sábado, 30 de novembro de 2024

Cativo [11]

Viver junto é um ato de coragem. Na prática, os atos de coragem são menos melífluos do que nos romances por escrito. Se os casamentos tivessem um Globo Repórter só para eles, poderíamos colaborar contando como o nosso vive e do que tem se alimentado: tempo e espaço. O tempo para os detritos e sedimentos se assentarem de novo no fundo de nós, subvertendo com calma a agitação confusa de não saber. E o espaço de nos reinventarmos para além de sermos um casal. Tática e estratégia de um teatro mágico: “Ser mais eu contigo / Para que me queiras”.
Será que um dia seremos tragados pelo excesso de massa como o buraco negro de nossos estômagos ansiosos pelo hambúrguer do domingo? Saudável, sim, quero ter saúde, mas o que é afinal que isso significa? Saudável como o alface murcho, rejeitado dentro da marmita quente e rápida da semana, pedido só pra cumprir tabela? Não. Prefiro enfiado no pão carne e queijo para umedecer o lanche ou fresco e picado, cheio de molhos e toppings. Quero lembrar que o nosso é um amor saudável escolhido a dedo no meio de um buffet gourmet, jamais esquálido. E quando algo indigesto nos voltar do estômago (eu sei, morar comigo é ter que lidar com nata demais), que a gente encontre de novo magnésias de esquecimento no fundo da bolsa, com gosto de uma cura amena que abrande as queimações de sermos dois inteiros aprendendo - ainda, sempre - a conviver, conversar e digerir.
Vou bendizer os dias de almoço e janta minimalista como a nossa decoração com o máximo de personalidade, amor. Estou sussurrando uma promessa daqui pra lá na tua boca adormecida tão perto da minha com um ar pesado: posso desaparecer? Ser sugada. Te invadir. Me misturar. Desaparecer. Não morrer, não. Não separar, não comprar cigarros e nunca mais voltar. Quero desaparecer um pouco. De novo. Dentro de ti. Nesse vão oco e morno que se estabelece a cada vez que abro a boca com um hálito de fome de qualquer coisa. Desaparecer. Um peso inteiro dos significados desta palavra que anuncia que, furtivamente como aconteceu pouco mais de quatro anos atrás, algo também pode sumir. Desaparecer um pouco - mas reaparecer do teu outro lado, brincadeira boba de criança que cutuca o ombro contrário já tendo atravessado por trás da vista. Já que viver junto é um ato de coragem. E de confiança. E de humor. Só posso te prometer para os próximos quatro anos ser sempre um pouco mais corajosa e um pouco mais confiável. E bem humorada. Mignon com Alfredo ou mel com queijo, não importa. Somos uma combinação improvável. Que apetece o meu apetite. Dia depois de dia me comprometo a aprender a me saciar, descansar e contemplar. Ao teu lado, mas não só: de novo de frente pra ti.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Alcautraz [4]

Bem-vindos ao nem sempre animado tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Depois das tonturas causadas pela aproximação com a cela de Dona Redoma, o convite para visitar as masmorras vem agora acompanhado da exigência de menos pressa e de mais contexto. Visitas mais exclusivas, feitas de uma contemplação mastigada para facilitar a digestão. Para que os organismos se habituem com leveza aos piores perigos e não sucumbam a eles. Qualquer preso daqui em diante é bastante caupaz de dementar um punhado grande de (ou toda a) energia que ilumina e dá força ao Caustelo ao menor deslize.
Todos eles, mas especialmente os seguintes, deste ponto até o fundo, esperam ávidos por uma brecha que lhes facilite a fuga. Teme-se, inclusive, que alguns deles possam ser caupazes de uma espécie de transfusão de almas com o visitante pouco alerta ou, na pior hipótese, inconsciente. Aconselha-se, portanto, que os senhores cauminhem em silêncio. Sem dar-lhes muita prosa, sem muito riso à toa, sem muita deferência. Ouçam bem e acreditem. Perguntas ao final. Por precaução, vistam logo as máscauras de gás e evitem a paralisação completa de seus sistemas.
O barulho de motor que vem da cela com aviso luminoso na parede, um cone na frente e esta fita listrada de preto e amarelo anunciando uma poça de sangue escorrendo por baixo da porta é do Trânsito. Um serial killer. Muito muito muito mau e outro tanto necessário, o Trânsito oferece o risco sempre iminente de uma colisão, um choque, um atropelamento, um perigo fatal: cachorro surdo, criança atrás de bola, motoqueiro na contramão, idosa de bengala, ciclista em cima da pista, camionete no centro da cidade, baliza com gente olhando, caminhoneiro virado de rebite, notificação no celular, arrombado que não dá seta, cruzamento no semáforo, pista recém molhada de chuva, serra sem sinal, GPS mandando pra rua sem saída, um grave problema mecânico ou uma ultrapassagem na curva. Nunca se sabe. Não há cautela nem direção defensiva suficientes para afastar os horrores do Trânsito, suspeitado, necessariamente sempre à espreita.
Quando criança, o Trânsito matava crianças que andavam de bicicleta morro abaixo no bairro. Nunca via nenhuma dando marcha à ré, sempre lhe faltavam os freios, nunca lhe eram confiáveis os retrovisores. O Trânsito sempre andou pelas sombras dos pontos cegos. Quando adolescente, foi vítima de suas próprias necessidades de locomover-se - para o lazer, pior. Nos ônibus, o Trânsito se escondia embaixo do assento de qualquer dos bancos do meio para a frente - do lado do motorista, pior. O Trânsito já era perigoso com gente amiga - na carona de desconhecido, pior. O Trânsito nos feriados ou fins de semana sempre envolvia muita bebida e, quanto mais bebida, menor o reflexo - e quanto menor o reflexo, pior. Foi assim que o Trânsito se tornou um dos piores de todos aqui.
Quando foi trazido para cá, já tinha caurro próprio. Fingiu que não tinha mais perigo em arranhar ou colidir um veículo que não fosse seu e, minimamente diminuídas suas forças, foi finalmente detido. Mas essa máscaura não lhes foi oferecida à toa. Ainda emana do Trânsito um vapor barato e inebriante de combustível, como o que se sente nos postos de gasolina. Quem inala até imagina, mas se deixa seduzir pelo ar envenenado das promessas de chegar mais rápido e mais longe. O Trânsito tem um cheiro forte, muito característico, que mistura pré e pós combustão. Como é necessário atravessar esta cela para ir adiante, na memória olfativa do visitante é este cheiro que exala de todos os caundenados mais antigos. Parece com liberdade.
Mas olhem bem ao redor, senhores. Nada parece menos com liberdade do que este Caulabouço.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Bege opaco

Morro de medo de embotar todinha ou de desbotar. Quando eu crescer mais, quero ser muito mais interessante. Rechaçar e capturar olhares de admiração ou assombro, nunca indiferença. Sacudir o tapete bege opaco de uma madame e estar, empoeirada, embaixo dele, varrida para longe dos tons pastéis cuja sobriedade é ardilosa. A vida só me vale se for vívida. O que tende a ser pelo menos um pouco insuportável de vez em quando. Compele-me a conservar um jeito anárquico de estender as roupas no varal. Acender um cigarro ou outro - só sei fumar pouco e com o pé deitado sobre o joelho. E apagar um porre ou outro - até que adquira a cirrose ou a tolerância de um fígado que processe todas as tantas lacunas de calmaria de que são feitas as histórias. Quebro essa taça em ondas de som de um riso estridente (caótico, anedótico) que grita como se avisasse para que eu nunca nunca enlouqueça ou me satisfaça calada, tediosa, neurótica. Faço voltarem secos ao porão dos meus dutos lacrimais um funeral metafórico ou mais. E hei de vez em quando tornar o implícito explícito. Como se da boca não me estivesse saindo uma atrocidade, um arrependimento ou uma amarra. Armo, então, o salseiro que eu quero. Visto roxo com amarelo. Um decote profundo. Eu pago de louca se a dívida houver sido contraída em marasmos. São todos jeitos de pintar arabescos muito coloridos na tela às vezes pálida de mim.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Des mots

Acordei perturbada de sonhar que pedalava morro acima e morro abaixo a barra-circular roxa e sem adesivos da minha adolescência para um lugar proibido em que se chegava rápido porque, na hora de voltar, os pneus estavam furados. Precisava de carona. Sozinha não conseguia. As palavras haviam todas sumido das placas de retorno, que agora não indicavam nada. Roí as unhas tão rápido quanto se fosse a primeira tarefa do dia. Roí as unhas tão fundo que sangrei na espera do lado da estrada. Roí as unhas tão na carne que parecia roer a carne. Placas para lugar nenhum. Nas quais poderia antes estar escrito o nome próprio da enfermeira que primeiro elogiou a veia azul que salta grossa do dorso da minha mão. Ou um conselho: defina-se menos pelo seu trabalho. Ou um ditado impopular: onde se ganha o pão não se escreve os livros. Ou, na encruzilhada: quem é Borges na fila do Y? Ou, para alertar do radar de velocidade: invejas que nunca foram. Grafitado o desenho de um dedo enfiado num copo de água fervendo. A pata de um coelho. Um laço enterrado na grama e, ao lado dele, um pé de laços. Bittersweet. Furta-cor. A Torre de Sauron. Um aviso de obra de riosulense. Uma cabeça girando feito centrífuga. Este espaço gasto no teclado em que se bate repetidamente o canto do polegar e se poderia também, tranquilamente, bater a cabeça. Até sangrar um sorriso tímido que não mostra os dentes. Placas para lugar nenhum. A caminho de um lugar onde nunca mais se chega. Mas do qual, enfim, nunca se saiu. Quando acordei as palavras voltaram


a dizer




                                        pare.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Alcautraz [3]

Bem-vindos ao já tradicional tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Vamos andando um pouco mais depressa, chop-chop, acelerem o passo. Vou começar as explicações de onde paramos da última vez.
Na cela em frente do Aproveitador, repousa nesse colchonete fino o Cidadão Encostado. O Cidadão Encostado é um bicho-papão com o qual fui assustada desde menina, e que se provou muito pior do que as piores estórias que me contaram. Ele nunca trabalhava e, quando acontecia de ocorrer, era com muita má vontade. Estava sempre indisposto, morto de preguiça, exaurido de nascença. Transmorfo e coberto com capuz, nunca se vê a sua face. De modo que pode ter a cara de um pobre sem determinação (como nas estórias), ou a de um rico que se esgueire pelos barrancos da própria riqueza (descobri depois), ou também a de quem lhe vê enquanto fantasia com a Mega-Sena (nunca se sabe).
Faz fofoca, grade a grade, com um outro exemplar de semelhante envergadura, excepcionalmente aprisionado dentro de uma caixa de fósforos, para otimizar espaço: O Pequeno Poderoso. Seu vulgo naturalmente foi cunhado à imagem e semelhança dO Pequeno Príncipe, mas não é bem desta realidade mágica que saiu a personagem. A aventura que apraz aO Pequeno Poderoso não é cativar rosas e raposas ou fazer viagens interplanetárias, mas sim mandar. Exercer o domínio de seu território, menor que seja ele. Aliás, quanto menor pior. O Pequeno Poderoso é minúsculo em sua pequeneza, do tamanho de metade de uma pulga. Adora ser o detentor da informação, adora dizer: não!, adora insistir que faltou um documentozinho de nada. Gosta de negar passagem, de não permitir o acesso, de exigir mais um carimbo, de mandar refazer. Se recusa a permitir o que recomendaria o bom senso pelo simples prazer de fantasiar com uma grandeza das atribuições que lhe foram conferidas.
No 2x2 seguinte, o Legpress-que-desaba. Como seu batismo sugere, trata-se da máquina em 45º que deixa o corpo - embora refém - tonificado da cintura para baixo. Sorrateiro, está sempre prestes a deixar este mesmo segmento corporal totalmente sem movimentos por um dano vertebral irreversível. É um perigo iminente do qual pouca gente se dava conta, e só foi aprisionado aqui depois de ser televisionado. Sua presença calada (é pior em movimento) dá uma espécie de calafrio quente. Um calaquente. Suado de academia, ainda por cima. Sentiram? Por favor, firmem bem as pernas em sua presença e jamais afrouxem um segundo perto dele. Quanto mais se anda por estes corredores, senhores, mais se está suscetível aos mistérios escondidos de cada um de seus prisioneiros.
O Legpress-que-desaba faz parede-meia com a cela da nêmesis do exercício físico: a Paneladepressão. Às vezes no cotidiano do Caustelo se engendra um megabanquete e, sem notar, volta-se aqui para buscá-la, levando-a para a cozinha, mesmo sem entender muito bem o seu funcionamento e tendo-se ciência de que está sempre prestes a explodir. Paneladepressão cozinha em lágrimas e fogo lento o sabor de uma melancolia que amolece fácil e se sente na boca com a textura da fumaça que lhe escapa pela válvula da tampa. Foi enclausurada cometendo delitos coordenados com uma prima, a Colherdeansiedade. Esta, porém, escapou da caustódia no primeiro mês e vive num quarto espaçoso e confortável nas gavetas dos andares aí de cima, sob o álibi de que é capaz de ajudar na produtividade. Parecem um pouco fisicamente, na matéria de que são feitas, mas variam na contenção de mililitros. Os efeitos de seus poderes são diversos. A periculosidade da Paneladepressão, ao que se conta, é muito maior.
Mais adiante no corredor, à direita, vemos Mau Humor de Fome. Que por sua vez não tem gênero. Aparenta ser apenas um estômago murcho, mas é detentor de toda a ira que pode caber na mansão da minha caubeça. Mau Humor de Fome some umas três vezes ao dia e aparata em cada canto da própria cela sempre que lhe negligenciam demais. Não é difícil combater, tal qual se faz a um bebê, mas demorou que se descobrisse o seu contrafeitiço, também tal qual se faz a um bebê: só fica inofensive quando lhe dão alimento. Quando assume a forma do Buchinho Cheio, não há mais o que temer.
Por falar nisso, estamos chegando à cela da Dona Redoma. Muito magra e asseada, arqueada como uma bruxa, sorridente como uma fada, veste um xale sobre os ombros feito de pano muito quente. A Dona Redoma tem um talento especialíssimo: fazer de conta que o que lhe desagrada não aconteceu. Não fala a respeito até que quem está ao redor chegue a duvidar da própria sanidade. Justo por tais aptidões e influência na psique alheia, foi transferida para cá de seu asilo breve em Arkhaum com recomendações de que se mantivesse a segurança máxima. Descende de uma longa linhagem de protetores de reputações. É ultrapreocupada, sobretudo, com o que os outros pensarão do que se diz e faz nas salas do Caustelo. A preocupação é tanta que chega a se estender ao que se faz aqui embaixo. De modo que ela é a mais contrariada de todos os presos com o inventário que estamos fazendo e com estas visitas guiadas, que sempre dão a conhecer nuances, verdades escondidas e desconfortos (segundo ela, vergonhosos, segundo ela, muito mais do que o aceitável em qualquer Caulabouço). Se dependesse da Dona Redoma, tudo aqui ficaria reprimido: sem conhecimento público, sem a luz do sol, sem rótulo, sem o constrangimento das confissões e - especialmente - sem o risco das maledicências. Provoca em quem se aproxima dela um remorso incontornável e paralisante.
Chegar perto me deu vertigem. Meia volta, volver.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Desilusão

Queria ser bailarina. Se tivesse podido escolher, talvez houvesse usado collants e sapatilhas para viver muito mais do que parido e ensinado. Os cinco filhos que gerei, os netos que vieram depois e ajudei ativamente a criar, os afilhados que nos deram a batizar e os alunos a quem dei a conhecer e a disciplina. Guardam em si partículas minhas que, de tão embaralhadas, agora quase se dissolvem. A todos distribuí generosas parcelas de minha alegria vivaz, mas também de meu tímido ressentimento por ter nascido em certa condição de minha época.
Nasci pobre e nobre. E mulher.
Estudei. Rezo muito. Aprendi quase tudo que eu sei com a escassez órfã do Colégio. A ter bons modos. A ler. A ser cordial. A regressar ao interior daqueles velhos hábitos de nosso tempo sem saber que voltava destinada às coincidências do estudo e das escolhas que em toda a minha vida dali por diante não pareceram mais exatamente escolhas, mas sentenças que me foram dadas a cumprir. E eu cumpri bem. O melhor que posso.
Não houvesse sido eu a primogênita, teria viajado o mundo: conhecido a Itália, minha nossa!, sobretudo a minha amada Itália. Para tomar vinhos ainda melhores do que os que fazia Papai e me assombrar sorridente com todas as belezas. A elas responder no dialeto que me ensinaram em casa. Queria ter entendido antes que podia subverter a ordem das coisas que me foram oferecidas como se fossem dádivas. Que podia ficar em meia ponta. Partir para longe, estendida em pose. Viver aventuras. Ter e contar, também eu, novidades de encher os olhos daquela minha irmã. Distribuir em público pliés delicados e graciosos em vez de me curvar ao que me esperava: um casamento em estado bruto. Não sei quanto mais de prazer e contentamento com a vida teria se tivesse sabido que o sexo não é sórdido e os homens não são necessariamente sujos.
Não me entenda mal, eu sou muito feliz. Eu só não fui bailarina. Disso tenho certeza. E se olho à frente agora há muito menos do que o que já ficou pra trás. O que já foi faz coreografia dentro da minha cabeça. Primeiro foge para a coxia, depois o fato me volta num giro. Rodopia. Recordo sem muita linearidade se almocei ou se devo cozer o almoço, embora ainda queira visitar aquela minha amiga. Que já morreu? Como assim, morreu? Tenho a impressão de que essa informação me é novidade. Não me contaram uma porção de coisas e, por alguma razão, saber delas me chateia mais do que anima, porque me olham como se eu já devesse saber. Mais uma das minhas obrigações.
Prefiro digerir calada. É o tempo de que, deitada aqui, eu me pergunte se a pele lisa e clara que me cobre a barriga e a parte do peito que nunca vê o sol também poderia cobrir, alva, o meu corpo inteiro, se eu tivesse sido bailarina. Meus braços teriam a pele fina e macia? O rosto menos manchado. Foi sempre no quintal escaldante do meio-dia que me encontrei com meus pensamentos e sonhos, agora um tanto distantes. 
De dentro dos teatros, em cima dos palcos, prestes à plateia e às palmas, eu teria qualquer espécie de saudade de enfiar minhas mãos neste solo da terra escura onde me criei? Será que eu sentiria alguma falta de aguar as plantas com o regador verde, se não as tivesse, da minha máquina de costura, se ela nunca tivesse sido vermelha, de arrancar as ervas, se pelo meio não crescessem daninhas, de plantar filhas vivas para agora colher estes cuidados em revezamento? Fazem, sim, o melhor que podem. Muito me orgulham. Quase me escapa que divirjam tanto entre si e tentem controlar meus hábitos e até as economias. O que eu certamente não admito, se me dão a saber.
E por que agora me olha com espanto essa cunhada a quem de bom grado mostro minhas artes recentes e os pensamentos que escrevi no verso? Volto aqui em seguida para dar-lhe a chance de reagir melhor. E depois outra vez. E depois mais outra. Quatro vezes ou mais, num ciclo que se repete invisível misturado nas veias que carregam o sangue inescapável de minha família, e se entrelaçam com os meus nervos, que por sua vez fazem dança no meu cérebro. De tanto viver
envelhecer
e demenciar
quase sem lembrar
de que um dia haveremos todos de morrer.

Só sei que nunca fui bailarina. A juventude não chegou a me dar uma ilusão verossímil de que poderia tudo, mas a velhice ainda assim me desilude
até me esquecer
até
de tudo que não pude.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Azul com marrom

O menino brincando sozinho, chutando uma bola contra um muro. A força com que o muro lhe devolve a sua própria força. No tempo do possível, educado, ele recolhe a bola pra que o carro passe, sabedor dos perigos do mais forte. Ferragens vidros e rodas contra menino, os ossos e a bola. Um pouco de ternura. Outro de comiseração. Na rádio, Ney Matogrosso cantando o que o professor da faculdade cantarolava pela primeira vez na frente daqueles slides quinze anos atrás: mirem-se no exemplo / daquelas mulheres / de Atenas.

Um dia haveremos de saber como se dá a evocação futura de um momento que parecia trivial. Este arranjo improvável de não-amnésias, até que a memória nos falhe.

Quando em vez os portais da cabeça se abrem para que determinadas coisas entrem e fiquem. E depois voltem. Noutras elas batem no muro do cotidiano repetido de outro dia, só mais uma semana.

Enquanto vive, a gente nunca sabe que está vivendo uma coisa à toa da qual vai se lembrar pelo resto da vida.