Bem-vindos ao já tradicional tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Vamos andando um pouco mais depressa, chop-chop, acelerem o passo. Vou começar as explicações de onde paramos da última vez.
Na cela em frente do Aproveitador, repousa nesse colchonete fino o Cidadão Encostado. O Cidadão Encostado é um bicho-papão com o qual fui assustada desde menina, e que se provou muito pior do que as piores estórias que me contaram. Ele nunca trabalhava e, quando acontecia de ocorrer, era com muita má vontade. Estava sempre indisposto, morto de preguiça, exaurido de nascença. Transmorfo e coberto com capuz, nunca se vê a sua face. De modo que pode ter a cara de um pobre sem determinação (como nas estórias), ou a de um rico que se esgueire pelos barrancos da própria riqueza (descobri depois), ou também a de quem lhe vê enquanto fantasia com a Mega-Sena (nunca se sabe).
Faz fofoca, grade a grade, com um outro exemplar de semelhante envergadura, excepcionalmente aprisionado dentro de uma caixa de fósforos, para otimizar espaço: O Pequeno Poderoso. Seu vulgo naturalmente foi cunhado à imagem e semelhança dO Pequeno Príncipe, mas não é bem desta realidade mágica que saiu a personagem. A aventura que apraz aO Pequeno Poderoso não é cativar rosas e raposas ou fazer viagens interplanetárias, mas sim mandar. Exercer o domínio de seu território, menor que seja ele. Aliás, quanto menor pior. O Pequeno Poderoso é minúsculo em sua pequeneza, do tamanho de metade de uma pulga. Adora ser o detentor da informação, adora dizer: não!, adora insistir que faltou um documentozinho de nada. Gosta de negar passagem, de não permitir o acesso, de exigir mais um carimbo, de mandar refazer. Se recusa a permitir o que recomendaria o bom senso pelo simples prazer de fantasiar com uma grandeza das atribuições que lhe foram conferidas.
No 2x2 seguinte, o Legpress-que-desaba. Como seu batismo sugere, trata-se da máquina em 45º que deixa o corpo - embora refém - tonificado da cintura para baixo. Sorrateiro, está sempre prestes a deixar este mesmo segmento corporal totalmente sem movimentos por um dano vertebral irreversível. É um perigo iminente do qual pouca gente se dava conta, e só foi aprisionado aqui depois de ser televisionado. Sua presença calada (é pior em movimento) dá uma espécie de calafrio quente. Um calaquente. Suado de academia, ainda por cima. Sentiram? Por favor, firmem bem as pernas em sua presença e jamais afrouxem um segundo perto dele. Quanto mais se anda por estes corredores, senhores, mais se está suscetível aos mistérios escondidos de cada um de seus prisioneiros.
O Legpress-que-desaba faz parede-meia com a cela da nêmesis do exercício físico: a Paneladepressão. Às vezes no cotidiano do Caustelo se engendra um megabanquete e, sem notar, volta-se aqui para buscá-la, levando-a para a cozinha, mesmo sem entender muito bem o seu funcionamento e tendo-se ciência de que está sempre prestes a explodir. Paneladepressão cozinha em lágrimas e fogo lento o sabor de uma melancolia que amolece fácil e se sente na boca com a textura da fumaça que lhe escapa pela válvula da tampa. Foi enclausurada cometendo delitos coordenados com uma prima, a Colherdeansiedade. Esta, porém, escapou da caustódia no primeiro mês e vive num quarto espaçoso e confortável nas gavetas dos andares aí de cima, sob o álibi de que é capaz de ajudar na produtividade. Parecem um pouco fisicamente, na matéria de que são feitas, mas variam na contenção de mililitros. Os efeitos de seus poderes são diversos. A periculosidade da Paneladepressão, ao que se conta, é muito maior.
Mais adiante no corredor, à direita, vemos Mau Humor de Fome. Que por sua vez não tem gênero. Aparenta ser apenas um estômago murcho, mas é detentor de toda a ira que pode caber na mansão da minha caubeça. Mau Humor de Fome some umas três vezes ao dia e aparata em cada canto da própria cela sempre que lhe negligenciam demais. Não é difícil combater, tal qual se faz a um bebê, mas demorou que se descobrisse o seu contrafeitiço, também tal qual se faz a um bebê: só fica inofensive quando lhe dão alimento. Quando assume a forma do Buchinho Cheio, não há mais o que temer.
Por falar nisso, estamos chegando à cela da Dona Redoma. Muito magra e asseada, arqueada como uma bruxa, sorridente como uma fada, veste um xale sobre os ombros feito de pano muito quente. A Dona Redoma tem um talento especialíssimo: fazer de conta que o que lhe desagrada não aconteceu. Não fala a respeito até que quem está ao redor chegue a duvidar da própria sanidade. Justo por tais aptidões e influência na psique alheia, foi transferida para cá de seu asilo breve em Arkhaum com recomendações de que se mantivesse a segurança máxima. Descende de uma longa linhagem de protetores de reputações. É ultrapreocupada, sobretudo, com o que os outros pensarão do que se diz e faz nas salas do Caustelo. A preocupação é tanta que chega a se estender ao que se faz aqui embaixo. De modo que ela é a mais contrariada de todos os presos com o inventário que estamos fazendo e com estas visitas guiadas, que sempre dão a conhecer nuances, verdades escondidas e desconfortos (segundo ela, vergonhosos, segundo ela, muito mais do que o aceitável em qualquer Caulabouço). Se dependesse da Dona Redoma, tudo aqui ficaria reprimido: sem conhecimento público, sem a luz do sol, sem rótulo, sem o constrangimento das confissões e - especialmente - sem o risco das maledicências. Provoca em quem se aproxima dela um remorso incontornável e paralisante.
Chegar perto me deu vertigem. Meia volta, volver.