terça-feira, 12 de novembro de 2024

Des mots

Acordei perturbada de sonhar que pedalava morro acima e morro abaixo a barra-circular roxa e sem adesivos da minha adolescência para um lugar proibido em que se chegava rápido porque, na hora de voltar, os pneus estavam furados. Precisava de carona. Sozinha não conseguia. As palavras haviam todas sumido das placas de retorno, que agora não indicavam nada. Roí as unhas tão rápido quanto se fosse a primeira tarefa do dia. Roí as unhas tão fundo que sangrei na espera do lado da estrada. Roí as unhas tão na carne que parecia roer a carne. Placas para lugar nenhum. Nas quais poderia antes estar escrito o nome próprio da enfermeira que primeiro elogiou a veia azul que salta grossa do dorso da minha mão. Ou um conselho: defina-se menos pelo seu trabalho. Ou um ditado impopular: onde se ganha o pão não se escreve os livros. Ou, na encruzilhada: quem é Borges na fila do Y? Ou, para alertar do radar de velocidade: invejas que nunca foram. Grafitado o desenho de um dedo enfiado num copo de água fervendo. A pata de um coelho. Um laço enterrado na grama e, ao lado dele, um pé de laços. Bittersweet. Furta-cor. A Torre de Sauron. Um aviso de obra de riosulense. Uma cabeça girando feito centrífuga. Este espaço gasto no teclado em que se bate repetidamente o canto do polegar e se poderia também, tranquilamente, bater a cabeça. Até sangrar um sorriso tímido que não mostra os dentes. Placas para lugar nenhum. A caminho de um lugar onde nunca mais se chega. Mas do qual, enfim, nunca se saiu. Quando acordei as palavras voltaram


dizendo




                                        pare.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Alcautraz [3]

Bem-vindos ao já tradicional tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Vamos andando um pouco mais depressa, chop-chop, acelerem o passo. Vou começar as explicações de onde paramos da última vez.
Na cela em frente do Aproveitador, repousa nesse colchonete fino o Cidadão Encostado. O Cidadão Encostado é um bicho-papão com o qual fui assustada desde menina, e que se provou muito pior do que as piores estórias que me contaram. Ele nunca trabalhava e, quando acontecia de ocorrer, era com muita má vontade. Estava sempre indisposto, morto de preguiça, exaurido de nascença. Transmorfo e coberto com capuz, nunca se vê a sua face. De modo que pode ter a cara de um pobre sem determinação (como nas estórias), ou a de um rico que se esgueire pelos barrancos da própria riqueza (descobri depois), ou também a de quem lhe vê enquanto fantasia com a Mega-Sena (nunca se sabe).
Faz fofoca, grade a grade, com um outro exemplar de semelhante envergadura, excepcionalmente aprisionado dentro de uma caixa de fósforos, para otimizar espaço: O Pequeno Poderoso. Seu vulgo naturalmente foi cunhado à imagem e semelhança dO Pequeno Príncipe, mas não é bem desta realidade mágica que saiu a personagem. A aventura que apraz aO Pequeno Poderoso não é cativar rosas e raposas ou fazer viagens interplanetárias, mas sim mandar. Exercer o domínio de seu território, menor que seja ele. Aliás, quanto menor pior. O Pequeno Poderoso é minúsculo em sua pequeneza, do tamanho de metade de uma pulga. Adora ser o detentor da informação, adora dizer: não!, adora insistir que faltou um documentozinho de nada. Gosta de negar passagem, de não permitir o acesso, de exigir mais um carimbo, de mandar refazer. Se recusa a permitir o que recomendaria o bom senso pelo simples prazer de fantasiar com uma grandeza das atribuições que lhe foram conferidas.
No 2x2 seguinte, o Legpress-que-desaba. Como seu batismo sugere, trata-se da máquina em 45º que deixa o corpo - embora refém - tonificado da cintura para baixo. Sorrateiro, está sempre prestes a deixar este mesmo segmento corporal totalmente sem movimentos por um dano vertebral irreversível. É um perigo iminente do qual pouca gente se dava conta, e só foi aprisionado aqui depois de ser televisionado. Sua presença calada (é pior em movimento) dá uma espécie de calafrio quente. Um calaquente. Suado de academia, ainda por cima. Sentiram? Por favor, firmem bem as pernas em sua presença e jamais afrouxem um segundo perto dele. Quanto mais se anda por estes corredores, senhores, mais se está suscetível aos mistérios escondidos de cada um de seus prisioneiros.
O Legpress-que-desaba faz parede-meia com a cela da nêmesis do exercício físico: a Paneladepressão. Às vezes no cotidiano do Caustelo se engendra um megabanquete e, sem notar, volta-se aqui para buscá-la, levando-a para a cozinha, mesmo sem entender muito bem o seu funcionamento e tendo-se ciência de que está sempre prestes a explodir. Paneladepressão cozinha em lágrimas e fogo lento o sabor de uma melancolia que amolece fácil e se sente na boca com a textura da fumaça que lhe escapa pela válvula da tampa. Foi enclausurada cometendo delitos coordenados com uma prima, a Colherdeansiedade. Esta, porém, escapou da caustódia no primeiro mês e vive num quarto espaçoso e confortável nas gavetas dos andares aí de cima, sob o álibi de que é capaz de ajudar na produtividade. Parecem um pouco fisicamente, na matéria de que são feitas, mas variam na contenção de mililitros. Os efeitos de seus poderes são diversos. A periculosidade da Paneladepressão, ao que se conta, é muito maior.
Mais adiante no corredor, à direita, vemos Mau Humor de Fome. Que por sua vez não tem gênero. Aparenta ser apenas um estômago murcho, mas é detentor de toda a ira que pode caber na mansão da minha caubeça. Mau Humor de Fome some umas três vezes ao dia e aparata em cada canto da própria cela sempre que lhe negligenciam demais. Não é difícil combater, tal qual se faz a um bebê, mas demorou que se descobrisse o seu contrafeitiço, também tal qual se faz a um bebê: só fica inofensive quando lhe dão alimento. Quando assume a forma do Buchinho Cheio, não há mais o que temer.
Por falar nisso, estamos chegando à cela da Dona Redoma. Muito magra e asseada, arqueada como uma bruxa, sorridente como uma fada, veste um xale sobre os ombros feito de pano muito quente. A Dona Redoma tem um talento especialíssimo: fazer de conta que o que lhe desagrada não aconteceu. Não fala a respeito até que quem está ao redor chegue a duvidar da própria sanidade. Justo por tais aptidões e influência na psique alheia, foi transferida para cá de seu asilo breve em Arkhaum com recomendações de que se mantivesse a segurança máxima. Descende de uma longa linhagem de protetores de reputações. É ultrapreocupada, sobretudo, com o que os outros pensarão do que se diz e faz nas salas do Caustelo. A preocupação é tanta que chega a se estender ao que se faz aqui embaixo. De modo que ela é a mais contrariada de todos os presos com o inventário que estamos fazendo e com estas visitas guiadas, que sempre dão a conhecer nuances, verdades escondidas e desconfortos (segundo ela, vergonhosos, segundo ela, muito mais do que o aceitável em qualquer Caulabouço). Se dependesse da Dona Redoma, tudo aqui ficaria reprimido: sem conhecimento público, sem a luz do sol, sem rótulo, sem o constrangimento das confissões e - especialmente - sem o risco das maledicências. Provoca em quem se aproxima dela um remorso incontornável e paralisante.
Chegar perto me deu vertigem. Meia volta, volver.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Desilusão

Queria ser bailarina. Se tivesse podido escolher, talvez houvesse usado collants e sapatilhas para viver muito mais do que parido e ensinado. Os cinco filhos que gerei, os netos que vieram depois e ajudei ativamente a criar, os afilhados que nos deram a batizar e os alunos a quem dei a conhecer e a disciplina. Guardam em si partículas minhas que, de tão embaralhadas, agora quase se dissolvem. A todos distribuí generosas parcelas de minha alegria vivaz, mas também de meu tímido ressentimento por ter nascido em certa condição de minha época.
Nasci pobre e nobre. E mulher.
Estudei. Rezo muito. Aprendi quase tudo que eu sei com a escassez órfã do Colégio. A ter bons modos. A ler. A ser cordial. A regressar ao interior daqueles velhos hábitos de nosso tempo sem saber que voltava destinada às coincidências do estudo e das escolhas que em toda a minha vida dali por diante não pareceram mais exatamente escolhas, mas sentenças que me foram dadas a cumprir. E eu cumpri bem. O melhor que posso.
Não houvesse sido eu a primogênita, teria viajado o mundo: conhecido a Itália, minha nossa!, sobretudo a minha amada Itália. Para tomar vinhos ainda melhores do que os que fazia Papai e me assombrar sorridente com todas as belezas. A elas responder no dialeto que me ensinaram em casa. Queria ter entendido antes que podia subverter a ordem das coisas que me foram oferecidas como se fossem dádivas. Que podia ficar em meia ponta. Partir para longe, estendida em pose. Viver aventuras. Ter e contar, também eu, novidades de encher os olhos daquela minha irmã. Distribuir em público pliés delicados e graciosos em vez de me curvar ao que me esperava: um casamento em estado bruto. Não sei quanto mais de prazer e contentamento com a vida teria se tivesse sabido que o sexo não é sórdido e os homens não são necessariamente sujos.
Não me entenda mal, eu sou muito feliz. Eu só não fui bailarina. Disso tenho certeza. E se olho à frente agora há muito menos do que o que já ficou pra trás. O que já foi faz coreografia dentro da minha cabeça. Primeiro foge para a coxia, depois o fato me volta num giro. Rodopia. Recordo sem muita linearidade se almocei ou se devo cozer o almoço, embora ainda queira visitar aquela minha amiga. Que já morreu? Como assim, morreu? Tenho a impressão de que essa informação me é novidade. Não me contaram uma porção de coisas e, por alguma razão, saber delas me chateia mais do que anima, porque me olham como se eu já devesse saber. Mais uma das minhas obrigações.
Prefiro digerir calada. É o tempo de que, deitada aqui, eu me pergunte se a pele lisa e clara que me cobre a barriga e a parte do peito que nunca vê o sol também poderia cobrir, alva, o meu corpo inteiro, se eu tivesse sido bailarina. Meus braços teriam a pele fina e macia? O rosto menos manchado. Foi sempre no quintal escaldante do meio-dia que me encontrei com meus pensamentos e sonhos, agora um tanto distantes. 
De dentro dos teatros, em cima dos palcos, prestes à plateia e às palmas, eu teria qualquer espécie de saudade de enfiar minhas mãos neste solo da terra escura onde me criei? Será que eu sentiria alguma falta de aguar as plantas com o regador verde, se não as tivesse, da minha máquina de costura, se ela nunca tivesse sido vermelha, de arrancar as ervas, se pelo meio não crescessem daninhas, de plantar filhas vivas para agora colher estes cuidados em revezamento? Fazem, sim, o melhor que podem. Muito me orgulham. Quase me escapa que divirjam tanto entre si e tentem controlar meus hábitos e até as economias. O que eu certamente não admito, se me dão a saber.
E por que agora me olha com espanto essa cunhada a quem de bom grado mostro minhas artes recentes e os pensamentos que escrevi no verso? Volto aqui em seguida para dar-lhe a chance de reagir melhor. E depois outra vez. E depois mais outra. Quatro vezes ou mais, num ciclo que se repete invisível misturado nas veias que carregam o sangue inescapável de minha família, e se entrelaçam com os meus nervos, que por sua vez fazem dança no meu cérebro. De tanto viver
envelhecer
e demenciar
quase sem lembrar
de que um dia haveremos todos de morrer.

Só sei que nunca fui bailarina. A juventude não chegou a me dar uma ilusão verossímil de que poderia tudo, mas a velhice ainda assim me desilude
até me esquecer
até
de tudo que não pude.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Azul com marrom

O menino brincando sozinho, chutando uma bola contra um muro. A força com que o muro lhe devolve a sua própria força. No tempo do possível, educado, ele recolhe a bola pra que o carro passe, sabedor dos perigos do mais forte. Ferragens vidros e rodas contra menino, os ossos e a bola. Um pouco de ternura. Outro de comiseração. Na rádio, Ney Matogrosso cantando o que o professor da faculdade cantarolava pela primeira vez na frente daqueles slides quinze anos atrás: mirem-se no exemplo / daquelas mulheres / de Atenas.

Um dia haveremos de saber como se dá a evocação futura de um momento que parecia trivial. Este arranjo improvável de não-amnésias, até que a memória nos falhe.

Quando em vez os portais da cabeça se abrem para que determinadas coisas entrem e fiquem. E depois voltem. Noutras elas batem no muro do cotidiano repetido de outro dia, só mais uma semana.

Enquanto vive, a gente nunca sabe que está vivendo uma coisa à toa da qual vai se lembrar pelo resto da vida.