domingo, 27 de outubro de 2024

Cativo [10]

Lamento informar que antes essas fatias de queijo velho vão esverdear de vez do que voltarão a ser moles. Claro que eu também detesto desperdiçar comida, não é disso que se trata. Você devia agradecer pelo meu pragmatismo em não deixar nada ficar podre. É o mesmo sangue frio com que eu me rebelo em causa própria, realizo que os panos de louça não são lavados há três meses, alimento com antecipação a lista de mercado e troco as toalhas de banho. Se disser que eu também procrastino eu vou mentir que é mentira. Aproveita e marca logo aquele dentista. Somadas todas as reclamações de influência na piora dos hábitos de higiene bucal dava tempo até de tratar teu canal. Concordamos: não existe megera no masculino. Não que eu seja. Nem que eu não seja. Ao menos empreendo esforços anti-tirânicos. Um dia eu vou descobrir a razão de não saber encontrar as palavras certas pra te apaziguar daquela pira, amor. Será que é porque nossos dramas divergem muito? Será que me falta dedicação ou repertório? Será que eu nasci mais needy e menos keeper? Isso se aprende se houver prática? Que tal praticar e absorver o meu exemplo de que tudo bem gritar gol na festa lotada? Também o de dar as respostas rápidas quando forem inconvenientes contigo pra não me encher as orelhas com a versão tardia que acaba vindo a galope ou sobre rodas. Liga, liga outra vez esse DragonBall. Repete. Vou decorar a musiquinha de abertura e achar boa. Repito. Acertou em cheio no FireStick sim. Pros canais piratas não vou dar o braço a torcer em voz alta. Em voz alta só te declamo aquele poema de uma golfada só sobre eu querer ter alma de artista, e na verdade ter, e na verdade ter duas, e na verdade ter duas que fazem forças dentro de mim. Por isso às vezes a minha alma trans as bordas. E encho os olhos de lágrimas. E tu concordas que devem ser a TPM e a ressaca juntas mas ainda assim diz que achou legal, ahã, achou sim. Na manhã seguinte, me devolves o amor-idílio que sussurra que tudo está bem quando algo parece não estar. Esse apoio tem a ver com o funcionamento do (nosso) mundo. Ajuda a força da gravidade a às vezes me manter segura, repousada, fixa, calma. Eu preciso de muitas coisas, você nota? Eu abro muitas frentes e abas. Me faz companhia? Assiste deitado na tua rede mental enquanto eu dou voltas muito rápidas atrás do meu próprio rabo só por saber que tem a tua água fresca pra hidratar outro descanso: é um porto, ouvido, quentura, afago delicado. Um misto quente - e bem recheado.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Ressentidas

Oh, você se aborreceu?
Imagina eu

Quão asceta
precisei
Ser enquanto você era,
Hedonista,
E firmar meu pulso
enquanto você derretia
Nas faltas,
prantos,
beiços
O corpo mole
A carne flácida das bochechas
E outras encrencas mais

Que direi eu?
Que acumulo, quieta, pilhas de consequências
Do que te devia dizer
Quem não diz
Porque também não tem o corpo firme
Ou ainda me pede roteiro

Oh, de repente me aborreci também!
Estou aborrecida a prestação
Um pouco mais a cada semana
Apagando (com mangueira de jardim
Incêndios que estão para fazer aniversário

Tu não te queimas?
Olha em volta
Tudo pega fogo
- inclusive o teu segundo pé -
e não te queimas?

Te limitas a ter mágoas
E ressenti-las?

Quando é que em dobro
me poderás
dar a experimentar
as novas alegrias?

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Cativo [9]

Toma aqui uma dose desse meu mau humor que vem da contratura muscular que eu confundo com cálculo renal sem aceitar um Dorflex sequer. Na volta eu rego tua plantinha do sucesso me tornando especialista em minibotânica só pra essa semana gastarmos juntos o tempo em atualizações sobre all hands, calls, one to ones e o que mais a cartilha proporcionar mais o vale-alimentação. Estou te ouvindo. Não sei cantar nem uma inteira do Paul, vamos chamar esta de uma heresia de Aquiles, mas eu bato palmas no ritmo, capricho nos uhus de cada deixa e no penteado descolado de improviso, mexo a boca direitinho no verso antes do refrão e me visto de preto pra te acompanhar de novo e pensar em lagartear conforme prometido, My valentine, enquanto eu Let ‘em in na fila do banheiro químico. Pode colecionar estas tuas fichas gastas, eu dirijo na volta. Mas podes decidir mais por conta própria qual a melhor bolsa, que no lugar da pochete servem bem estas duas camisetas belíssimas, falar com 4 policiais ou mais e fazer outro TCC sobre mobilidade urbana na capital, se a gente sentir que precisa? Não, não prometo não ser mais terraplanista das baterias de lítio. Não encosta nesse meu celular carregando. Mas pode escolher almoçar este arroz empaçocado com alga e peixe cru e achar bom, sim. Desde que respire fundo e coma aquela sopa com tripa uma vez por ano. E tire o brinco uma vez por mês. E dance dois em dois comigo na quinta música depois que o salão for aberto. Te aproxima de onde eu venho pra rimar com quem eu fui primeiro que eu faço uau pra um itinerário em círculo enquanto pesco um molhinho e quatro rodelas de salsicha nesse mar de cebola, também. Quem sabe treinando assim eu exercite aquela lealdade de ficar mais quieta. Sem dizer em voz alta que agora temos os amigos que sabem e fingem que não ou não ligam, os que não sabem mas pensam que sabem, e os que não sabem e se soubessem não acreditariam. Eu prefiro os primeiros, mas eu sou suspeita. Agora fica parado. Vou passar de novo a mão nas tuas costas lisas enquanto as pontas das orelhas despontam através do teu cabelo enrolado e crescido. Movo o pé até encaixar no teu, mesmo com essas unhas. Te acho tão bonito olhando daqui que até te peço pra mergulhar de novo só pra registrar cores de corpo-jambo no verde-água embaixo de céu-azul. Respinga em mim, amor. Me refresca de saber que eu posso desejar tudo que eu quiser contigo. Melhor ainda se fizer questão. Depois cerca com flores esse espaço largo que me dás pra que eu seja eu. Sim, podemos mesmo coexistir nestas diferenças que, se parar pra pensar no ângulo certo, nos enriquecem. Nos fazem o que tu chamou anteontem de peculiares e eu achei engraçado mas não ri o quanto devia. Sedimentei tantas fendas e picos para tantas direções e tu chegaste tão imenso de macio, encostando no que é pontiagudo de mim com tanto cuidado. Tentando preencher o resto caudalosamente. Exige mais que eu concordo, eu devo te dar. Quero te dar. Vamos aterrando o fim dessa Arco-Íris que agora vai dar na rodovia pra ela nos trazer mais rápido pra casa. As costas me doem um pouco de ficar na mesma posição, parada. Só que eu ainda prefiro o carro contigo de copiloto, o sofá contigo em suspensão de descrença e essa cama contigo acordado - ou roncando, até chegar amanhã cedo e podermos trabalhar de novo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Alcautraz [2]

Bem-vindos a mais um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Outra imperdível oportunidade de acompanhar os trabalhos iniciais da gerência na elaboração de uma espécie de inventário dos prisioneiros - o que, com sorte, futuramente possibilitará categorizar e apinhar em apenas quatro grandes celas os Traumas junto com os Traumas, Ojerizas com Ojerizas, Paranoias com Paranoias, Medos com Medos. Para quem sabe então estabelecer a contento o grau de suas periculosidades individuais, para quem sabe então ressocializá-los com maior frequência e efetividade ao invés de simplesmente trancafiá-los aqui por anos para ir administrando com terapia um por um, quadrilha por quadrilha.
O desafio é saber como isso será, ao final, possível. Os esforços, porém, são intensos. A começar porque há nesta instituição penitenciária um rígido e curioso método na recepção dos caulouros. Porque não se pode revistá-los por muito tempo no momento da caustódia, sob pena de que algum deles tenha o poder sobrenatural de contaminar tudo ao seu redor (e além disso teme-se que sejam os novatos capazes de incitar a fúria dos mais antigos), os que chegaram por último sempre ocupam as primeiras celas, mais pra frente de quem entra. De modo que são alimentados com comida mais fresca. Este esforço em série de realocação para as celas seguintes, necessário de tempos em tempos, faz com que os mais antigos acabem se tornando também os mais pros-fundos.
Pode até não parecer às vezes, mas a rotina diária entre todos eles é até que harmoniosa, embora burocrática, e acredita-se que quando finalmente for possível entender a que classe cada qual dos presos pertence, e estiverem todos acomodados com seus pares, será possível criar pequenas comunidades autogeridas e sustentáveis. Possivelmente os momentos de recreação também se tornem mais fáceis, pois se saberá qual sentinela por em guarda para que não escapem todos juntos nem ateiem fogo no Caustelo inteiro, fazendo dele O Caustelo de Traumas, ou O Caustelo de Ojerizas, ou etc. É pela escrita que eles se banham no sol. Vamos andando, por favor.
Aqui à direita, ainda mais pro começo do corredor, logo após o Classe Média Típico e a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, há duas celas gêmeas nas quais estão acomodadas as Filípicas. As Filípicas são duas lobismulheres de garras afiadas sempre cuidadosamente pintadas de renda ou, no máximo, uma francesinha. É comum vê-las lendo e comentando com fervor um livro de aventuras sangrentas que sempre carregam debaixo dos braços. Quem as vê de dia imagina que sejam exatamente iguais às mulheres ditas comuns: têm TPM, ambição, vaidades, defeitos, desejos lascivos, invejas grandes e pequenas. Mas elas supõem que são diferenciadas, praticamente uma casta à parte. E em toda lua cheia, e às vezes nem precisa ser lua nem cheia, mudam de forma para a Tá-Amarrado version, quando começa a lhes escorrer uma baba do canto da boca enquanto vociferam sobre o que lhes desagrada e uivam juízos de valor sobre como os outros presos (e principalmente as outras presas), justamente porque não leem o livro de aventuras comum às duas, comportam-se muito mal e elas bem. As Filípicas são arquirrivais das Fadas Ceticínicas - mas isso é outra história.
À esquerda, em uma cela ampla e bem iluminada, acomoda-se o Preferidor de Pets. Embora nitidamente bípede, teima em tentar andar com o apoio também das mãos, para simular um trote em quatro patas. Pouco se sabe sobre ele até o momento, além de que é muito verde e nunca teve filhos. Filhote de Figueiredo, ele repete em público que os hábitos, o afeto e até o cheiro de qualquer bicho é melhor do que o dos seres humanos. Em desastres naturais, quaisquer causas de caridade e até para justificar a própria ausência nas atividades comuns, o Preferidor de Pets está sempre pensando primeiro nos animais que estão lá fora, ó, pobres coitados, verbalizando de vez em quando estar incomodado que o Caulabouço não esteja adaptado e equipado para eles.
Na cela seguinte, o Aproveitador. Uma criatura em formato da cara do cara e coroa, inclusos os louros presos aos cabelos, só que inteiro feito de madeira e com marcas de esganação na altura do pescoço, o que faz com que alguns o chamem pelas costas também de Esganado. Talvez o que de mais característico se possa dizer acerca do Aproveitador é que ele não deixa nenhuma oportunidade passar. Se deixar, ele se aproveita - inclusive das coroas. O Aproveitador foi preso aqui porque ele não perdoa um real, mas também não devolve o troco a maior. Em relação a ele não se deve contar com bom senso nem espírito de comunidade. Não reparte nem os cabelos. Sempre que pode, ele aproveita para cobrar de maneira vexatória os seus devedores, exigindo-lhes juros altos e a desgraça pública. Reclama sempre do que lhe dão a menos: pode ser um centavo, uma atenção ou uma ervilha.
Toca a sirene. Fim do passeio. Circulando, deu por hoje.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Alcautraz

Bem-vindos a um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Uma vez ao mês ou mais, abrimos visitas guiadas até este subterrâneo sujo e escuro onde se ocultam Traumas-Ojerizas-Paranoias-e-Medos da pior espécie
para espiar como se comportam,
expiar os que se comportam e
alimentar com mão amiga todos os outros pelas frestas estreitas que se abrem horizontais até detrás das portas de ferro cerradas deste corredor extenso, enegrecido por paredes de pedra e limo.
Atrás destas grades estão personagens quase mitológicos, cujas estórias excêntricas de seus nascimentos são repetidas à exaustão, quase sempre por meio de anedotas, nos encontros festivos e outros nem tanto promovidos nos salões iluminados da superfície do Caustelo - tanto, até ganharem contornos muito duros, adicionando-lhes supostos poderes mágicos, sobrenaturais, tirânicos, por vezes muito diferentes do que possam ter sido em sua forma original.
Daí a importância das visitas periódicas: para enxergá-los de novo olhos nos olhos, frente a frente, no que tiverem de real. Encontrá-los in persona tira da narrativa o poder de incitar o ódio ou o escárnio pelo que nem são, pelo que nem foram, ou por aquilo que somente se tornaram por terem sido trancados neste porão. Mas descer as escaudas e permitir visitação de tempos em tempos também pode fomentar um abolicionismo penal às avessas. Às vezes vê-los tão de perto acaba fazendo concordar mais com a medida drástica de aprisioná-los para que não circulem livremente à luz do dia.
Certamente a mais emblemática entre eles é a Fantasma da Franja Curta, também chamada simplesmente de A Moderna. Pode ser vista a qualquer hora do dia ou da noite, sempre causando uma espécie de assombro. Foi uma das que chegou por último. É a única que não tem endereço definido entre as celas - porque vaga diáfana, etérea, capaz de atravessar todo o cáurcere incitando rebeldias variadas dos outros detentos, lembrando-lhes que têm fome, por exemplo. Usa coturnos ou tênis pretos nos pés, embora nunca toque o chão com eles. Muda de forma conforme lhe convém, mas na maior parte do tempo tem cabelos de um ruivo pálido, a pele clara, tatuagens grossas de beleza e cadeia, entende de rock oitentista e nunca se importou com o que pensariam do que estivesse vestindo, postando ou em quem estivesse votando. Foi ela a idealizadora e coordenadora do Grande Motim de 2018, no qual todos os presos saíram para uma animada e afrontosa dança das cadeiras e, depois, acomodaram-se em outras posições que não as de costume.
A Fantasma da Franja Curta passa sempre mostrando a língua para provocar outro perigoso morador do Caulabouço: o Classe Média Típico, trancado aqui pelo simples fato de viver, ambicionar e verbalizar tudo conforme um estilo de vida batizado com nome de cidade. Sim, ela mesma. Balneário Camboriú. O Classe Média Típico assume forma humanóide, embora certamente não seja um humano completo. Adora churras, odeia corrupção, inveja e falsidade, seu partido é o Brasil, sua mulher era bem loura mas o abandonou quando eu o aprisionei para logo se casar com outro figurão. Ressente-se porque precisa dividir a cela pequena com seu carro importado, que ele lustra todos os dias enquanto reclama de não poder mais fazer rachas pelos corredores, parte do castigo que lhe condena a refletir sobre suas prioridades. Na última visita foi necessário revestir as paredes ao redor de sua porta com avisos ultraespecíficos para que as visitas não o alimentassem com pomadas ou secadores de cabelo que lhe deixavam igual ao Johnny Bravo. E nem com jacarezinhos da Lacoste, que ele também aprecia muito.
Na segunda cela do corredor à direita descansa impávida a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, uma criatura diminuta e adiadora por excelência que, pelo que conta a lenda, vai viver 100 anos, mas também pode sumir inadvertidamente. Sua história fica pra outro dia.
É hora de caudear os portões de Alcautraz: uma Azkauban toda minha, feita de loucos sussurros e uivos, nojos, perigos e repressões. Frio. Tédio. Amargura. Insistência. Repulsa. E força bruta.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Tome notas

Solecismos

Cresci um pouco acanhada de dizer
Coisas potencialmente mal interpretadas
Fingia que entendia tudo
E levei uma faculdade para aprender
Que empleitada se escreve empreitada

***

Não tenho mais todo o tempo do mundo
E isso me deprime um pouco
O todo me deixa ansiosa
Para cumprir a parte

***

Academia

Acreditar no conceito
De prodigiosidade 
Me fez não entender bem o valor
Da repetição
Da constância
E do esforço

***

Maquiagem
Em cima de pele estragada
Não cai bem
Assim como os cirurgiões
proíbem os esmaltes
Para monitorar oxigenação
No dia a dia eu quase não camuflo
O que meu órgão de contato 
- justo o maior de todos -
tem pra dizer ao mundo
sobre má alimentação,
a pia pequena lá de casa
e o hábito de dormir de maquiagem
Minha preguiça de ser clean girl, afinal.

***

Só existe lugar
para a descoberta
e para a redescoberta
Quando nada é pressuposto

***

Aprender com a observação do que acontece
Aos outros

***

Um cigarro preso sem mãos entre os lábios
Enquanto tateia o celular
(seria a nova máquina de escrever?

A criatividade como um fim em si mesma
Como um exercício
Domesticado
A criatividade como um bobo da corte
Pelo prazer de fazer rir
Ou fotografar

***

Caminhos que não se bifurcam
(qual é o oposto de bifurcam? não quero dizer convergem

***

“A gente incha, né?”
Não sei se me surpreendi mais com a solidariedade viçosa da costureira ou com o fato de ter entendido que eu disse aquilo em voz alta

***

Por que aquela velha culpada não parou para ouvir nossa conversa depois que eu não atropelei aquele motociclista? Eu hein.

***

Meus anjos da guarda não aguentam mais, Colin Robinson. 

***

Desinvestir.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pior herança

Cogitar nunca mais ver a cor do C de ouro que o vô Nelson me deu na crisma porque um belo dia da semana passada eu resolvi tirar ele do lugar de onde ele nunca tinha saído para reaproveitar a corrente com outro pingente já que outras três douradas que eu tinha simplesmente estouraram do meu pescoço consecutivamente no último mês me adoece. Me adoece. Profundamente. Eu queria estar brincando ao dizer isso. Eu queria entender um pouco mais de desapego com coisas tão específicas. Eu queria ter aprendido a rezar o responso. Eu queria ter fé para dar 3 pulos a São Longuinho ou para prometer a Santo Antônio, junto da minha súplica, o que mais sua reza exigisse. Eu queria não ter revirado todas as bolsas todas as gavetas todas as capas de óculos todos os zíperes todos os papéis de Trident amassados dentro de todos os outros compartimentos aqui dentro de casa. Eu queria conseguir não ter ficado obcecada por esta busca como eu ainda estou. Eu queria que ser generosa me protegesse dessa avareza de odiar não saber onde coloquei. Eu queria não estar com tanto medo porque talvez o tenha jogado fora embrulhado e amassado confundindo com ele um algodão, um cotonete ou um chumaço de cabelo, se é que eu fiz isso. Eu queria não ter decidido no último minuto antes de sair de casa ser tão, mas tão agradável com a anfitriã da minha visita de quinta a ponto de usar o C que ela me deu. Eu queria não ter pensado que aqui eu nunca ia perdê-lo já que agora aqui é lugar nenhum, o último lugar da face da terra, um bueiro para Nárnia, o estômago de um rinoceronte dentuço que é cheio de suco gástrico e derrete o que aparecer imediatamente, a terra querida dos gnomos fugitivos com pingentes à tiracolo. Eu queria não me perguntar se eu fosse um C onde eu estaria por tantas vezes consecutivas até não encontrar o sono e levantar da cama para procurar outra vez na mesma gaveta em que ele não estava quatro minutos atrás, quando o procurei pela milésima. Eu queria deixar ele no primeiro lugar que me ocorreu deixá-lo quando o tirei do cordão e não no segundo, inencontrável, no qual eu tanto não o perderia de jeito nenhum que o perdi para sempre. Eu queria não imaginar esse plano mirabolante em que um ladrão ou uma ladra entra na minha casa às 4h de qualquer madrugada, não faz barulho nenhum, encontra (só por essa parte já nasceu perdoado) e me rouba uma única coisa: justo um tantinho de ouro em formato de sorriso que deve valer um total de uns cinquenta reais ou menos. Pra quem não ganhou ele na crisma, é claro. Eu queria não estar amaldiçoando a freira do colégio de freiras frequentado pela minha avó 70 anos atrás que deve ter rogado uma praga atravessadora de gerações a todas as primogênitas da nossa família para que se culpem - bem no oco - quando podem eventualmente não ter cuidado bem das próprias coisas e para que sejamos todas incapazes in-ca-pa-zes de perder o que quer que seja e ficarmos bem com isso ou quem sabe consigamos simplesmente deixar para lá. Essa pior herança (a que eu queria perder), segue bem aqui rente ao osso do peito.