Bem-vindos àquele que sequer deveria ser um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
Se de todas esta visita é a única que nos dispusemos a realizar furtiva no silêncio da madrugada não é à toa: o enclausurado que conheceremos a seguir, mesmo tão eloquente, apenas se move por entre as sombras obscuras do calar da noite
da memória
e da idealização.
Guarda-se voluntariamente num lugar ainda mais oculto que as celas convencionais, alguns andares abaixo do nível mais baixo até então conhecido. Para permanecer exigiu que construíssemos alçapões para acessar outros alçapões — detrás das lacunas do indizível. Não dura muito à luz. Guarda-se no escuro: como nas páginas de um livro fechado, clássico, há muito já lido, como no canto do fundo das estantes mais empoeiradas da erudição, como naquele vão estreito entre as pernas cruzadas de um sujeito que tenta evocar qualquer coisa de feminino enquanto, terrivelmente masculino, ajeita os óculos imitando toda uma classe de poetas românticos.
É o Lírico. Que pode percorrer qualquer latitude ou longitude, quadrimensional, e ainda assim parece conservar sua procedência de origem. Do afã pelo poético o Lírico veio,
às profundezas intocáveis do platônico
sempre retornará
enquanto o sol
nos salões
da razão
da superfície
continuar nascendo.
Até parece um vampiro:
de constâncias,
energias e
sanidade.
O Lírico nunca soube para onde vinha e nunca imaginou que se aprisionaria no Caulabouço da mansão, porque sua marca costumava ser (sabidamente condenado a) se repetir por todas as esquinas e vielas mais quentes do mundo, como as coxas das moças, numa busca incessante, equivocada e irrefreável pelo oposto, o frio
na barriga.
Ah, e por que veio parar aqui? Bem, quando abre a boca, enreda. É estranho admitir que, apesar de tanto conteúdo, sua sedução se restringe à forma — rigorosa, ritmada, por tantas vezes um retrato infiel. É assim que ele faz esquecer da qualidade ou verossimilhança de seu conteúdo
moral. Os perigos da convivência prolongada são ainda piores, então peço que não reclamem por termos de fazer este esforço para descer mais até encontrá-lo só por uns poucos segundos, tendo já que voltar brevemente. É sorte se pudermos lhe enxergar nesta escuridão, em paralelo às barras das grades.
É o último lance de escadas. Só mais quarenta e oito alçapões para nos esgueirarmos. Preparem suas miopias. Franzino, o Lírico tem a aparência de um L minúsculo. Ou a de um i maiúsculo, dependendo da perspectiva. Também por isso lhe apelidamos o Lírico: houvesse uma tabela periódica dos acautelados, o Lírico seria o Li, que tudo de mais majestoso já leu. Tomaria o lugar do lítio. O novo metal mais leve, dando peso (ou energia?) para corrigir os desequi-
Librios mentais, no ponto baixo ou na mania. Ou produzi-los. Dada sua forma fácil e delgada (que exigiu o desafio dos desafios para a prisão, mas não se sabe quando nem onde, só a história do que custou aos cauptores), é seu o nome que os outros presos repetem riscando pelas paredes em conjuntos: quatro verticais e um quinto horizontal diagonal atravessando os primeiros, registrando a cada dia uma esperança de Li-
bertação.
LiLi sabe cantar. É tão, tão fino e sutil que parece ter o poder de ficar invisível no espaço entre dois dedos unidos. Por aLi, escapa como um som. Se esconde. Ou pode ficar parado com os cotovelos rentes ao corpo, nas arestas, e se camuflar aLi para ouvir conversas. Pode rolar por baixo de todas as portas e invadir outros espaços. Sair, só sai por mau comportamento — já o fez duas vezes e, na última que lhe trouxeram para cá, encontraram-no sapateando uma sinfonia à cidade olhando para as estrelas no céu logo em cima da placa do teatro Rialto. Na primeira, cantava Odara.
Aqui, passa longos períodos mudo. Sem vê-lo, só se sente sua presença no mini-vão das pálpebras dos olhos fechados, nas cicatrizes dos pontos que fecharam grandes cirurgias, no formato do arrepio no pelo na pele ou na espinha. Outro dia se enfiou por dentro de MelancoLinha e não havia quem o tirasse da-
Li. Um conceito que se concebeu no mais puro ideal (mas somente ne-
Li) e, por isso, das ideias se retroa-
Limenta.
Quando menos se espera, sumiu outra vez.
Depois, também sem aviso, sobe pelo corredor das mãos ou se debate no corredor da garganta: é um vômito
soluço
evocação
Limbrança.
A volta dos que nunca (mais) Liram.
Quando encontrado, ninguém sabe ao certo se é o mesmo Lírico de sempre ou se o traço fez mitose, morreu apagado o primeiro e nasceu outro tracinho muito parecido para tomar-
Li o lugar.
Seja como for, o Lírico míngua quando a clareza entra. Isso é certo. Não dura muito à luz. Foi feito de não durar a cada nova manhã pois falt'
a
Li
consistência.
Sobram-lI estas vIsItas /