Decorei o caminho daquelas duas cicatrizes pequenas no peito, na ida do tórax ao ombro pela tua esquerda, que agora parecem marcas de bala ou vacina. Foram estilhaços de vidro que se atiraram contra ti, mas podiam ser marcas da guerra ou imunidade. Ficaram pra sempre os sinais que - ainda bem - já não sentes. Só eu sei de tão perto. O meu indicador percorre o teu pescoço quente e se arrasta em ponta nas mini queloides dessensibilizadas. O baixo relevo me faz uma cócega de não rir, só repetir, em braile: quero ser a sua pessoa. É mesmo, acho que nunca tínhamos feito essa promessa antes. Quero ser a sua pessoa, exagerar no afeto e na proteção, não saber a hora de ir embora, estar melhor para dirigir, falar baixo, guardar os teus segredos como preciosidades e não contá-los a mais ninguém. Edificar trincheiras para te isolar dos meus inimigos imaginários. A grandeza do que nos aconteceu ontem é de uma delicadeza de seda fina sobre o corpo, amor. O toque é tão leve que quase quero vestir essa carapuça por conta própria, como carrasca. Põe essa meia de novo na mão - que eu beijo e tens ciúmes como se o fantoche fosse uma entidade autônoma, e aí te encosto o nariz na bochecha molhada de lágrima até adormecermos, não sem antes conversar por meia hora com esse outro fragmento de ti que diz as coisas mais bobas e boas com uma voz estridente para me acalmar aquela dor de barriga. Para que eu não doa. Para que as marcas de dor sejam esquecidas por baixo da camiseta ou da camisola. Para que sejamos, por favor, para sempre e agora sem interrupções, as nossas pessoas.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
Sereníssima
Quando a semente de um tomate
dá ao exterior
(o ar
de sua graça
ele todo míngua e seca
em pouco tempo.
Toda fruta aberta à força
apodrece mais ligeira
Toda verdade também
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Rasga e amassa
Rasgar alguém
Em muitos pedaços
de papel
Depois de pôr-lhe ao lado do nome
Um ponto de interrogação
que, também rasgado,
Divide-se em sorriso imperfeito
(ou o contorno de meia lâmpada
- ideia sempre incompleta)
E um ponto final
Rasgando, pretender ignorar
o que se escreveu
o latente
lá dentro
Onde há um calo que parece recém formado
E é, porém, bastante antigo
Um desconforto profundo
Um inchaço que protubera
Uma ameaça de vertigem
ao som da folha se partindo
Dor que dói
rasgada como carne
ao tocar de novo
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Alcautraz [6]
Bem-vindos à novela, digo, ao novelo, digo, a apenas outro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
Este único trecho acarpetado do corredor do Caulabouço não está aqui à toa. Quem tira os sapatos sente a felpa macia e fina em contato com os dedos, elogiando a gerência pelos seus talentos com a decoração acolhedora sem se dar conta de que esta é só mais uma presa, estirada graciosa, em tons de sépia e voluntariamente ao chão como a mocinha sofredora de uma novela de época se esgueirando para baixo aos prantos pela soleira da porta.
Escondida mas não muito, na verdade apenas perenemente camuflada: a Melancolinha. Ao desavisado, aconchega. A quem se demora, seduz e deprime. Ceci n’est pas une linha. É um átomo que contém em si fração completa de toda a obra. A Melancolinha é um fio que, fora da trama, faz o curso entre a própria cela e o Caustelo, instigando a procura por este porão como migalhas de João e Maria ensinando um caminho ruim. Mas vice-versa.
Fina feito a teia de uma aranha, às vezes se aninha recolhida e parece pequena: é um emaranhado capaz de caber na planta dos pés e é preciso puxá-la com força e insistência para que se revele. Outras vezes, porém, Melancolinha sabe fazer o ritmo de um ioiô que vai e volta, exalar o cheiro de chá dos sachês, tecer mantinhas térmicas ou cobertores até a orelha ou se costurar em urdiduras repousando, terna e lenta, dolorida como quem foi pisada em uma roseta.
Vez ou outra reaparece imponente, podendo tensionar de um lado a outro e produzir tropeços. Caprichosa, outro dia Melancolinha se travestiu de um bordado na forma da letra S para dizer Sim, Saramago, é preciso Sair da linha para ver a linha.
E esta é lição suficiente para hoje e para sempre.
Mais vale aguardar as cenas dos próximos capítulos, digo, a nossa próxima visita.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025
Morgause
Desço as escadas e caminho apressada pela rua, com a impressão de ser seguida. É meio-dia de mormaço. Não chove. Se no andar de cima ventasse muito, as nuvens se moveriam apressadas. Parecem estáticas. Ou estou correndo na exata velocidade do céu, como por mágica. Aperto um tomo, a capa dura contra o peito. A capa foi acinzentada pelo tempo e tem um emblema que reluz, prateado. Dentro há gravuras com legendas em latim. Seriam feitiços? Vou apertando o passo, vou cada vez mais rápido, até acabar o fôlego. Paro de súbito. Olho furtiva para trás, para os lados e para cima. É como se o que me espreita estivesse… adiante? Vago. Em todos os lugares. Até ter certeza, corro mais, suspeitando que o que está à frente é um perigo mais banal que o que me segue. Feito encontrar a secretária do dentista cruzando a calçada e demorar três segundos inteiros para reconhecê-la depois de cumprimentar. Assustador e breve. Incômodo. Inocente, mas fora de lugar. Um mal menor do que este outro, do qual corro tanto. O vestido comprido com as mangas bufantes azul petróleo e armado em godê por uma anágua robusta engata em uma das minhas botas. Tropeço. Alguém me fixa pelo braço com o cabo de uma bengala de madeira. Não dói. Não é ninguém. Não tem rosto. É um bem anônimo. Recado antigo de que ainda há beleza no mundo. Se me solta, recomeço a correr. Penso em tesouros que ficam para sempre perdidos, até virarem lendas, porque envelheceram as pistas. Um livro antigo encontrando amparo contra um corpo. O meu corpo. Um registro que guarda a grandeza da possibilidade, sem por isso poder antecipar onde ou como será. O que seria de mim se eu tivesse sangrado em vez de fecundado? Que males me teriam desencontrado se eu não estivesse tão detida neste tema que me dura tão duro no imaginário? Estou atravessando este momento
A ideia fixa
como a um portal
Enquanto acordo
deitada de bruços no chão
do pequeno elevador
quebrado
e sem espelhos
desse prédio antigo no qual moramos
(foi o primeiro da cidade?)
e onde estou trancada
No escuro
Ainda há alguém que chora alto esperando por mim
Ainda é preciso comprar as fraldas
Quantas horas estive aqui?
Estou mesmo trancada
em meus próprios devaneios
Dos quais não fujo senão em sonho
A inconsciência é um portal
incontinente
para outro tempo
Dos mais místicos
Dos mais estranhos
Dos mais transcendentais
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