sexta-feira, 21 de junho de 2024

Eco [24]

No dia em que conheci Laura, deixei que ela me mentisse o meu nome. Éramos ambos bons samaritanos reduzidos a sermos os anexos e a retaguarda de amigos de um e de outro, que agiram como se ainda precisassem de pretexto ou uma certa casualidade informal para se encontrar. Meu amigo me fingiu que era uma das nossas saídas de brothers, e que não tinha marcado nada com a garota dele. E ela, com Laura, fez o mesmo. Patético demais para que não notássemos já na chegada, no primeiro instante em que, num teatro canhestro do olhar dele procurando o destino certo entre as mesas do bar até encontrá-las ocupando a mesa que certamente também ocuparíamos, fingiu que sentarmos todos juntos era uma pequena conveniência arquitetada pelo destino, e não construída sobre os fundamentos de um plano, apesar do salão ter meia dúzia de outras mesas vazias. Deu-se aí um double date. Dois farsantes ridículos e nós, espelhados, dois coitados desprevenidos, nitidamente enganados, cada um dos quatro fabricando para si um pouco de uma espécie de fantasia com que todos nós precisamos conduzir a vida às vezes sob pena de morrermos sem viver a plenos pulmões e artérias pequenas loucuras impensadas como aquela.
Nossa conversa começou com um jogo de adivinhação. O que foi, para mim, a primeira prova (pequena mas irrefutável) de que Laura era uma pessoa daquelas que sabem que é da curiosidade mútua que nascem os maiores interesses e afinidades. Estar disposto a conhecer alguém é, sobretudo, estar curioso pelas camadas que se revelam na medida em que as anteriores esmaecem para os lados dando lugar às seguintes, como aquela transição ruim do finado PowerPointNossa conversa começou com um jogo de adivinhação porque a primeira coisa que Laura me disse, um pouco aristocrática, quando me aproximei da mesa, foi: “Olá, estranho. Prazer,…” - mas aí titubeou, imprevisível como costumam ficar as mulheres entediadas, talvez um pouco arrependida de ter saído de casa ou, pelo menos, de dar início à conversa com esse formalismo, e naquele milissegundo em que deveria emendar o clássico do "Prazer,..." com o próprio nome, emendou com uma pergunta: “...tenho cara de quê?” - e o imprevisto da primeira interação já me fez sorrir com os olhos.
Não tive tempo de pensar se aquilo era uma pegadinha ou referência, porque como por instinto, tive certeza para que rumo a pergunta me levava, e o rumo era um nome: “De Débora!” respondi, pensando e dizendo o nome da primeira mulher que homenageei, ainda no ensino fundamental. Ela sorriu sem julgamento, mesmo parecendo ter entendido ou adivinhado, por técnicas de bruxaria, que todas as Déboras que conheci na vida eram gatas, inteligentes e um pouco sacanas e por isso carregavam na bolsa o alvará para virar minha vida do avesso, cedendo a todos os impulsos do meu tesão lírico, se eu não me recompusesse com uma dose extra de juízo.
Respondeu, então, que eu tinha errado por pouco. Mas propositalmente não completou a lacuna que fez pairar no ar, o que também não fiz questão de saber. Pelo menos não naquele momento em que, se eu soubesse que ela se chamava Laura, e não Débora, fulminaríamos com um nome próprio o delicioso espaço das entrelinhas que se estabeleceu como um campo aberto de possibilidades imaginativas. Ela apenas me devolveu a bola, no seu turno, chutando que eu me chamasse Santiago. Para ampliar a graça e o absurdo, dando a ela a certeza de que eu estava disposto para jogos de palavras e adivinhações como aquele por quantas horas ela também estivesse, principalmente porque então já tacitamente firmado o pacto de que não nos entediaríamos, estendi a mão e sentenciei: “Acertou, quase-Débora. Muito prazer, Santiago”.
Sempre achei estranho que tenhamos nós, lusófonos, contraído toda a expressão "Muito prazer em conhecer, meu nome é Fulano", que já é ruim porque nunca se sabe se será mesmo um prazer conhecer antes de conhecer, na utilização pontual e constrita da expressão "Prazer, vírgula, Fulano". É uma abreviatura que escancara a ausência de prazer antecipado. Este prazer só vai se confirmar, ou não, nos momentos seguintes. No caso de Laura ele foi confirmado, reconfirmado por prova real e autenticado em três vias no cartório, na medida em que nos brindamos mutuamente com a ansiedade pelo desconhecido da companhia um do outro nas horas seguintes, renovando perguntas sem transparecer a pressa com que inegavelmente ansiávamos e desejávamos por mais daquele contato, sabendo que ele se desfaria em fumaça no momento em que a realidade (com seus ônus e bônus) voltasse a pesar sobre os nossos ombros. Mas não é disso que se trata.
Sempre me detenho não no prazer, mas nas coisas miúdas que compõem o prazer maior. Como no nome com que Laura me rebatizou naquela noite, por uma repetição debochada no final de cada frase, um quê de cômico a cada fonema: Santiago. "Claro, Santiago". "Você não acha, Santiago?" e afins. Meu novo nome usado de ponto final. Ela podia ter dito qualquer outro. Mas escolheu um desses nomes dos quais ouvimos falar nos livros escritos bem pra lá do Tratado de Tordesilhas, ou nos filmes em que se habla a outra língua, conhecedora da capacidade de que os amantes latinos nos tragam à vida (sim, nos tragam à vida, em primeiro lugar, mas também tragam a esta vida uma boa dose de drama). Laura, sendo Débora, elegeu para mim, ou melhor, para ter com Santiago, o que talvez queiramos todos para nós mesmos e, vez em quando, encontramos em reflexo mais ou menos simétrico nos outros. Um pouco de drama e qualquer agitação que, se durar, faz da vida um inferno, mas se nunca acontecer, faz dela o mais insuportável dos marasmos.
Naquela noite até então sem futuro, quando a segunda pergunta que ela me fez foi "Me diga quem você é, Santiago, sem me contar a sua profissão", certeira, ignorando completamente a conversa paralela que se estabelecia nas cadeiras ao lado da nossa mesma mesa, que agora já não importavam nada porque parecia que estávamos a sós, dragados todos os ruídos pelo ímã de um interesse genuíno, tive que tomar um pouco de cuidado para não me expor inteiro e de bandeja. Se é que eu saberia não fazê-lo. Ou fazê-lo. Quem sai com uma pergunta dessas a um desconhecido? Tive a impressão de que ia me liquefazer ali, ao vivo, e virar uma poça toda transparente de evidências de que ela tinha me desconcertado.
Ainda sem saber que Laura era Laura, e mais do que isso, sem suspeitar que se tratava da filha do meu psiquiatra (o que se provou, depois, a coincidência mor), deixei que ela brincasse de me chamar por esse comando verbal diferente do meu nome de batismo só para que a ideia que ela fizesse de mim, mais criativa que o roteiro que eu tenho escrito para a minha própria vida, me concedesse o privilégio de uma personalidade inteiramente diferente e novinha em folha. Um Santiago brand new, sem sintomas depressivos, sem insônia e sem pensar com o fígado, conhecendo a Laura-quase-Débora 90% sortuda e feliz, na mesa do bar, os cabelos soltos e um pouco enrolados sobre os ombros, bebendo o primeiro do que seriam uns seis copos baixos de whisky puro até às três da manhã, como se não fosse uma mulher, e sim um cowboy do interior do Texas.
Aquelas horas me estarão sempre suspensas dos efeitos da geografia, do tempo e da lógica. Herméticas, com um selo feito de piadas internas. Como se não tivéssemos terminado a noite, mundanos, comendo pizza requentada no sofá da sala do meu apartamento. Enquanto nos engolíamos com as bocas falantes, com as mãos gesticulantes e também com os ouvidos. Mas sem um beijo na boca sequer. Eu um Santiago sem iniciativa, para não correr o risco de manchar qualquer instante tão doce com alguma rejeição. A Laura cheia de brios, quase sem margem para ser mal interpretada. Honrada o suficiente para não avançar nenhum sinal ou linha invisível de deslealdade que a fizesse se arrepender demais quando deitasse na cama comprometida para dormir. Mas também inescapavelmente entregue. O suficiente para emendar uma pergunta na outra, ávida para ter a chance de se inventar em resposta e permitir que eu me reinventasse, em resposta ou em outra pergunta.
Quando ouvi, da minha sala, depois daquele nosso after verborrágico e inusitado, a porta do carro da Laura se fechar, sendo a sua saída da minha casa e da minha vida intempestiva como a sua aparição, eu ainda era Santiago. Minha atenção ainda estava aguçada de querer ouvi-la mais, inteira, em cada milímetro de letra e ruído. Eu sabia que aquelas horas que ainda reverberam no vão magnético para onde são relegados os maiores mistérios e as maiores coincidências seriam o que se tornaram. Porque sei que esse deixar-se levar - e, sobretudo, esse desafio perigoso de saber ou não até onde (para alguns uma espécie de cretinice e, para outros, um experimento científico controlado, feito com a matéria vital que impulsiona o dínamo dos dias) - está entre os saberes e prazeres atávicos de nossa espécie. Raros e escondidos, de repente se desvelam. Não duram mais do que uns instantes, mas duram na memória. Nisso desafiando os deuses e a morte.