Também no campo acabam os domingos — como o pão de forma caseiro, em farelos fininhos sobre a mesa, sob os ecos da Copa Mundial de Clubes a tarde toda rolando, como bola, na TV.
Acaba, com cartela verde, o bingo de Santo Antônio ao anunciar o narrador, com suspense, depois de pedir rogai por nós: cinqueeentaaa eee ooooitooOo. É que se tem uma coisa que santo adora, é jogo.
Acabam as vendas das bandeirinhas e, depois, o leilão do bolo principal, com o consórcio de compadres que se querem saber prósperos dando um vistoso lance de setecentos e cinquenta reais fora o baile.
Acaba o quentão, antes do fim da festa, porque a cozinheira que preparou (“eu vou bem! cada vez mais bonita, mais nova… e mais gorda!”) gargalha a autocrítica bem humorada nos avisando que não podia mesmo prever tanta gente caridosa fora do tempo da política. E, ainda assim, quando é hora de cantar a pedra treze, o globo misteriosamente cospe “doze mais um” — e uns setenta por cento da festa se acotovela cúmplice, com risinhos abafados, dizendo ou pensando que “treze aqui não se cria”. O ruim mesmo é que empresa grande também não.
Sei que estes bancos enfileirados sem encosto são tão duros quanto quase todas estas cabeças, tantas que reconheço e que me conhecem desde que nasci, e que não veem motivo nem tiveram qualquer circunstância de pensar muito diferente entre si ao longo da vida.
Sei que este líquido viscoso que está sendo despejado fumegando nas tigelas de buffet de restaurante a kilo, ao lado dos pratos com queijo ralado e cheiro verde cortado bem miudinho (que não porei no prato), terá o sabor conhecido — e um pouquinho gorduroso — de merenda de colégio em prato azul de plástico.
Sei, ainda assim, que estar aqui, cercada destas pessoas, tem o gosto confortável de regressar à casa.
Na qual minha mãe não dorme sem antes lavar os copos e as taças, nem sai do quarto de manhã sem antes arrumar a cama. A casa que tem sempre no fim de semana algo de molho ou batendo na máquina, outro algo que foi lavado antes balançando no varal, outro algo entregue ainda ontem pelo Mercado Livre, com o sol de sempre ali batendo na varanda e entrando pelas basculantes verticais da garagem. E se quando chego adquiriu-se um qualquer vício novo (como passar a ponta da língua no vãozinho entre os dentes de baixo), basta-me advertir-lhe com a seriedade que sempre usou comigo que, brevemente, concordará que sim, precisa parar com isso, mas para se convencer racionalmente vai forjar um pequeno aforismo que serve de lição para nós duas: “Meu cérebro tem que aprender a controlar a minha língua”.
Casa na qual meu pai, que cozinha e teima muito melhor que nós todos juntos, mexe a panela em que frita com bastante banha de porco o queijinho com ovo que faz para me agradar de manhã bem cedo, enquanto repete com tom de sabedoria suas teses: de que o que está matando lentamente as pessoas, na verdade, são as verduras (com tanto agrotóxico, onde é que já se viu, o tomate se estiver meio verde se sente o veneno na boca); de que os ratos devem ser emboscados com doses de veneno lento, porque se comunicam de forma senciente; de que o aquecimento global, se for parar pra pensar, pode nem existir, porque desde que o mundo é mundo há enchentes, e este calorão, e os ciclos normais da natureza de tempos em tempos, e não sei quanto por cento, agora lhe falha a memória, de água que compõe a maioria do planeta, e por isso nem em cem mil anos daríamos conta de interferir nela inteira com o pouquinho de terra submersa que a humanidade habita.
Estas suas certezas, sempre tão enfáticas, ensinam-nos sobre o (seu) mundo, e por certo devem confortar-nos para não pensarmos mais a respeito, nem sofrermos, nem preocuparmo-nos, nem nunca mais cogitarmos não lhes dar netos por qualquer bobagem assemelhada (sem o embasamento lógico na coerência que alcançamos com nossos conhecimentos empíricos), imagino. São parecidas com o fato (por ele comprovado) de que o único negro que conhece é muito amigo seu e nunca sofreu preconceito de ninguém.
Os tempos mudam, é claro que mudam, muitas vezes até para melhor, mas a marcha da subida é tão lenta que quando algo muito fora da Curva da Banana acontece, espanta.
Especula-se, a título de novidade na praça, sobre histórias novas que, mesmo sendo novas, têm nome certo, sobrenome e toda a genealogia, como a da mulher que viciou no jogo do Tigrinho; as razões que levaram o marido de uma a implantar cabelos e agora parecer mais novo; e como estufa o peito empombado quando anda o marido daquela outra.
Não há, porém, novidades ou vácuos de poder na presidência do CPC da capela — que é uma baita vitrine para os jovens e aspirantes a vereadores, com ideias tão, tão antigas que parecem os mesmos desde os tempos áureos, quase imemoriais, nos quais o pavilhão, a rodoviária ou a pia da cozinha aqui de casa foram construídos, e ainda por cima com o mesmo exato tipo de tijolinhos à vista.
É quando meu pai se lembra de um outro amigo seu, que lhe disse um dia que se alguém for montado numa vaca à missa, no primeiro domingo todos reparam e comentam, no segundo menos, no terceiro ninguém mais nota e no quarto é normal mais gente ir.
Em parábola, todos os preconceitos perdem todo o seu sentido.
Quando envolve bicho, a coisa fica natural.
Ainda ontem minha afilhada mais nova se viu confusa sem saber se são “pipiu” ou “cocó” as galinhas que se empoleiram mediante saltos ornamentais acima do telhado de eternite do rancho, numa escalada ousadíssima até os lugares mais altos da árvore conexa, para fugirem de qualquer predador que venha pelo mato à noite.
Sim, as galinhas do meu pai sabem voar e se proteger. Quase como águias. Mas este fato, ao contrário de alguns avanços sociais e científicos tidos como absurdos porque subvertem o que lhe é conhecido, escapa muito ligeiro ao seu assombro — é diário, é quase trivial. Como a lagoa esverdeada, que sobe e desce com a chuva. Como o vizinho arando com o trator a terra, que logo é tempo de plantar.
Este recanto é a minha Macondo: sempre a mesma, o que tem de real tem de mágico.
São sempre épicas as histórias que lhe circundam.
São conhecidos os seus encantos, mas ainda mais seus espantos.
Foi dentro das cercas aramadas (e um pouco farpadas) destas fronteiras que começam na Bracatinga e se estendem até a Palhocinha que eu cresci, recusando com mau gênio a comer as cebolas que muito tentaram me servir. Foi aqui que temperei os princípios do meu espírito, respeitoso e anárquico, até engrossar o caldo de minha desobediência indolente, que discorda tanto e, ainda assim, tão pouco busca convencer aos meus de ideias novas — que pode bem ser que um homem de fora me tenha metido na cabeça, porque eu não fui criada assim, embora tenha sido criada para ser exata e rigorosamente assim.
Por um tropeço no sufixo e da semântica, não me tornei submissa, mas subversiva aos usos e costumes desta simplicidade interiorana. Estes hábitos que agora, de visita, considero apaziguadoramente modestos. Com estes meus modos de criança que respeitava a catequista mesmo tendo certeza de que rezava Jolvei ao invés de Volvei naquela passagem da Salve Rainha Mãe de Misericórdia.
E, de repente, degredada filha de Eva, eu me pego querendo que o que conheço do meu lugar nunca acabe.
Para além dos meus silêncios ou convictas objeções, sei que aqui eu posso entrar, que eu sou de casa.