teve. Quando terminei o treino, suado e exausto, pensei que Laura devia ficar ainda melhor humorada se temperada desse suor e dessa exaustão e voltei à estaca zero. Chegando em casa, ataquei a geladeira. Na porta, um vinho cínico: Siempre Tengo Un Plan B. Eu não, Laura. Eu sempre tive só o plano A, vez ou outra o realizei, e me agarro a ele sempre que posso - e às vezes, como agora, também quando não posso. Essa coisa (que vou chamar de devoção ao Verbo) nunca brotou em mim como um verde tímido do musguinho na pedra de Sosa. Nasceu comigo. E, quando me acomete, sempre é uma coisa assim mezzo episódio de mania, mezzo incapacitante. Talvez eu devesse agradecer pelo fato de que aconteça só de quando em quando, porque assim ao menos eu tenho um respiro de realidade mais longo - são anos - entre um salto no abismo e outro.
De modo que não preciso que mais um francês me diga por qual caminho seguir ou que a ausência é a mais fiel das presenças. Isso eu já sei. Eu só queria aprender a gastar a Laura em mim logo. E para isso sei que preciso mergulhar nesta presença constante da falta dela, até que se consuma ou evapore. Para que as minhas engrenagens voltem a ser letárgicas e funcionais, como antes. Para que Duncan Wedderburn deixe de se sentir ultrajado pela valentia com que Baxter passa a encarar os... saltos. Lá vêm eles de novo.
Estes pensamentos se alternam com outros, mais tontos e inconsequentes, que sugerem medidas mais extremas. Como por exemplo um desejo de descobrir o endereço da Laura, adaptar no meu carro um dispositivo de telemensagem e ir recitar com a caixa de som no talo, na frente da casa dela - para garantir que seja obrigada a absorver sem torcer o nariz - todo aquele conto das Anotações do Caio, que eu amo. Com ênfase dramática em Olho no poço do teu olho escuro, meia-noite em ponto. E uma pausa com um suspiro antes da frase De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria. E encerrar em seco, derradeiro, sem ler o final, naquela passagem que suplica: Não me empurre de volta ao sem volta de mim.
Dizendo isso tudo fico prestes a erradicar do meu dicionário as palavras metafísica, feitiço, enfeitiçado e derivados. Quero fincar os pés no chão só para não dar à Laura o gostinho de saber o tamanho do poder que exerce nessa minha obsessão. Preciso ser justo: talvez ela não tenha culpa. De repente eu virei um marionete da Laura, em particular? Ou sou apenas (e é engraçado dizer “apenas”) escravo das minhas obsessões, quaisquer que sejam elas? Sou eu fazendo essa pergunta ou é a minha vaidade em ser visto e contemplado que assumiu o painel de comando agora? De onde veio esse desejo - realizado, Laura, enfim realizado - de uma plateia tão qualificada para os meus devaneios?
Anotei todas essas perguntas num caderno, que apelidei de Caderno do Ego e do Verbo. Me comprometi a pensar sobre elas com calma, quando essa minha burrice passar. Até lá, não me empurre de volta, Laura.