terça-feira, 11 de março de 2025

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Foi no momento em que o Arnaldo bostejou em público, em tom de troça e como quem não quer nada, que tinha de mim só a parte ruim de uma mulher liberada, que pela primeira vez eu me perguntei como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo. Um nome que não rima com nada (caldo? respaldo? bardo? enfim, nada de bom). Esta anti-poesia vocativa que conjurei na figura em carne e osso que me levou ao altar, com quem concebi as crianças, e que tantas vezes me atendia aos chamados no piloto automático, só de samba-canção e o cabelo sujo e desgrenhado vagando pelos corredores de nossa casa.
Como diabos eu fui parar casada com um cara chamado Arnaldo?
Os diabos mais assustadores se reuniram em conclave e me responderam, todos juntos, dando play a um filme que agora passa repetidamente pela minha cabeça. Passam vários, na verdade. A começar por todos aqueles aos quais o Arnaldo me levou para assistir no cinema com o Monza velho do pai dele na fase da conquista, trazendo consigo um bombom ou uma flor apanhada do quintal, como se os agrados fossem o ingresso para os amassos no banco de trás com vista para as estrelas que daríamos antes de me deixar em casa, de um jeito ou de outro. Passa o filme da primeira ida à casa de minha sogra, quando fui lavar a louça para impressionar e deixei os garfos e as facas apontados pra cima (como fazíamos em minha casa, para que quem fosse pegar para usar ou secar identificasse com facilidade) e a pobre da velha meteu a mão com força no escorredor e tomou um talho de todo tamanho no indicador, ficando com a marca até ontem. Passa o filme com narração na voz da amiga que primeiro me disse sem pestanejar: "Tu não queres o Arnaldo, Rute. Tu queres um Arnaldo imaginado, que só existiu na tua cabeça".
Em cada um destes momentos, eu poderia ter tido um ou dois pressentimentos sobre o futuro. Não tive. Sempre que penso neles parece ter sido outra vida. E pensando bem eu acho que foi.
Cabem diversas vidas na vida da gente — e muitas mais se soubermos absorver as que já estão postas por aí, escritas, interpretadas, cantadas, plantadas, ao redor. As plantas mesmo, por exemplo, ensinam muito a respeito do tempo da observação. Um bom jardineiro precisa aprender a observar as regas, os sóis, as luzes indiretas, as cochonilhas. Um exercício de paciência para que as queridas não morram — secas ou afogadas. Os bons escritores e artistas também precisam ser bons observadores, contemplativos, distantes, bons mandriões (ainda que isso lhes tire uma generosa fatia de tempo da ação em si).
E só se sabe se este não-trabalho valeu ao final, com a planta viçosa, a obra pronta.
É assim que me sinto agora, saindo do fórum com este papel na mão: com a obra pronta. E uma planta ainda por viçar.
Penso que sempre gostei tanto de ser espectadora porque tenho um pouco de preguiça, um pouco de medo e um pouco de fastio de contemplar o mundo, onde toda a matéria para a ficção está, assim como os remédios mais sintéticos advieram de uma planta (sim, que bênçãos são as plantas), um substrato, um fruto, algo em princípio completamente natural. Nos romances, o autor faz o favor de pré-observar o todo (com seu bocado de ócio), peneirar o que lhe interessa e nos entregar o ponto de vista pronto. E ainda que seja necessário digerir as questões postas à mesa, penso que esta parte prévia da observação já feita é uma etapa operacional que nos economiza muito. Sendo o mundo vasto como é, jamais teríamos tempo de viver todas as histórias que nos contaram para extrairmos dali a base de nossos conhecimentos.
Existe, porém, a inescapável perspectiva de que o que aprendemos vivendo é depreendido em nossos sentidos com muito maior eficácia e impacto do que o que nos é contado. No mais, eu sempre preferi estar em estado de perene comissão do que de omissão diante da minha vida. O que acabou por fazer com que eu sempre preferisse consumir mais do que produzir reflexões sobre o amor e os relacionamentos. O que eventualmente explica uma porção de decisões precipitadas, sobretudo em relação ao casamento, e alimentou a minha ansiedade — esta virtude de quem nunca para de pensar e age sem o tempo do amadurecimento das escolhas dentro da cabeça. O ócio que depura as conclusões sempre me pesou demais porque eu o confundia com solidão, com rejeição e com abandono. Esta assinatura no fim da sentença que agora carrego nas mãos faz lembrar que não estar em paz a sós, comigo mesma, fez de se casar tão cedo um excelente paliativo. Que agora se dissolve.
Digo isso querendo explicar que o projeto "Arnaldo" foi meu romance de formação.
Nesse romance de minha formação amorosa, se eu retomo as primeiras páginas, sei agora que quando nossa história começou eu não tinha sequer as ferramentas para avaliar no sexo masculino o que eu poderia eventualmente desgostar. Sim, sabia o que me agradava, e por este pacote pensei que fosse intrínseco o preço do que podia detestar. Eu não havia ainda observado... na verdade, eu sequer havia tido o tempo de maturar a observação de que no mundo há homens que precisam muito de uma mulher que lhes diga a hora de ir para casa, para então poderem reclamar do quanto ela é controladora, para jamais confessarem que no fundo se sentem regozijados de que alguém zele por seu cronograma diário, sua saúde e sua presença. Mulheres com quem farão fotos profissionais de má vontade e a cara emburrada com ou sem a mão em suas barrigas. Homens que se beneficiarão da premissa de que os homens são mais visuais do que táteis sempre que puderem. E que lentamente vão se tornando conhecedores deste saber inato da cartilha dos grandes gestos canastrões, como presentear com o maior buquê de toda a floricultura e achar que isso basta — até porque às vezes realmente basta, mas a mim, nunca.
Penso que o automático da vida que se seguiu depois daquele riscado pueril que cumprimos sem racionalizar nada foi, gradualmente, apagando da minha cabeça os contornos do fato de que o Arnaldo não tem um dente, por exemplo. O Arnaldo não tem um dente. Dá pra imaginar? Nunca marcou dentista por conta própria. Adia tudo para ter a adrenalina do deadline. Faz barulho quando mastiga. Separa as cebolinhas no prato. Não come polenta. Certezas que eu guardei como um tesouro e que poderiam ter se modificado, bastaria ele querer.
Ele nunca quis.
Querer, noto agora, é que é o fundamental.
Ainda é assombroso me dar conta de que talvez, não muito distante deste momento em que se apaga socialmente com uma borracha poderosa a última linha do vínculo em que nos uníamos, eu possa olhar em retrospectiva antes de me reconciliar com o passado e enxergar tão nítido, de um jeito mesmo muito claro, que passei metade da minha vida com um homem chamado Arnaldo, cujo nome já não me diz coisa alguma, e que hoje não passa de um calveludo derrisório que muito me prometia algo que deixou de se cumprir entre nós. A quem jamais deixou de bastar um ar blasé de profundidade dentro do que é mais superficial, eternamente sem o ônus que a profundidade real implicaria, ou seja, um homem que faz parecer que seu drink favorito é O Holandês Voador porque ouviu as composições de Wagner, mas seu leitmotiv é apenas e tão somente o doce do energético.
Não sou boa de ambientação (porque tudo me acontece dentro), mas é preciso dizer que hoje faz sol. Um sol que ensolara o meu futuro desconhecido. Estou saindo deste estado civil de atrelada-ao-Arnaldo com o passo firme em direção ao amanhã e ao meu carro estacionado. O mesmo carro que me levará para a minha casa, onde a partir de hoje só eu decidirei o que fazer. Estou concentrada apenas em calcular que o salto do meu sapato se ancore bem no meio das pedras do pátio desse prédio público onde estão as pessoas que divorciam, cobram, prendem, assinam, burocratizam. Quanto a mim, quero contemplar. Desburocratizar. Saindo daqui, quero abrir
as pernas
para o mundo.
Vou dar
pra mim —
Vou dar.
Pra mim. —
a melhor parte
da mulher liberada
que sempre fui.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Avenca

Teu choro é feito da certeza muito dura que amoleceu.
De rompante, como parecem amolecer as certezas duras.
Como quando se rompe uma dura camada de gelo fino: sempre foi água.
Tem um pragmatismo que ainda balbucio em te dizer com a voz firme e seca estes aforismos. Pra ti empresto a confiança que nem tenho e vamos ver no que dá esse microarrependimento por talvez ter dito demais logo depois. Por não ter sido sensível que chega na intenção de compensar os teus excessos. Que são tantos, agora. Valei-me. Que foram tantos, desde sempre, mas até antes tinhas uma certeza
tão, tão dura.
Agora a vida é cem por hora,
mole
e sem freio.
Quando alguém pede ajuda pra segurar o volante, a prudência recomenda não fazer curva. É manter centrado. Retilíneo, constante, duas mãos, uniforme e em velocidade de cruzeiro um ponto norte desse veículo descarrilhado — digo assim, com o h no meio — que de fora, lamento mas não informo, também parece a tua vida.
Digo só que vai passar, sim, vai passar, não vai ser ileso, vai passar como passa o tempo, lento ou de golpe, vai passar quer queira quer não, vai passar e a que custo, vai passar, mas agora ainda não passou, eu sei, sinto que preciso apenas te dar o imperativo e absoluto de uma certeza de que vai.
Tento ser fria e dura para compensar teu tanto desaguar em rimas pobres, previsíveis e certeiras de primeira conjugação.
Não estou rindo, vou dizer isso como um alívio cômico no meio de tanta crueza que eu tenho oferecido pra te dar onde se segurar: o filme do ano ainda vai ser por uns bons anos a anatomia dessa merda. Não, ninguém vai entender como se deu o amolecimento daquela certeza, a dureza de depois, a queda, o como. Não, a memória olfativa não vai mais ser afetiva. Não, o que se sentiu com os ouvidos não garante nada. Essa tua obra nunca mais será um primor aclamado por público e crítica. Vai ser no máximo um Duna 2, vamos dizer assim, foi bom, sim, até foi bom, terminou muito injustiçado, toque o que toque a banda de Hans Zimmer fica agora só o barulho desse silêncio de não-aplauso pelos cantos desta casa — que já não é mais inteiramente de ninguém depois de subirem os créditos e se estabelecerem as responsabilidades pelos débitos.
Espero que entenda que esse meu jeito imbecil de te ensinar a colar a cara depois de quebrá-la em muitos pedaços é o único que conheço. Dei pra oferecer entre as sabedorias aquelas mais rústicas: garanto que vais endurecer de novo, essa mágoa vai secar. Agora acelera. Começa. Lava essa cara na pia. Ri um pouco. Dá. Dessensibiliza. Recomeça. Te desmistura. Se apressa em te transformar lubrificada dessa água e sal, senão enferruja. O melhor sabão de casa é feito de óleo velho.