domingo, 30 de junho de 2024

Quina

Esse estilo é um lugar
Que me bate onde dói
No peito
Na memória
Na úvula
Dá uma vontade de vomitar
Ou de gritar
Ou de escrever
O que pra mim
Dá quase na mesma.
Gritever
Escritar
Apelo para o humor e os neologismos brandos
Como se pudesse esquecer que o bluetooth dizendo
Connected
É outra pista sem fim entrando pelos tímpanos
que me convida a perseguir o perigo
- bastante real -
De qualquer coisa
Incansavelmente
Exaustivamente
Inseparavelmente
Eis-me aqui de novo usando advérbios compridos insinceros para brincar de poder de síntese

Se escrever fosse remédio controlado
Eu poderia dizer
“Estou de novo tentando desmamar”
Para falar de se livrar aos poucos
Mas seria mentira
Ainda quero gastar palavras superlativas
E curtas,
que dizem muito
como febre
Ou duas que juntas formam outra coisa,
como telecinesia
E para elas preciso de alguma pesquisa
Rigor científico
Investigação
Dedicação
Um arcabouço revisitado de referências
Foi o tempo que dedicaste à tua rosa, etc.

Chacoalho a cabeça
Para espantar a ideia de que
não
e me vem a de que posso

Talvez esse estilo e esse tempo me façam suportar as frestas
E espiar de novo pela quina
Que me bate onde dói

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tratar aqui

Entro pela porta. A sala é pequena, deve medir 3x3. Tem nela um cabideiro, uma maca, uma pia, um lixeiro e uma parafernalha tecnológica que ocupa um terço do espaço livre no chão. Entrando sinto o cheiro. Sou capaz de apostar que seja o mesmo cheiro que teria eletrocutar em alta potência uma granja inteira de galinhas. Não lembrava que era tanto. Minha memória olfativa dura mais do que as outras. Me traiu dessa vez. Mas não vou fazer piada com isso em voz alta. E agora não adianta torcer o nariz. Estou aqui, de pé, já chamaram o meu nome no horário correto, cheguei aqui voluntariamente, para a minha segunda sessão. Pelo protocolo que me recordo, agora devo tirar as calças. Tiro as calças. É sempre um pouco embaraçosa essa parte de tirar as calças sem nenhuma dose de romance ou putaria envolvidos. Depois que eu tirar as calças vai começar. A máquina já ligada. E essa mulher com arcada dentária de criança travessa com a máscara abaixada entre o queixo e o pescoço rindo um riso forçado. Será que eu confio nela? Me manda deitar. Primeiro de barriga pra cima. Vai me encaixando na cabeça uns óculos de nadador com um guardanapo enjambrado dentro, um tom meio é-para-preservar-a-sua-segurança-senhora. Fala uma amenidade sobre o clima enquanto eu, já cegada, agora tenho a audição mais aguçada que o olfato. Ouço o esticar do elástico dela botando as luvas. Sou capaz de pressentir que depois tenha estendido e contraído os dedos para assentar o látex e otimizar a sensibilidade dos quirodáctilos. Ouço três disparos ritmados: pi, pi, tuff... pi, pi, tuff... pi, pi, tuff. Lembro que sou péssima em onomatopeias. Pi, pi, tuff... Não consigo entender para onde estão sendo direcionados, já que não estou vendo nada e a poderosa chefona da cena é essa ruiva tingida e estranha que divide a sala comigo. Deve ser um teste. Me pergunta se senti dor da última vez. A dicção meio embaçada. Intuo que agora já esteja com a máscara tapando a boca. Digo que não, que praticamente não. Me lembro, em silêncio, que era outra moça da última vez. Um semblante mais terno e capacitado. Onde foi aquela? Eu preferia aquela. Vou marcar no horário daquela daqui a quarenta e cinco dias - penso, torcendo para que esse meu desdém lombrosiano e antecipado não esteja passando num outdoor pra fora da testa, em cima dos óculos, e com isso eu ative o sadismo dela. Pi, pi, tuff... Sinto o primeiro tuff bem no começo da perna direita, a parte alta da coxa nua, quase na emenda com as ancas. Um calor extremo (isso é nervoso ou tá calor aqui?) e um frio concomitante. Como se fossem microagulhadas superficiais. Estranho a impressão como se fosse a primeira vez. Ouch. Acho que doeu. Fiquei arrepiada junto com a dor. Ela começa a repetir a operação. O pi, pi, tuff... é o mesmo de antes, mas os disparos parecem mais acelerados. Ela percorre a parte alta da coxa, cada movimento centimétrico para os lados um novo pi, pi, tuff... E faz na vertical, o que me parece anti-intuitivo. Depois prossegue, uma segunda camada vertical mais ou menos paralela, depois mais outra, todas até chegar ao joelho. Quanto mais perto do joelho, mais parece que a dor vem de dentro do osso. Onde há pouca carne e mais pele = mais dor, acabo de me lembrar. Contorço um pouco na maca. Ela diz que tudo bem, os marmanjos fazem pior. Imagino um marmanjo inserido na cena dolorosa e isso não melhora as coisas. Quando penso que não vou mais suportar, lembro que estou ridícula. Exposta. E que ela está com os olhos abertos. Me vendo aqui, contorcida, a versão feminina de um ciclope de baixo orçamento, as pernas entreabertas, torcidas um pouco mais a cada disparo. A blusa de lã um pouco amassada de estar por dentro das calças, que agora estão no cabideiro, a manhã inteira. Quando ela avança para a canela, penso já pela décima vez que não vou suportar. Esta é a primeira perna. Depois tem a outra. Uma dor nova a cada duplo pi, uma dor pior com o que deveria ser o alívio a cada tuff. Ela segura a minha pele para acalmar o efeito. Não adianta quase nada. Aí me manda virar de lado, virada para a parede. Estou desorientada. Não enxergo nada. Não lembro mais onde está a parede - que eu me lembre, eram quatro. E se eu estiver virando errado, de frente pra ela? Que vergonha. Estender a mão é pior, vai que eu toco na barriga dela, ou no peito, ou no equipamento, e a coisa toda fica ainda mais estranha. Afinal estou sem calças. Atrás da coxa a dor é ruim, mas suportável. Agora ela começa na horizontal. O que me parece mais correto, tendo em conta a anatomia do aparelho, mas agora também parece falta de método. Atrás do joelho, a dor é o capeta encarnado. Achava que ali o osso era mais longe do que na frente. Não é. Ela desce. Sinto a pele ficando meio áspera, repuxada, mas deve ser só impressão. Da outra vez não deu nada. Ela desce mais. Volta a trabalhar em tiras verticais. Perto do ossinho do tornozelo, ainda pior. Sinto as minhas mãos suadas. O buço também deve estar. Ensaio botar as mãos na cabeça como quem vacilou e acabou de descobrir - mas estou ocupada demais pensando se essa era a calcinha preta boa ou peguei a parecida que é meio desbotada na gaveta hoje de manhã. Que se dane. Ela já deve ter visto coisa pior. Não é hora para impressionar. Só preciso sobreviver e fingir plenitude. Enquanto ela me inflige uma dor nova e lancinante a cada espasmo que eu dou. Penso em chutá-la, esquecendo subitamente aquela minha forte convicção de nunca maltratar um trabalhador enquanto trabalha. Me detenho. Mais um disparo perto do osso da canela. Solto um gritinho. Ai. Depois peço desculpas. Tento me distrair. Penso no Caribe. O biquíni cavado, a água morna. A motivação original. Mas não dou conta de esquecer as dores ritmadas no compasso dessa pistola maluca a que me submeti espontaneamente. E ainda paguei por isso. Fico com medo de conspurcar a viagem inteira com esse stress pós-traumático se formando em conjunto das imagens passando na tela da minha mente de olhos fechados. Tiro o mar da cabeça. Uma perna já foi, agora falta a outra. Estamos mal e mal na metade. Estica essa, ela me diz. Isso. Agora dobra a outra. Que intimidade é essa, penso comigo. Mas cinismo, daquela porta pra dentro, não adianta. Acho que até piora. A tortura dura mais ou menos uns oito minutos, mas parece que durou uma vida. Agradeço e aceno com a cabeça, depois de arrancar os óculos malucos. Vou voltar, mas quando voltar espero já ter esquecido. Saio pensando que vou contar como se fosse piada e encerrar com: (re)vendo oito sessões de depilação a laser. Tratar aqui.

Eco [25]

Para quem não sabe, as obsessões funcionam assim: tomam de assalto, atropelam, velam de incendiar até que o conteúdo todo da matéria, combusta, termine de evaporar pelos poros e a calmaria reine soberana novamente. Mas pode demorar muito. Até porque o tempo de uma obsessão dura o equivalente ao quanto se alimenta, e eu sou perito em alimentar as minhas. Então pode durar muito. E, sobretudo, demora para acontecer. Quando acontece, tenho essa energia toda acumulada. De séculos em séculos me aparece uma Laura (ou um hobby, ou uma comida, ou uma música) e aí entro em looping. Urge por dentro uma necessidade de agarrar com unhas e dentes, fascinado, para que não me escape, usando tanta pressão e produzindo tanto calor, também para tentar conter, até que exploda - ou escorra - ou me lambuze - ou suma.
Geralmente é o Verbo. Porque no princípio era o Verbo. Acho que o problema todo da (minha) humanidade é este. O Verbo, que veio e vem antes de tudo. Se eu tiver que definir o Verbo, complica. Reconheço-o nítido, entretanto, nas coisas simples como passar protetor solar de manhã na frente do espelho. Uma coisa à toa que, com o Verbo, vira poesia. A distribuição do produto em cruz no rosto, antes de espalhar, me impelindo a dizer amém. Como era no princípio, agora e sempre. O Verbo. Um sorriso. Babel. Amém. Nenhum inferno é suficiente para a heresia de usar referências bíblicas ao descrever tais sacrilégios.
Imbuído de intuitos motivados por esta espécie de possessão de todos os pequenos gestos, nos dias seguintes, procurei Laura nas gavetas abertas, no banho (pois é), nas prateleiras do supermercado e nas ligações de trabalho. Não estava. E, ao mesmo tempo, estava. Tive aquele sentimento de estar esquecendo algo, e suspeito que este algo fosse o funcionamento consciencioso das minhas engrenagens. Do que me adiantava saber que a distância romantiza o idealizado se esta mesma distância agora me consumia porque fazia idealizar mais e romantizar mais e querer ainda mais?
Para me autoexorcizar, peguei um livro aleatório da estante, como se pedisse um conselho a um velho amigo. Abri em página aleatória. Me disse qualquer coisa que não retive. Aí fui para a academia. Agachar com uns 50kg - fora o peso de ser doido - podia ter algum efeito positivo. Não teve. Quando terminei o treino, suado e exausto, pensei que Laura devia ficar ainda melhor humorada se temperada desse suor e dessa exaustão e voltei à estaca zero. Chegando em casa, ataquei a geladeira. Na porta, um vinho cínico: Siempre Tengo Un Plan B. Eu não, Laura. Eu sempre tive só o plano A, vez ou outra o realizei, e me agarro a ele sempre que posso - e às vezes, como agora, também quando não posso. Essa coisa (que vou chamar de devoção ao Verbo) nunca brotou em mim como um verde tímido do musguinho na pedra de Sosa. Nasceu comigo. E, quando me acomete, sempre é uma coisa assim mezzo episódio de mania, mezzo incapacitante. Talvez eu devesse agradecer pelo fato de que aconteça só de quando em quando, porque assim ao menos eu tenho um respiro de realidade mais longo - são anos - entre um salto no abismo e outro.
De modo que não preciso que mais um francês me diga por qual caminho seguir ou que a ausência é a mais fiel das presenças. Isso eu já sei. Eu só queria aprender a gastar a Laura em mim logo. E para isso sei que preciso mergulhar nesta presença constante da falta dela, até que se consuma ou evapore. Para que as minhas engrenagens voltem a ser letárgicas e funcionais, como antes. Para que Duncan Wedderburn deixe de se sentir ultrajado pela valentia com que Baxter passa a encarar os... saltos. Lá vêm eles de novo.
Estes pensamentos se alternam com outros, mais tontos e inconsequentes, que sugerem medidas mais extremas. Como por exemplo um desejo de descobrir o endereço da Laura, adaptar no meu carro um dispositivo de telemensagem e ir recitar com a caixa de som no talo, na frente da casa dela - para garantir que seja obrigada a absorver sem torcer o nariz - todo aquele conto das Anotações do Caio, que eu amo. Com ênfase dramática em Olho no poço do teu olho escuro, meia-noite em ponto. E uma pausa com um suspiro antes da frase De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria. E encerrar em seco, derradeiro, sem ler o final, naquela passagem que suplica: Não me empurre de volta ao sem volta de mim.
Dizendo isso tudo fico prestes a erradicar do meu dicionário as palavras metafísica, feitiço, enfeitiçado e derivados. Quero fincar os pés no chão só para não dar à Laura o gostinho de saber o tamanho do poder que exerce nessa minha obsessão. Preciso ser justo: talvez ela não tenha culpa. De repente eu virei um marionete da Laura, em particular? Ou sou apenas (e é engraçado dizer “apenas”) escravo das minhas obsessões, quaisquer que sejam elas? Sou eu fazendo essa pergunta ou é a minha vaidade em ser visto e contemplado que assumiu o painel de comando agora? De onde veio esse desejo - realizado, Laura, enfim realizado - de uma plateia tão qualificada para os meus devaneios?

Anotei todas essas perguntas num caderno, que apelidei de Caderno do Ego e do Verbo. Me comprometi a pensar sobre elas com calma, quando essa minha burrice passar. Até lá, não me empurre de volta, Laura.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Não sou eu, é meu eu-lírico

Ontem fui dormir assombrada. Terei vocabulário, ainda que prosaico, para fazer frente a esta dubiedade estrangeira que eu não apreendo por completo a menos que banque a açougueira? Dissecando as vísceras dos versos, como se dali pudessem ser extraídas certezas, e examinando com lupa, repetidamente, cada escolha e cada pausa, a fim de garantir que nada me escape. Lançando mão do tempo, este bisturi cirúrgico com o qual posso acessar repetidamente: a pele, a carne e os tecidos das rimas. A pele, a carne, o sangue, para deste beber as referências escorrendo pelo queixo, feito bárbara. Quase satisfeita. Teu idioma finalmente atravessando a minha fronteira. Devoro tudo de novo, quase um urso - que se alimenta, sôfrego, para depois hibernar. Contemplar. Retomar a digestão, se necessário. Poupar energia. Cocriá-la. Dou outra risada nervosa escrevendo esta palavra imbecil: cocriá-la. Depois me estiro pra trás, dou duas batidas na boca do meu estômago intelectual e palito os dentes com os ossinhos feitos das vírgulas, dois pontos e travessões cuidadosamente distribuídos no esqueleto que sustenta those corpos poéticos.

Em resposta, conjuro o meu arsenal. 

Reúno todas as palavras do meu léxico num saquinho de tecido acetinado que é amarrado por uma pequena corda com dois nós nas pontas. Muito chique, inspirado nos vestidos das musas gregas. Também muito sujo e puído. No qual palavras de toda ordem e calão podem ser pescadas. Investigo, enfiando a mão e tateando as possibilidades do meu fluxo de consciência, para deixar um pouco pela conta da sorte, como se não tivesse escolha. A velha mania de fingir que eu não tenho escolha. Que sou capturada ou arrebatada - estes sim, predicados cuidadosamente escolhidos, por minha conta - e a partir de então elas simplesmente precisam sair, ainda que aleatórias.

Que explicações imprecisas e prolixas sairão dali, deste saco, quando eu for confrontada por essa dispersão ou para essa inspiração de agora? Eu, que ainda não sei explicar o que vem do ego, e boto tudo na conta deste saco (mesmo que eu muito procure, não há sinônimo mais erudito para esta e algumas outras palavras, porque algumas coisas simplesmente são o que são, então é isso mesmo: este s-a-c-o). Cheio de palavras. Pesadas, inúmeras, carregadas como o fardo do meu elitismo linguístico, um pouco torpe, que sempre que fica fascinado quer cooptar e arrebanhar as novidades de qualquer língua, para sempre saber dar nome às coisas em qualquer canto. Que às vezes finge que (se) conhece muito bem e depois percebe que não e aí se contém, fechado, acumulador, até ter outra chance ou a missão de gastá-las. Palavras para serem lidas. Investigadas com minúcia. Bebidas, como é o sangue nos pactos, até a última gota.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Freio de mão

Você já puxou o freio de mão de um carro em movimento? A tentativa de que uma parada repentina e mais ou menos calculada seja mais segura do que a iminente colisão abrupta. Primeiro o corpo se inclinando sem jeito para acompanhar o veículo. Depois o barulho. E o coice. O volante segurado firme, embora com uma só das mãos, cada milímetro equivocado podendo determinar um descontrole fatal para qualquer dos lados. Em circunstâncias como estas, dar seta adianta pouco mais que nada. Aliás, você já viu alguém sinalizar de antemão um cavalo de pau? Nem eu. Seria o equivalente ao deserto sinalizar que dentro em breve encontrará o mar. Ideal, mas improvável. Puxado o freio de mão, antes de parar, o carro vira criança. Os pneus gritam como se se jogassem no chão do mercado querendo mais um doce antes do jantar. Dinner & Diatribes. Ninguém puxa o freio de mão, porém, se já não estiver pressentindo uma ameaça de descontrole. E é curioso que o freio de mão seja puxado justamente para tentar paralisar este descontrole. Domá-lo. O que se segue é, de fato, uma parada - mas absolutamente nada delicada. Uma parada, isso sim, mas não sem o risco de rodopiar meia dúzia de vezes e bem rápido para uma direção totalmente desconhecida. Consigo imaginar sendo vistas, de fora, uma ou duas faíscas saindo das rodas, que se mantêm no lugar como por um milagre que talvez se possa atribuir à quintessência do mundo. Inércia e movimento fazendo suas centelhas. Velocidade e lentidão duelando a olho nu. Ou estranha e finalmente se completando num cenário possível, como as tartarugas e cronópios de Cortázar. Minha professora de Física do ensino médio que me perdoe, ou que já tenha melhorado em ensinar, porque ainda entendo pouco da vantagem de uma parada de rompante se os efeitos que se sente logo após a tentativa de parada são tão semelhantes aos da colisão. Uma ressaca. O corpo, com nervos, em chamas. Uma espécie de náusea agitada. Impositiva. Arrogante. Em voz alta. Parece que os airbags estouraram o para-brisa, garantindo que nada do retrovisor central para a frente seja visto como antes. Mas é o que se recomenda. Puxar o freio de mão. No banco traseiro, atada ao cinto e assustada, a fabricada suposição de que foi melhor assim. E a verdade depois da verdade anunciando que ainda não sabemos se ao final da manobra estaremos a 180 ou a 360º. Você já puxou o freio de mão de um carro em movimento? Tentar parar de pensar é mais ou menos assim.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Eco [24]

No dia em que conheci Laura, deixei que ela me mentisse o meu nome. Éramos ambos bons samaritanos reduzidos a sermos os anexos e a retaguarda de amigos de um e de outro, que agiram como se ainda precisassem de pretexto ou uma certa casualidade informal para se encontrar. Meu amigo me fingiu que era uma das nossas saídas de brothers, e que não tinha marcado nada com a garota dele. E ela, com Laura, fez o mesmo. Patético demais para que não notássemos já na chegada, no primeiro instante em que, num teatro canhestro do olhar dele procurando o destino certo entre as mesas do bar até encontrá-las ocupando a mesa que certamente também ocuparíamos, fingiu que sentarmos todos juntos era uma pequena conveniência arquitetada pelo destino, e não construída sobre os fundamentos de um plano, apesar do salão ter meia dúzia de outras mesas vazias. Deu-se aí um double date. Dois farsantes ridículos e nós, espelhados, dois coitados desprevenidos, nitidamente enganados, cada um dos quatro fabricando para si um pouco de uma espécie de fantasia com que todos nós precisamos conduzir a vida às vezes sob pena de morrermos sem viver a plenos pulmões e artérias pequenas loucuras impensadas como aquela.
Nossa conversa começou com um jogo de adivinhação. O que foi, para mim, a primeira prova (pequena mas irrefutável) de que Laura era uma pessoa daquelas que sabem que é da curiosidade mútua que nascem os maiores interesses e afinidades. Estar disposto a conhecer alguém é, sobretudo, estar curioso pelas camadas que se revelam na medida em que as anteriores esmaecem para os lados dando lugar às seguintes, como aquela transição ruim do finado PowerPointNossa conversa começou com um jogo de adivinhação porque a primeira coisa que Laura me disse, um pouco aristocrática, quando me aproximei da mesa, foi: “Olá, estranho. Prazer,…” - mas aí titubeou, imprevisível como costumam ficar as mulheres entediadas, talvez um pouco arrependida de ter saído de casa ou, pelo menos, de dar início à conversa com esse formalismo, e naquele milissegundo em que deveria emendar o clássico do "Prazer,..." com o próprio nome, emendou com uma pergunta: “...tenho cara de quê?” - e o imprevisto da primeira interação já me fez sorrir com os olhos.
Não tive tempo de pensar se aquilo era uma pegadinha ou referência, porque como por instinto, tive certeza para que rumo a pergunta me levava, e o rumo era um nome: “De Débora!” respondi, pensando e dizendo o nome da primeira mulher que homenageei, ainda no ensino fundamental. Ela sorriu sem julgamento, mesmo parecendo ter entendido ou adivinhado, por técnicas de bruxaria, que todas as Déboras que conheci na vida eram gatas, inteligentes e um pouco sacanas e por isso carregavam na bolsa o alvará para virar minha vida do avesso, cedendo a todos os impulsos do meu tesão lírico, se eu não me recompusesse com uma dose extra de juízo.
Respondeu, então, que eu tinha errado por pouco. Mas propositalmente não completou a lacuna que fez pairar no ar, o que também não fiz questão de saber. Pelo menos não naquele momento em que, se eu soubesse que ela se chamava Laura, e não Débora, fulminaríamos com um nome próprio o delicioso espaço das entrelinhas que se estabeleceu como um campo aberto de possibilidades imaginativas. Ela apenas me devolveu a bola, no seu turno, chutando que eu me chamasse Santiago. Para ampliar a graça e o absurdo, dando a ela a certeza de que eu estava disposto para jogos de palavras e adivinhações como aquele por quantas horas ela também estivesse, principalmente porque então já tacitamente firmado o pacto de que não nos entediaríamos, estendi a mão e sentenciei: “Acertou, quase-Débora. Muito prazer, Santiago”.
Sempre achei estranho que tenhamos nós, lusófonos, contraído toda a expressão "Muito prazer em conhecer, meu nome é Fulano", que já é ruim porque nunca se sabe se será mesmo um prazer conhecer antes de conhecer, na utilização pontual e constrita da expressão "Prazer, vírgula, Fulano". É uma abreviatura que escancara a ausência de prazer antecipado. Este prazer só vai se confirmar, ou não, nos momentos seguintes. No caso de Laura ele foi confirmado, reconfirmado por prova real e autenticado em três vias no cartório, na medida em que nos brindamos mutuamente com a ansiedade pelo desconhecido da companhia um do outro nas horas seguintes, renovando perguntas sem transparecer a pressa com que inegavelmente ansiávamos e desejávamos por mais daquele contato, sabendo que ele se desfaria em fumaça no momento em que a realidade (com seus ônus e bônus) voltasse a pesar sobre os nossos ombros. Mas não é disso que se trata.
Sempre me detenho não no prazer, mas nas coisas miúdas que compõem o prazer maior. Como no nome com que Laura me rebatizou naquela noite, por uma repetição debochada no final de cada frase, um quê de cômico a cada fonema: Santiago. "Claro, Santiago". "Você não acha, Santiago?" e afins. Meu novo nome usado de ponto final. Ela podia ter dito qualquer outro. Mas escolheu um desses nomes dos quais ouvimos falar nos livros escritos bem pra lá do Tratado de Tordesilhas, ou nos filmes em que se habla a outra língua, conhecedora da capacidade de que os amantes latinos nos tragam à vida (sim, nos tragam à vida, em primeiro lugar, mas também tragam a esta vida uma boa dose de drama). Laura, sendo Débora, elegeu para mim, ou melhor, para ter com Santiago, o que talvez queiramos todos para nós mesmos e, vez em quando, encontramos em reflexo mais ou menos simétrico nos outros. Um pouco de drama e qualquer agitação que, se durar, faz da vida um inferno, mas se nunca acontecer, faz dela o mais insuportável dos marasmos.
Naquela noite até então sem futuro, quando a segunda pergunta que ela me fez foi "Me diga quem você é, Santiago, sem me contar a sua profissão", certeira, ignorando completamente a conversa paralela que se estabelecia nas cadeiras ao lado da nossa mesma mesa, que agora já não importavam nada porque parecia que estávamos a sós, dragados todos os ruídos pelo ímã de um interesse genuíno, tive que tomar um pouco de cuidado para não me expor inteiro e de bandeja. Se é que eu saberia não fazê-lo. Ou fazê-lo. Quem sai com uma pergunta dessas a um desconhecido? Tive a impressão de que ia me liquefazer ali, ao vivo, e virar uma poça toda transparente de evidências de que ela tinha me desconcertado.
Ainda sem saber que Laura era Laura, e mais do que isso, sem suspeitar que se tratava da filha do meu psiquiatra (o que se provou, depois, a coincidência mor), deixei que ela brincasse de me chamar por esse comando verbal diferente do meu nome de batismo só para que a ideia que ela fizesse de mim, mais criativa que o roteiro que eu tenho escrito para a minha própria vida, me concedesse o privilégio de uma personalidade inteiramente diferente e novinha em folha. Um Santiago brand new, sem sintomas depressivos, sem insônia e sem pensar com o fígado, conhecendo a Laura-quase-Débora 90% sortuda e feliz, na mesa do bar, os cabelos soltos e um pouco enrolados sobre os ombros, bebendo o primeiro do que seriam uns seis copos baixos de whisky puro até às três da manhã, como se não fosse uma mulher, e sim um cowboy do interior do Texas.
Aquelas horas me estarão sempre suspensas dos efeitos da geografia, do tempo e da lógica. Herméticas, com um selo feito de piadas internas. Como se não tivéssemos terminado a noite, mundanos, comendo pizza requentada no sofá da sala do meu apartamento. Enquanto nos engolíamos com as bocas falantes, com as mãos gesticulantes e também com os ouvidos. Mas sem um beijo na boca sequer. Eu um Santiago sem iniciativa, para não correr o risco de manchar qualquer instante tão doce com alguma rejeição. A Laura cheia de brios, quase sem margem para ser mal interpretada. Honrada o suficiente para não avançar nenhum sinal ou linha invisível de deslealdade que a fizesse se arrepender demais quando deitasse na cama comprometida para dormir. Mas também inescapavelmente entregue. O suficiente para emendar uma pergunta na outra, ávida para ter a chance de se inventar em resposta e permitir que eu me reinventasse, em resposta ou em outra pergunta.
Quando ouvi, da minha sala, depois daquele nosso after verborrágico e inusitado, a porta do carro da Laura se fechar, sendo a sua saída da minha casa e da minha vida intempestiva como a sua aparição, eu ainda era Santiago. Minha atenção ainda estava aguçada de querer ouvi-la mais, inteira, em cada milímetro de letra e ruído. Eu sabia que aquelas horas que ainda reverberam no vão magnético para onde são relegados os maiores mistérios e as maiores coincidências seriam o que se tornaram. Porque sei que esse deixar-se levar - e, sobretudo, esse desafio perigoso de saber ou não até onde (para alguns uma espécie de cretinice e, para outros, um experimento científico controlado, feito com a matéria vital que impulsiona o dínamo dos dias) - está entre os saberes e prazeres atávicos de nossa espécie. Raros e escondidos, de repente se desvelam. Não duram mais do que uns instantes, mas duram na memória. Nisso desafiando os deuses e a morte.