segunda-feira, 31 de março de 2025

Saúde

combinei comigo de fazer
oitentativas
de equilíbrio
sem ser oito
outentar
denovo

sexta-feira, 28 de março de 2025

Carta de exílio

Selma, por que é que eu venho me pegando com os pés tão contraídos, mesmo fora dos sapatos? Na cama, à noite, todos os dedos duros e virados para dentro contra o lençol e o colchão, como se a saúde das minhas unhas dependesse disso. Se meu dedos pudessem, te juro, eles encravariam para dentro das solas, só não fazem porque não alcançam. A mandíbula, então, nem se fala. Vive de um jeito que parece segurar uma faca entre os lábios como último escudo de proteção para que a lâmina mais afiada de todas não me corte a língua.
Eu não quero ter crise de ansiedade nunca mais, Selma. Naquele dia pode ter sido uma queda de pressão, claro que pode, pode ter sido a ressaca ou a privação de sono, podem ter sido o trânsito e o calor do carro preto debaixo do sol quente. Continua assustador ser tão frágil. Eu não aguento mais ter estes momentos em que sou feita de gato e sapato por mim mesma.
Tudo acontece dentro. E depois, passa uma semana ou duas, eu vivo bem de novo, como se nada tivesse acontecido. Dá pra crer? Não é que eu quero que o episódio dure mais, não é isso, vê se me entende, ninguém bem certo da cabeça ia querer que uma coisa tão ruim durasse, mas sendo as coisas como são a ansiedade me escapa fácil. E ilesa. Eu nunca consigo pô-la no microscópio para analisar bem do que é feita. E tudo que mais me angustia no mundo é feito dessa matéria etérea. Uma matéria que não consigo estudar para ficar especialista. Na qual finalmente reprovarei sem apelo ao conselho de classe nem recuperação, nota zero, vamos repetir este ano e ver se agora você aprende.
Minhas angústias mais graves são estas pedras sagradas nas quais não posso pisar por muito tempo - ou porque são lisas, ou porque afundam, ou porque parece que meus dedos vão se quebrar só de tocá-las, que pedra com pedra a gente sabe que pode dar nisso.
Se eu passasse a mão no telefone e te contasse na hora pareceria o que é: um episódio de muito descontrole físico e mental. As sirenes soando com luzes que piscam todas juntas e a banda dos por quês que não para de tocar bumbo bem desafinadamente na boca do meu estômago. Então guardo para administrar depois. Administro como posso. Choro e “passa”. A ressaca do momento de aperto dura uns dias. E quando eu chego aí já passou. Omito a gravidade. Quase esqueço do tamanho. Posso escrever, claro que posso, mas dizer é um pouco longe de sentir. Escrever fica no campo das organizações. E uma crise de ansiedade, Selma, só o que não é, é organizada.
Pensando bem, que alegria é me esquecer um tanto (que se eu ficasse em estado perene de ansiedade ou só de lembrança vívida daquele momento, que seja, eu acho que me internava à vera no Cruzeiro por uns 30 dias).
A resistência em ser medicada é para tentar não ser exilada também do bom de mim. Não quero fugir da vida, seja lá o preço que me cobre. Isso é uma coisa mais bonita de se dizer no papel do que no meio de uma crise de ansiedade. Ainda assim. Não quero “estabilizar” o humor se em troca eu for ganhar uma mansidão apática que me deixe anedônica. Só que no fundo, Selma, um pouco apática eu já me sinto. E outro pouco eu tenho estes dedos cravados e travados contra a cama. Não sei se você me entende. Eu queria mesmo era uma vacina. Ficar imune. Será que o Joaquim não me arruma uma com aquele amigo médico? Se conseguir me avisa que eu te deposito os trocados para ressarcir. Dá um beijo nas crianças e avisa que eu vou chegar dia 07 no ônibus das 5. Agora falta pouco. Estou ansiosa para te rever. Parece mentira.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Melaleuca


Ouvir uma verdade enquanto se vive uma potencial mentira pode ser devastador. A verdade entra no ouvido direito, arde os miolos bem onde dói e procura atordoada a saída por outro buraco desse labirinto de ossos, carninhas moles, cartilagens, fluidos e cérebro. Parece não haver espaço para que percorra — a verdade parece três vezes maior enquanto se acotovela pelos corredores da cabeça da gente a duzentos por hora sem poder voltar por onde entrou. 
É assim, a verdade traz a mesma pressão craniana que a de um espirro trancado. Parece que vai nos carregar junto, nós e nossas inconsistências morais. Nós e cada partícula de negação assentada como dogma bem no meio do juízo. Nós e a construção. Nós e o assoalho antigo que a arquiteta mandou arrancar para ficar moderno. Nós e esses casacos pesados roídos de traça que ainda estão bons pra usar em casa porque imagina quem não tem nem um desse. Nós e esses móveis que ainda se organizam como se organizavam as mentiras que não eram mentiras quando foram dispostas assim, estáticas, nestes cômodos.
Tantas vezes guardei no fundo de um armário empoeirado a versão de mim que me daria mais trabalho no manejo, acho que entendo, eu juro. Acho que entendo. Quanta vergonha teria evitado nesta vida se aquele paninho puído estivesse encobrindo o espelho pra que eu não visse qualquer verdade entrar e zunir. Aí então conseguiria disfarçar bem. Sem precisar ajustar a pupila pra ver a beleza no caminho da sombra. E depois o risco de afogar sem boia. Ou o tombo sem rodinha na bicicleta.
Apita o timing do relógio e da constância. Essa impressão de já ter passado o tempo do desatino. Esse braço enganchado no certo da vida como um pilar, um fraio, um mastro, como se alguma coisa nessa vida fosse cem por cento certa se a gente planejar bem, para não ter que ver se alcança o que pode vir depois tendo que dar um salto de fé. Ou de coragem.

Deixa a verdade pros jovens.
Eu vou amassar um pacote de calaboquitos e depois deitar em paz com os farelos.

Tara

É o peso que as coisas têm
só de existirem

ou

É o preço que as coisas não têm
só de existirem?

quarta-feira, 26 de março de 2025

Tome notas - sabor limão

Faixa dupla

O tempo
de dono
de caminhonete
vale sempre mais
que o tempo da gente 


***

Minha cama é box
Descabe assombração no baú
Pero pies cubiertos
Que las hay, las hay


***

Dia cinza
Me drena energia
Quand’outono volta
‘inda não soube ser urso

Nuvens
em cima da cabeça
Não me deixam
com a cuca fresca


***

Meu saco
de guardar vergonhas
Às vezes fura
E esparrama
Pelo chão


***

Depois de tanta objeção
As coisas ainda estão
Como são


***

Contrariada
Ela é péssima


***
Desinvestir.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Tratar aqui 2: a inimiga agora é a mesma

Estaciono o carro pontualmente às 19h02. Elegantemente atrasada. Apenas dois minutos. A anterior acaba de sair do prédio. A seguinte sou eu. Verônica sorri na porta como quem diz bem-vinda de volta. Complacente. Os cabelos presos. Um rabo baixo. Moda modesta. Despontam do cocuruto uns fios brancos muito hidratados. Pontual como sempre. Pronta a me receber. No corredor iluminado, última sala à… direita, Verônica? É oposta da que eu me lembrava. Ah, sim, faz ano e meio que não venho aqui, guria, é verdade. Quanto tempo. Vais ter trabalho, heheheh. Que bonito ficou esse novo espaço, heheheh. A meia-luz ainda é a mesma. A lâmpada quente e o ventilador, como de castigo, disputando quem fica mais virado para a parede. Depois da enchente não tem mais o papel colado com desenho de bambu. Reformaram? Tá tudo com cara de novo mesmo, heheheh. O cheiro ainda é igual. Álcool. Cânfora. Arnica. Limpo e enjoado. O teto e o chão igualmente brancos. Mais assépticos do que eu me lembrava. A Verônica vai passando a mão embebida de álcool diretamente na maca com uma precisão de quem já fez isso quatrocentas e oitenta e duas mil vezes só hoje. Como se a mão fosse um pano. Como se os panos fossem todos dispensáveis aqui. Cacete. Fui mais rápida do que devia. Já estou só de calcinha. Ameaço esconder os peitos com as mãos. Ao menos enquanto ela termina os procedimentos de limpeza. Logo me lembro que foi Verônica quem drenou o inchaço do silicone e passa. Ô, vá lá, já me viu pior. Meus mamilos teimam apontar tímidos como se, como eu, talvez devessem olhar um pouco para baixo sem conseguir. Sinto um calafrio de constrangimento que dura dois segundos. É o tempo de me lembrar que o número da Verônica é a melhor herança que João me deixou. E ainda cobra barato. Ainda fala só o estritamente necessário. À exceção da vez que passou a sessão inteira falando da igreja porque devo ter sido educada a ponto de parecer interessada ou merecia ser convertida. Ainda me dá vontade de rir só de pensar que a pessoa mais carola que eu conheço no mundo também é a que mais vê gente pelada por minuto redondo. E ainda fica esfregando. Enfim sós. Eu ali em pé quase nua e a Verônica alisando a maca. Ela faz uma gracinha pra quebrar o gelo. A persiana fechada me blinda da janela indiscreta da Receita. Antes era virada pra um escritório. Antes era lá perto da Casan. Não que alguma vez a cortina estivesse aberta, mas sempre penso e se estivesse. Amaldiçoo em silêncio ter me despido rápido demais. Isso e o bolinho de carne de meia hora antes. Ela veste apressada um lençol descartável e muito fino de TNT na maca. Estende a toalha de rosto. Intuo que lavada duzentas vezes, com cloro. Áspera como de motel. Talvez pela mesma razão. Tem gente que prefere sem, ela diz. Eu não duvido. Nem me atrevo, Verônica, em negar essa esfoliação facial a seco oferecida de brinde. Subo descalça torcendo pra saírem os farelos de sandália do pé do dia inteiro nos dois degraus de madeira improvisados. Deito de bruços. E ali já sei que aquele bolinho ou o aipim de mais cedo me traíram na digestão. Só que agora só posso esperar um show de fogos ou um show de horror. Que não me espera. Acomodo a cara nesse grande donut encapado com a pequena lixa branca em formato de toalha. Álcool na mão. Álcool nos pés. Com algodão dessa vez. Ela tem método. O profissionalismo da Verônica exala do avental. Espio com metade de um ângulo um trabalhado no piso de cerâmica da sala. Metade de cada olho afofado nessa borda da maca. Cabelo preso. Não posso mais me mover. Verônica começa a operar seu milagre. Primeiro apóia duas mãos mornas, encremadas e lisas nas minhas costas e me balança curtinho como se ninando um neném. Um ritual. Não encontro meios tampouco circunstâncias para dizer que não não não pare com isso se o combinado era hora marcada para que sim sim sim e eu ainda vou pagar no fim. Sinto um calafrio que nasce do umbigo. Rapidamente desce para o ventre agora bastante esmagado contra o peso do meu corpo todo. A tração adicional do antebraço inteiro da Verônica sovando firme as minhas costas mais o peso da tensão. Logo eu que tinha receio das costas esfarelarem. Agora o medo é outro. E eu penso em dizer pare de uma vez por todas eu não vou suportar. E eu respiro fundo e aí penso que assim o ar vai se reorganizar com ainda menos espaço então eu devia era estar soprando. E eu contraio os esfíncteres e com eles os glúteos. Tão firme que ela me diz relaxa. E eu reclamo tímida que meus dedos do pé estão formigando e aí ela diz devo ter liberado um ponto perto do nervo este lado está mais difícil que do outro mas agora falta pouco. E de todas as tantas coisas que o meu corpo pode entregar e a quem (farelo lágrima muco cera leite sangue gozo suor e suor frio), um peido à Verônica nunca esteve nos meus planos. Tipo não mesmo. Em tempos de curandeiros e osteopatas, Verônica segue séria, firme e íntegra. Raiz. Não promete o que não cumpre. Sem placa na porta. A salinha alugada e a agenda cheia. Tudo no boca a boca. Tem nem Instagram. Atendimento VIP. Fora o que ela gasta em álcool. E tempo. E creme de cânfora e arnica. E cloro. Ela não merece isso. Rearranjo a cara outra vez contra a donutoalha como se o desconforto fosse mesmo esse e ela me diz quer um travesseirinho querida e eu digo não não, não precisa, enquanto penso que se for um peido mínimo pode que eu já tenha até soltado sem saber porque pra dentro é que ele não ia com esse apertamento todo que ela está me fazendo. E aimeudeuuuus se eu já tiver soltado sem perceber porque estou com a cara virada para o outro lado e talvez não tenha sentido. Minha nossa os que não fazem barulho são os que mais fedem o que é que eu vou fazer agora se tiver saído mas claro que não saiu ou eu saberia minha nossa como eu odeio ser louca. Tinha aquele colega da síndrome do intestino irritável que soltava a descarga um milissegundo depois de entrar no banheiro e aí pensava que disfarçava mas tinha barulho de descarga e de peido juntos na repartição e repartição é um nome engraçado para chamar a coisa pública onde às vezes muitas pessoas trabalham juntas sem divisórias exceto nos sanitários e aí eu penso detidamente na bunda. A bunda das pessoas. A minha bunda. A da Verônica. Este mecanismo feito para soltar e contrair coisas mas vento não, vento pode escapar se a gente é apertado onde não deve ou segura demais ou tem crise de riso. Logo eu que tenho um vasto histórico com isso que não me cheira nada bem vai mais oitocentos anos de terapia até chegar lá seja o que Freud quiser na fase em que ele quiser falar disso eu empaquei metaforicamente bem antes. E então me lembro de todas as histórias de peido possíveis e imagináveis e sinto vontade de rir mas não posso porque rir piora a vontade de peidar. E rezo a Deus, e prometo uma promessa, afinal estamos todos na quaresma, afinal estou na presença da beata Verônica, e no final rezo a mim mesma, e ao meu intestino, e rezo ao próprio peido para que não se esvaia em vapor e apelo a tudo de mais sagrado que eventualmente possa evitar esse constrangimento estrondoso e iminente que seria eu soltar um peido nessa sala tão bonita, privada e limpa. E que cheiro terá o meu peido misturado com esta arnica, jesusamado, só o capeta é que pode prever. E essa é a ideia mais insuportável entre todas. E então eu traço um plano de fuga e penso em sair correndo, agarrar apenas a blusa e a calça do cabideiro se conseguir, acomodá-las debaixo do meu sovaco esquerdo enquanto a mão direita avança contra o trinco da porta e aimeudeuuus se estiver trancada deve estar e as roupas ainda debaixo do meu sovaco eu pelada enquanto corro até o carro neste caso eu deixo as sandálias de brinde para a Verônica mesmo sabendo que nada nada nada vai indenizá-la o suficiente se isso acontecer ou aconteceu ou acontecerá um dia comigo ou qualquer outro cliente paciente sei lá como ela chama. Então Verônica suspira. E eu me pergunto se é porque farejou algo com a intuição ou se soltei o peido mesmo sem notar e ela quer acabar com o suplício logo ou se é só o cansaço do dia inteiro ou se ela de repente está liberando o ar para toda a podridão de dentro do meu ser ter espaço para se acomodar melhor a cliente em primeiro lugar você sabe como é o ar denso sobe ou desce eu já nem lembro mais das aulas de química uma hora dessas. E aí ela dá as últimas esfregadas a que chama manobras no meu pescoço teso e diz prontinho. Digo Obrigada Verônica Quanto eu te devo O pix ainda é o mesmo Sim sim é sim Pontual como sempre 20:33. Tchau, obrigada, a massagem tava boa sim, heheheh você é ótima. Pago em caroço nas costas pra que nunca mais se repita. Tratar aqui.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Sombroudúvida

Ontem quando você pegou minha contradição com a ponta dos dedos
e torceu
num beliscão
Foi bom de ver
Quantas coisas você guarda
Até não guardar mais

Ontem você quase me rasgou
Pelo bem geral da coerência
Como a uma folha de alface
que não sabe doer

E desde então
Tenho me dito
Todos os dias de manhã:
Pare um pouco de ser louca

Ainda que no dia seguinte
Possa acordar de novo com a pá virada
Bastando perenemente
que um movimento
A que chamarei
Gatilho; ou
Interruptor
Me revolucione
Ou me hormone
E eu vire ancinho

Aí você
Fica
Só fica
Impávido (resisto em dizer: colosso
E me salva
de novo
Da facilidade com que deixo tudo tudo pra trás
E esqueço
— a psicanálise dirá:
Reprimo —
De esquecer para não ter que lidar
Com isso

terça-feira, 18 de março de 2025

Camélia

O feminismo transita em rua mais ou menos estreita em que só passam três carros. Se houver um estacionado, necessariamente o centro terá que se deslocar um pouco para o lado — mas qual. E como. Além do que as ruas são muitas. E os estacionamentos, idem. Estamos sempre correndo o risco de rasgar nossas credenciais ou tê-las queimadas em praça pública em caso de colisão. Bum.
Trafegamos apressadas, atordoadas como as baratas — que agora temos que matar porque isso não é mais coisa de homem. Vou ligar o pisca-alerta para frear brusco, também eu, e me demorar aqui:
Coisa de homem.
Coisa de mulher.
Nesta rua estreita, estão veementemente proibidos de transitar estes conceitos.
Esvaziamo-los.
Mas o que fazer com o que sobra orbitando neste vazio do caminho, Senhor? Virar de volta, voltar pra casa, rogar toda manhã bem cedo em um café crendeuspai pelo encontro do varão clássico, provedor, pai de família?
Defendei-me.
Defendei-me também, porém, das tantas outras nuances e armadilhas, tão mais sutis que as coisas de homem e as coisas de mulher, obstaculizando a via enquanto este camburão com giroflex ligado em que plotaram em preto e negrito a palavra Evangelistão dirige à frente, interrompendo o fluxo dos nossos avanços.
Que falta faz conhecer bem o que é Cuidado. Conhecer como a gente se sente cuidada. Que falta faz dominar a contabilidade das compensações financeiras e afetivas neste livro-caixa que registra em uma coluna os desejos materiais e, em outra, os emocionais. E que diferença há entre eles, além deste fino traço vertical que os divide, imaginário como a fronteira entre o que é ser homem e o que é ser mulher?
A mim e meu teto de vidro, muita.
Pra ti bem menos.
O feminismo talvez seja este gato velho a que estimamos tanto mas que às vezes a gente se vê obrigada a tirar de cima da mesa mesmo sabendo que ele vai subir de novo, porque é da sua natureza. E tu este pássaro pseudo-selvagem, pseudo-exótico, com o teu hábito de só se ver capturada por trás do olhar do outro. A quem apagaram com borracha o traço vertical, transformando-o em horizontal — para se apoiar num fio fino e eletrônico em troca de conforto.
Conforto.
Esse predicado comum ao capital e, às vezes, ao amor.
Em ti o conforto se mistura, agora conhecido e novo, transformado em uma gratidão pela espécie de proteção. E aí o tesão pode estar onde a razão nunca estaria: não importa. O desejo desobedece às cartilhas. O gozo vira um pequeno lago de água parada no meio das dunas. E o que te interessa mais talvez sejam as dunas: conhecê-las, esquiá-las, fotografá-las. Sempre com a boca entreaberta e correndo o risco de entrar areia pelas frestas que se abriram — no rosto assimétrico, nas ideologias simétricas ou no vazio dos velhos conceitos. Assim como os tchecos podem eventualmente sentir um saudosismo militar que abominamos em vez da nostalgia da Primavera de Praga, que em fundamento também abominamos. Percebe? 
São tantas camadas nos ismos.
Na fauna da vida, querida, nos deparamos por estas estradas com o que julgávamos conhecer, mas também com pequenos axolotes alvos que parecem saídos de outras eras. Com os estranhamentos que não respeitam as paletas,
bandeiras,
as métricas
e estéticas
nem essa tua identidade visual em sépia, pretensiosa (e bastante retrô) como o Ph na palavra Farmácias nas embalagens bonitas da Granado.

sábado, 15 de março de 2025

Alcautraz [7]

Bem-vindos àquele que sequer deveria ser um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
Se de todas esta visita é a única que nos dispusemos a realizar furtiva no silêncio da madrugada não é à toa: o enclausurado que conheceremos a seguir, mesmo tão eloquente, apenas se move por entre as sombras obscuras do calar da noite
da memória
e da idealização.
Guarda-se voluntariamente num lugar ainda mais oculto que as celas convencionais, alguns andares abaixo do nível mais baixo até então conhecido. Para permanecer exigiu que construíssemos alçapões para acessar outros alçapões — detrás das lacunas do indizível. Não dura muito à luz. Guarda-se no escuro: como nas páginas de um livro fechado, clássico, há muito já lido, como no canto do fundo das estantes mais empoeiradas da erudição, como naquele vão estreito entre as pernas cruzadas de um sujeito que tenta evocar qualquer coisa de feminino enquanto, terrivelmente masculino, ajeita os óculos imitando toda uma classe de poetas românticos.
É o Lírico. Que pode percorrer qualquer latitude ou longitude, quadrimensional, e ainda assim parece conservar sua procedência de origem. Do afã pelo poético o Lírico veio,
às profundezas intocáveis do platônico
sempre retornará
enquanto o sol
nos salões
da razão
da superfície
continuar nascendo.
Até parece um vampiro:
de constâncias,
energias e
sanidade.
O Lírico nunca soube para onde vinha e nunca imaginou que se aprisionaria no Caulabouço da mansão, porque sua marca costumava ser (sabidamente condenado a) se repetir por todas as esquinas e vielas mais quentes do mundo, como as coxas das moças, numa busca incessante, equivocada e irrefreável pelo oposto, o frio
na barriga.
Ah, e por que veio parar aqui? Bem, quando abre a boca, enreda. É estranho admitir que, apesar de tanto conteúdo, sua sedução se restringe à forma — rigorosa, ritmada, por tantas vezes um retrato infiel. É assim que ele faz esquecer da qualidade ou verossimilhança de seu conteúdo
moral. Os perigos da convivência prolongada são ainda piores, então peço que não reclamem por termos de fazer este esforço para descer mais até encontrá-lo só por uns poucos segundos, tendo já que voltar brevemente. É sorte se pudermos lhe enxergar nesta escuridão, em paralelo às barras das grades.
É o último lance de escadas. Só mais quarenta e oito alçapões para nos esgueirarmos. Preparem suas miopias. Franzino, o Lírico tem a aparência de um L minúsculo. Ou a de um i maiúsculo, dependendo da perspectiva. Também por isso lhe apelidamos o Lírico: houvesse uma tabela periódica dos acautelados, o Lírico seria o Li, que tudo de mais majestoso já leu. Tomaria o lugar do lítio. O novo metal mais leve, dando peso (ou energia?) para corrigir os desequi-
Librios mentais, no ponto baixo ou na mania. Ou produzi-los. Dada sua forma fácil e delgada (que exigiu o desafio dos desafios para a prisão, mas não se sabe quando nem onde, só a história do que custou aos cauptores), é seu o nome que os outros presos repetem riscando pelas paredes em conjuntos: quatro verticais e um quinto horizontal diagonal atravessando os primeiros, registrando a cada dia uma esperança de Li-
bertação.
LiLi sabe cantar. É tão, tão fino e sutil que parece ter o poder de ficar invisível no espaço entre dois dedos unidos. Por aLi, escapa como um som. Se esconde. Ou pode ficar parado com os cotovelos rentes ao corpo, nas arestas, e se camuflar aLi para ouvir conversas. Pode rolar por baixo de todas as portas e invadir outros espaços. Sair, só sai por mau comportamento — já o fez duas vezes e, na última que lhe trouxeram para cá, encontraram-no sapateando uma sinfonia à cidade olhando para as estrelas no céu logo em cima da placa do teatro Rialto. Na primeira, cantava Odara.
Aqui, passa longos períodos mudo. Sem vê-lo, só se sente sua presença no mini-vão das pálpebras dos olhos fechados, nas cicatrizes dos pontos que fecharam grandes cirurgias, no formato do arrepio no pelo na pele ou na espinha. Outro dia se enfiou por dentro de MelancoLinha e não havia quem o tirasse da-
Li. Um conceito que se concebeu no mais puro ideal (mas somente ne-
Li) e, por isso, das ideias se retroa-
Limenta.
Quando menos se espera, sumiu outra vez.
Depois, também sem aviso, sobe pelo corredor das mãos ou se debate no corredor da garganta: é um vômito
soluço
evocação
Limbrança.
A volta dos que nunca (mais) Liram.
Quando encontrado, ninguém sabe ao certo se é o mesmo Lírico de sempre ou se o traço fez mitose, morreu apagado o primeiro e nasceu outro tracinho muito parecido para tomar-
Li o lugar.
Seja como for, o Lírico míngua quando a clareza entra. Isso é certo. Não dura muito à luz. Foi feito de não durar a cada nova manhã pois falt'
a
Li
consistência.
Sobram-lI estas vIsItas /

sexta-feira, 14 de março de 2025

Multi

versos

De que piada
Tu riu

Continuou ateu
Quando o avião caiu

O que é que ouviu
Quem te contou que errou

Quão inteira se manteve
A personagem que criou

terça-feira, 11 de março de 2025

375

Foi no momento em que o Arnaldo bostejou em público, em tom de troça e como quem não quer nada, que tinha de mim só a parte ruim de uma mulher liberada, que pela primeira vez eu me perguntei como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo. Um nome que não rima com nada (caldo? respaldo? bardo? enfim, nada de bom). Esta anti-poesia vocativa que conjurei na figura em carne e osso que me levou ao altar, com quem concebi as crianças, e que tantas vezes me atendia aos chamados no piloto automático, só de samba-canção e o cabelo sujo e desgrenhado vagando pelos corredores de nossa casa.
Como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo?
Os diabos mais assustadores se reuniram em conclave e me responderam, todos juntos, dando play a um filme que agora passa repetidamente pela minha cabeça. Passam vários, na verdade. A começar por todos aqueles aos quais o Arnaldo me levou para assistir no cinema com o Monza velho do pai dele na fase da conquista, trazendo consigo um bombom ou uma flor apanhada do quintal, como se os agrados fossem o ingresso para os amassos no banco de trás com vista para as estrelas que daríamos antes de me deixar em casa, de um jeito ou de outro. Passa o filme da primeira ida à casa de minha sogra, quando fui lavar a louça para impressionar e deixei os garfos e as facas apontados pra cima (como fazíamos em minha casa, para que quem fosse pegar para usar ou secar identificasse com facilidade) e a pobre da velha meteu a mão com força no escorredor e tomou um talho de todo tamanho no indicador, ficando com a marca até ontem. Passa o filme com narração na voz da amiga que primeiro me disse sem pestanejar: "Tu não queres o Arnaldo, Rute. Tu queres um Arnaldo imaginado, que só existiu na tua cabeça".
Em cada um destes momentos, eu poderia ter tido um ou dois pressentimentos sobre o futuro. Não tive. Sempre que penso neles parece ter sido outra vida. E pensando bem eu acho que foi.
Cabem diversas vidas na vida da gente — e muitas mais se soubermos absorver as que já estão postas por aí, escritas, interpretadas, cantadas, plantadas, ao redor. As plantas mesmo, por exemplo, ensinam muito a respeito do tempo da observação. Um bom jardineiro precisa aprender a observar as regas, os sóis, as luzes indiretas, as cochonilhas. Um exercício de paciência para que as queridas não morram — secas ou afogadas. Os bons escritores e artistas também precisam ser bons observadores, contemplativos, distantes, bons mandriões (ainda que isso lhes tire uma generosa fatia de tempo da ação em si).
E só se sabe se este não-trabalho valeu ao final, com a planta viçosa, a obra pronta.
É assim que me sinto agora, saindo do fórum com este papel na mão: com a obra pronta. E uma planta ainda por viçar.
Penso que sempre gostei tanto de ser espectadora porque tenho um pouco de preguiça, um pouco de medo e um pouco de fastio de contemplar o mundo, onde toda a matéria para a ficção está, assim como os remédios mais sintéticos advieram de uma planta (sim, que bênçãos são as plantas), um substrato, um fruto, algo em princípio completamente natural. Nos romances, o autor faz o favor de pré-observar o todo (com seu bocado de ócio), peneirar o que lhe interessa e nos entregar o ponto de vista pronto. E ainda que seja necessário digerir as questões postas à mesa, penso que esta parte prévia da observação já feita é uma etapa operacional que nos economiza muito. Sendo o mundo vasto como é, jamais teríamos tempo de viver todas as histórias que nos contaram para extrairmos dali a base de nossos conhecimentos.
Existe, porém, a inescapável perspectiva de que o que aprendemos vivendo é depreendido em nossos sentidos com muito maior eficácia e impacto do que o que nos é contado. No mais, eu sempre preferi estar em estado de perene comissão do que de omissão diante da minha vida. O que acabou por fazer com que eu sempre preferisse consumir mais do que produzir reflexões sobre o amor e os relacionamentos. O que eventualmente explica uma porção de decisões precipitadas, sobretudo em relação ao casamento, e alimentou a minha ansiedade — esta virtude de quem nunca para de pensar e age sem o tempo do amadurecimento das escolhas dentro da cabeça. O ócio que depura as conclusões sempre me pesou demais porque eu o confundia com solidão, com rejeição e com abandono. Esta assinatura no fim da sentença que agora carrego nas mãos faz lembrar que não estar em paz a sós, comigo mesma, fez de se casar tão cedo um excelente paliativo. Que agora se dissolve.
Digo isso querendo explicar que o projeto "Arnaldo" foi meu romance de formação.
Nesse romance de minha formação amorosa, se eu retomo as primeiras páginas, sei agora que quando nossa história começou eu não tinha sequer as ferramentas para avaliar no sexo masculino o que eu poderia eventualmente desgostar. Sim, sabia o que me agradava, e por este pacote pensei que fosse intrínseco o preço do que podia detestar. Eu não havia ainda observado... na verdade, eu sequer havia tido o tempo de maturar a observação de que no mundo há homens que precisam muito de uma mulher que lhes diga a hora de ir para casa, para então poderem reclamar do quanto ela é controladora, para jamais confessarem que no fundo se sentem regozijados de que alguém zele por seu cronograma diário, sua saúde e sua presença. Mulheres com quem farão fotos profissionais de má vontade e a cara emburrada com ou sem a mão em suas barrigas. Homens que se beneficiarão da premissa de que os homens são mais visuais do que táteis sempre que puderem. E que lentamente vão se tornando conhecedores deste saber inato da cartilha dos grandes gestos canastrões, como presentear com o maior buquê de toda a floricultura e achar que isso basta — até porque às vezes realmente basta, mas a mim, nunca.
Penso que o automático da vida que se seguiu depois daquele riscado pueril que cumprimos sem racionalizar nada foi, gradualmente, apagando da minha cabeça os contornos do fato de que o Arnaldo não tem um dente, por exemplo. O Arnaldo não tem um dente. Dá pra imaginar? Nunca marcou dentista por conta própria. Adia tudo para ter a adrenalina do deadline. Faz barulho quando mastiga. Separa as cebolinhas no prato. Não come polenta. Certezas que eu guardei como um tesouro e que poderiam ter se modificado, bastaria ele querer.
Ele nunca quis.
Querer, noto agora, é que é o fundamental.
Ainda é assombroso me dar conta de que talvez, não muito distante deste momento em que se apaga socialmente com uma borracha poderosa a última linha do vínculo em que nos uníamos, eu possa olhar em retrospectiva antes de me reconciliar com o passado e enxergar tão nítido, de um jeito mesmo muito claro, que passei metade da minha vida com um homem chamado Arnaldo, cujo nome já não me diz coisa alguma, e que hoje não passa de um calveludo derrisório que muito me prometia algo que deixou de se cumprir entre nós. A quem jamais deixou de bastar um ar blasé de profundidade dentro do que é mais superficial, eternamente sem o ônus que a profundidade real implicaria, ou seja, um homem que faz parecer que seu drink favorito é O Holandês Voador porque ouviu as composições de Wagner, mas seu leitmotiv é apenas e tão somente o doce do energético.
Não sou boa de ambientação (porque tudo me acontece dentro), mas é preciso dizer que hoje faz sol. Um sol que ensolara o meu futuro desconhecido. Estou saindo deste estado civil de atrelada-ao-Arnaldo com o passo firme em direção ao amanhã e ao meu carro estacionado. O mesmo carro que me levará para a minha casa, onde a partir de hoje só eu decidirei o que fazer. Estou concentrada apenas em calcular que o salto do meu sapato se ancore bem no meio das pedras do pátio desse prédio público onde estão as pessoas que divorciam, cobram, prendem, assinam, burocratizam. Quanto a mim, quero contemplar. Desburocratizar. Saindo daqui, quero abrir
as pernas
para o mundo.
Vou dar
pra mim —
Vou dar.
Pra mim. —
a melhor parte
da mulher liberada
que sempre fui.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Avenca

Teu choro é feito da certeza muito dura que amoleceu.
De rompante, como parecem amolecer as certezas duras.
Como quando se rompe uma dura camada de gelo fino: sempre foi água.
Tem um pragmatismo que ainda balbucio em te dizer com a voz firme e seca estes aforismos. Pra ti empresto a confiança que nem tenho e vamos ver no que dá esse microarrependimento por talvez ter dito demais logo depois. Por não ter sido sensível que chega na intenção de compensar os teus excessos. Que são tantos, agora. Valei-me. Que foram tantos, desde sempre, mas até antes tinhas uma certeza
tão, tão dura.
Agora a vida é cem por hora,
mole
e sem freio.
Quando alguém pede ajuda pra segurar o volante, a prudência recomenda não fazer curva. É manter centrado. Retilíneo, constante, duas mãos, uniforme e em velocidade de cruzeiro um ponto norte desse veículo descarrilhado — digo assim, com o h no meio — que de fora, lamento mas não informo, também parece a tua vida.
Digo só que vai passar, sim, vai passar, não vai ser ileso, vai passar como passa o tempo, lento ou de golpe, vai passar quer queira quer não, vai passar e a que custo, vai passar, mas agora ainda não passou, eu sei, sinto que preciso apenas te dar o imperativo e absoluto de uma certeza de que vai.
Tento ser fria e dura para compensar teu tanto desaguar em rimas pobres, previsíveis e certeiras de primeira conjugação.
Não estou rindo, vou dizer isso como um alívio cômico no meio de tanta crueza que eu tenho oferecido pra te dar onde se segurar: o filme do ano ainda vai ser por uns bons anos a anatomia dessa merda. Não, ninguém vai entender como se deu o amolecimento daquela certeza, a dureza de depois, a queda, o como. Não, a memória olfativa não vai mais ser afetiva. Não, o que se sentiu com os ouvidos não garante nada. Essa tua obra nunca mais será um primor aclamado por público e crítica. Vai ser no máximo um Duna 2, vamos dizer assim, foi bom, sim, até foi bom, terminou muito injustiçado, toque o que toque a banda de Hans Zimmer fica agora só o barulho desse silêncio de não-aplauso pelos cantos desta casa — que já não é mais inteiramente de ninguém depois de subirem os créditos e se estabelecerem as responsabilidades pelos débitos.
Espero que entenda que esse meu jeito imbecil de te ensinar a colar a cara depois de quebrá-la em muitos pedaços é o único que conheço. Dei pra oferecer entre as sabedorias aquelas mais rústicas: garanto que vais endurecer de novo, essa mágoa vai secar. Agora acelera. Começa. Lava essa cara na pia. Ri um pouco. Dá. Dessensibiliza. Recomeça. Te desmistura. Se apressa em te transformar lubrificada dessa água e sal, senão enferruja. O melhor sabão de casa é feito de óleo velho.