Selma, por que é que eu venho me pegando com os pés tão contraídos, mesmo fora dos sapatos? Na cama, à noite, todos os dedos duros e virados para dentro contra o lençol e o colchão, como se a saúde das minhas unhas dependesse disso. Se meu dedos pudessem, te juro, eles encravariam para dentro das solas, só não fazem porque não alcançam. A mandíbula, então, nem se fala. Vive de um jeito que parece segurar uma faca entre os lábios como último escudo de proteção para que a lâmina mais afiada de todas não me corte a língua.
Eu não quero ter crise de ansiedade nunca mais, Selma. Naquele dia pode ter sido uma queda de pressão, claro que pode, pode ter sido a ressaca ou a privação de sono, podem ter sido o trânsito e o calor do carro preto debaixo do sol quente. Continua assustador ser tão frágil. Eu não aguento mais ter estes momentos em que sou feita de gato e sapato por mim mesma.
Tudo acontece dentro. E depois, passa uma semana ou duas, eu vivo bem de novo, como se nada tivesse acontecido. Dá pra crer? Não é que eu quero que o episódio dure mais, não é isso, vê se me entende, ninguém bem certo da cabeça ia querer que uma coisa tão ruim durasse, mas sendo as coisas como são a ansiedade me escapa fácil. E ilesa. Eu nunca consigo pô-la no microscópio para analisar bem do que é feita. E tudo que mais me angustia no mundo é feito dessa matéria etérea. Uma matéria que não consigo estudar para ficar especialista. Na qual finalmente reprovarei sem apelo ao conselho de classe nem recuperação, nota zero, vamos repetir este ano e ver se agora você aprende.
Minhas angústias mais graves são estas pedras sagradas nas quais não posso pisar por muito tempo - ou porque são lisas, ou porque afundam, ou porque parece que meus dedos vão se quebrar só de tocá-las, que pedra com pedra a gente sabe que pode dar nisso.
Se eu passasse a mão no telefone e te contasse na hora pareceria o que é: um episódio de muito descontrole físico e mental. As sirenes soando com luzes que piscam todas juntas e a banda dos por quês que não para de tocar bumbo bem desafinadamente na boca do meu estômago. Então guardo para administrar depois. Administro como posso. Choro e “passa”. A ressaca do momento de aperto dura uns dias. E quando eu chego aí já passou. Omito a gravidade. Quase esqueço do tamanho. Posso escrever, claro que posso, mas dizer é um pouco longe de sentir. Escrever fica no campo das organizações. E uma crise de ansiedade, Selma, só o que não é, é organizada.
Que alegria é me esquecer um tanto (que se eu ficasse em estado perene de ansiedade ou só de lembrança vívida daquele momento, que seja, eu acho que me internava à vera no Cruzeiro por uns 30 dias).
A resistência em ser medicada é para tentar não ser exilada também do bom de mim. Não quero fugir da vida, seja lá o preço que me cobre. Isso é uma coisa mais bonita de se dizer no papel do que no meio de uma crise de ansiedade. Ainda assim. Não quero “estabilizar” o humor se em troca eu for ganhar uma mansidão apática que me deixe anedônica. Só que no fundo, Selma, um pouco apática eu já me sinto. E outro pouco eu tenho estes dedos cravados e travados contra a cama. Não sei se você me entende.
Eu queria mesmo era uma vacina. Ficar imune. Será que o Joaquim não me arruma uma com aquele amigo médico? Se conseguir me avisa que eu te deposito os trocados para ressarcir. Dá um beijo nas criança e avisa que eu vou chegar dia 07 no ônibus das 5. Agora falta pouco. Estou ansiosa para te rever. Parece mentira.