segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Morgause


Desço as escadas e caminho apressada pela rua, com a impressão de ser seguida. É meio-dia de mormaço. Não chove. Se no andar de cima ventasse muito, as nuvens se moveriam apressadas. Parecem estáticas. Ou estou correndo na exata velocidade do céu, como por mágica. Aperto um tomo, a capa dura contra o peito. A capa foi acinzentada pelo tempo e tem um emblema que reluz, prateado. Dentro há gravuras com legendas em latim. Seriam feitiços? Vou apertando o passo, vou cada vez mais rápido, até acabar o fôlego. Paro de súbito. Olho furtiva para trás, para os lados e para cima. É como se o que me espreita estivesse… adiante? Vago. Em todos os lugares. Até ter certeza, corro mais, suspeitando que o que está à frente é um perigo mais banal que o que me segue. Feito encontrar a secretária do dentista cruzando a calçada e demorar três segundos inteiros para reconhecê-la depois de cumprimentar. Assustador e breve. Incômodo. Inocente, mas fora de lugar. Um mal menor do que este outro, do qual corro tanto. O vestido comprido com as mangas bufantes azul petróleo e armado em godê por uma anágua robusta engata em uma das minhas botas. Tropeço. Alguém me fixa pelo braço com o cabo de uma bengala de madeira. Não dói. Não é ninguém. Não tem rosto. É um bem anônimo. Recado antigo de que ainda há beleza no mundo. Se me solta, recomeço a correr. Penso em tesouros que ficam para sempre perdidos, até virarem lendas, porque envelheceram as pistas. Um livro antigo encontrando amparo contra um corpo. O meu corpo. Um registro que guarda a grandeza da possibilidade, sem por isso poder antecipar onde ou como será. O que seria de mim se eu tivesse sangrado em vez de fecundado? Que males me teriam desencontrado se eu não estivesse tão detida neste tema que me dura tão duro no imaginário? Estou atravessando este momento
A ideia fixa
como a um portal
Enquanto acordo
deitada de bruços no chão
do pequeno elevador
quebrado
e sem espelhos
desse prédio antigo no qual moramos
(foi o primeiro da cidade?)
e onde estou trancada
No escuro

Ainda há alguém que chora alto esperando por mim
Ainda é preciso comprar as fraldas
Quantas horas estive aqui?

Estou mesmo trancada
em meus próprios devaneios
Dos quais não fujo senão em sonho

A inconsciência é um portal
incontinente
para outro tempo
Dos mais místicos
Dos mais estranhos
Dos mais transcendentais