terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A rua da vizinha louca


Nela não se pode caminhar
Sem arriscar sustos pisando
Na boca de lobo gradeada mas funda e exposta ou
Na frente do portão que guarda mais um dos mil cachorros que uivam todos juntos às vezes ou
Numa pedra solta de todo tamanho
Que não se sabe como foi parar ali

A pé é muito diferente que de carro
E olha que nem de carro se sabe
Quando e onde estarão estacionados
Os moradores
Ou visitantes
Ou usuários
De que lado transitarão os transeuntes
Quem nos surpreenderá
descendo a Guanabara a mil
Do que e em que contramão se terá que desviar
E quem precisará
Para não colidir
Como meteoros seculares / apressados
No céu limpo de um alpe / singular
anônimos, mal humorados,
Vivendo às margens
Destas não-calçadas
Até onde o asfalto-concreto se espalhou sem saber
Que nunca haveria meio-fio.

Do alto a vista do pôr do sol
Quando visto
me dá a impressão de já estar em casa
Mesmo ainda sendo a rua da vizinha louca
Mesmo antes de estacionar mal,
de me apertar
o corpo contra o Ka cuidando para não bater uma porta na outra
E subir todos os lances de escada
De onde, do mais alto ainda, até se pode ver melhor
O verde escuro que também sobrou do outro lado deste vale
O irregular dos desníveis
Que agora parecem um pouco mais distantes
A contenção alta de pedra lousa da Associação
O desigual da vizinha com piscina, energia solar e teto retrátil
Tendo, ao seu lado, muro com muro, a casa da
vizinha louca.

Que primeiro trouxe a casa das bonecas
Para frente de seu não-pátio estreito, encardido e limoso, de cimento,
E depois pintou só as aberturas de sua casa, de madeira,
Com a mesma tinta cor-de-rosa
De encantar menina
(ainda que sua menina viva aos gritos do desencanto, da TV ligada alto no SBT e sob a sombra do entra e sai de pessoas
De quem suspeito muitíssimo.

O baixo dá numa igreja e, depois, na facção
De roupas sem janelas
Dez mulheres ou mais
com suas máquinas de costura
e muitos fardos de tecido
Fazendo tec-tec sem parar
em horário mais ou menos comercial
Num som que bate nas paredes e volta aos seus ouvidos
(pensando bem não sei o que é
Pior
Melhor
mesmo é pensar que
A uma curva de distância
Poucos metros por eme eles de combustível
Ou de panturrilha
Estão as vistosas ruas dos ipês floridos
Construções novíssimas em folha
Projetadérrimas
Erguendo-se para caber na foto futura que consistirá no novo
Cartão-postal da nova
burguesia de interior da cidade que,
não alcançando o lado de lá,
Subiu da enchente para este lado
Onde quase tudo se vê agora
e ainda por cima bem iluminado:
sobretudo o contraste
Com quem veio antes.

A rua da vizinha louca
E a minha 
São cheias de casas
à revelia da engenharia
Muito engraçadas
Não têm é nada
Até combinam
com os buracos da companhia de água e saneamento
E com as vias sem faixas pintadas no chão
Perto de onde se vê os meninos que sempre brincam de bola com chinelos de gol
Apertados entre dois muros muito cinzas
Todo dia sem chuva pontualmente às seis
E pouco
Depois de subir o morro depois do colégio

A duas ex-
quinas de mim
Tem uma rua reta
- e que ali começa a ser íngreme -
a que batizamos a rua da vizinha louca.
De quem não conheço a fisionomia,
só decorei o timbre alto dos
Urros, socos e pontapés
no porta-malas da viatura
daquele dia
Que me marcou muito
E, creio, mais ainda a ela,
como o distintivo de um desvario
Mais parece seu novo sobrenome: Louca.

Se a mim deram um ou outro limão
E eu gosto tanto de me vangloriar 
E de ver
o que faço com eles
E de limonada
A ela talvez tenham espremido o ácido nas retinas
Ou só não gosta de limonada - vai saber?
Se só aprendeu a ver o mundo meio azedo

Penso que as coisas que acontecem a nós todos
Imitam um bolo fofo recém assado:
a ordem importa. o tempo. o recipiente. a mistura. 
Se me dessem uma colher de manteiga
Duas xícaras de farinha
E uma pitada de fermento
Para comer ao vivo
Enquanto ainda era criança
Toda minha vida poderia ser e estar
Com outro gosto
Mais seco
Embuchado
Abatumado até
E, então, pode que a Louca seria eu.

Algo que a vizinha e sua rua me ensinaram é que
às vezes
a vida não tem um sentido claro.
É como um bom poema:
Tendo por pré-requisito
Não ser tão pretensioso assim (nem rimar
Não precisa de moral
E pode acabar esquisito.

Careço
Do urbanismo
Para não dizer
bem limpo e arborizado
assim:
De baixo
do ponto
de vista 
da vizinha Louca
Tenho algo mais para ser,
Que não a eterna meio-rica entre os mais simples
A patricinha da escola pública,
A pelada que esquece de fechar a cortina
às vezes
e sabe que falar baixo parece classe
e por isso performa bem em público
A que nunca precisou ser contida pela PM
A quem ir a pé para se exercitar é puramente uma escolha?

Tenho algo mais para ser,
senão eu?
E tem algo mais para ser a vizinha,
que não a Louca da própria rua?
Tomara que sim

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Cativo [12]

Decorei o caminho daquelas duas cicatrizes pequenas no peito, na ida do tórax ao ombro pela tua esquerda, que agora parecem marcas de bala ou vacina. Foram estilhaços de vidro que se atiraram contra ti, mas podiam ser marcas da guerra ou imunidade. Ficaram pra sempre os sinais que - ainda bem - já não sentes. Só eu sei de tão perto. O meu indicador percorre o teu pescoço quente e se arrasta em ponta nas mini queloides dessensibilizadas. O baixo relevo me faz uma cócega de não rir, só repetir, em braile: quero ser a sua pessoa. É mesmo, acho que nunca tínhamos feito essa promessa antes. Quero ser a sua pessoa, exagerar no afeto e na proteção, não saber a hora de ir embora, estar melhor para dirigir, falar baixo, guardar os teus segredos como preciosidades e não contá-los a mais ninguém. Edificar trincheiras para te isolar dos meus inimigos imaginários. A grandeza do que nos aconteceu ontem é de uma delicadeza de seda fina sobre o corpo, amor. O toque é tão leve que quase quero vestir essa carapuça por conta própria, como carrasca. Põe essa meia de novo na mão - que eu beijo e tens ciúmes como se o fantoche fosse uma entidade autônoma, e aí te encosto o nariz na bochecha molhada de lágrima até adormecermos, não sem antes conversar por meia hora com esse outro fragmento de ti que diz as coisas mais bobas e boas com uma voz estridente para me acalmar aquela dor de barriga. Para que eu não doa. Para que as marcas de dor sejam esquecidas por baixo da camiseta ou da camisola. Para que sejamos, por favor, para sempre e agora sem interrupções, as nossas pessoas.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sereníssima

Quando a semente de um tomate
dá ao exterior
                 (o ar
de sua graça
ele todo míngua e seca
em pouco tempo.

Toda fruta aberta à força
apodrece mais ligeira
Toda verdade também

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Rasga e amassa

Rasgar alguém
Em muitos pedaços
                         de papel
Depois de pôr-lhe ao lado do nome
Um ponto de interrogação
que, também rasgado,
Divide-se em sorriso imperfeito
(ou o contorno de meia lâmpada
- ideia sempre incompleta)
E um ponto final

Rasgando, pretender ignorar
o que se escreveu
o latente
lá dentro
Onde há um calo que parece recém formado
E é, porém, bastante antigo
Um desconforto profundo
Um inchaço que protubera
Uma ameaça de vertigem
ao som da folha se partindo

Dor que dói
rasgada como carne
ao tocar de novo

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Alcautraz [6]

Bem-vindos à novela, digo, ao novelo, digo, a apenas outro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
Este único trecho acarpetado do corredor do Caulabouço não está aqui à toa. Quem tira os sapatos sente a felpa macia e fina em contato com os dedos, elogiando a gerência pelos seus talentos com a decoração acolhedora sem se dar conta de que esta é só mais uma presa, estirada graciosa, em tons de sépia e voluntariamente ao chão como a mocinha sofredora de uma novela de época se esgueirando para baixo aos prantos pela soleira da porta. 
Escondida mas não muito, na verdade apenas perenemente camuflada: a Melancolinha. Ao desavisado, aconchega. A quem se demora, seduz e deprime. Ceci n’est pas une linha. É um átomo que contém em si fração completa de toda a obra. A Melancolinha é um fio que, fora da trama, faz o curso entre a própria cela e o Caustelo, instigando a procura por este porão como migalhas de João e Maria ensinando um caminho ruim. Mas vice-versa.
Fina feito a teia de uma aranha, às vezes se aninha recolhida e parece pequena: é um emaranhado capaz de caber na planta dos pés e é preciso puxá-la com força e insistência para que se revele. Outras vezes, porém, Melancolinha sabe fazer o ritmo de um ioiô que vai e volta, exalar o cheiro de chá dos sachês, tecer mantinhas térmicas ou cobertores até a orelha ou se costurar em urdiduras repousando, terna e lenta, dolorida como quem foi pisada em uma roseta.
Vez ou outra reaparece imponente, podendo tensionar de um lado a outro e produzir tropeços. Caprichosa, outro dia Melancolinha se travestiu de um bordado na forma da letra S para dizer Sim, Saramago, é preciso Sair da linha para ver a linha.
E esta é lição suficiente para hoje e para sempre.
Mais vale aguardar as cenas dos próximos capítulos, digo, a nossa próxima visita.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Morgause


Desço as escadas e caminho apressada pela rua, com a impressão de ser seguida. É meio-dia de mormaço. Não chove. Se no andar de cima ventasse muito, as nuvens se moveriam apressadas. Parecem estáticas. Ou estou correndo na exata velocidade do céu, como por mágica. Aperto um tomo, a capa dura contra o peito. A capa foi acinzentada pelo tempo e tem um emblema que reluz, prateado. Dentro há gravuras com legendas em latim. Seriam feitiços? Vou apertando o passo, vou cada vez mais rápido, até acabar o fôlego. Paro de súbito. Olho furtiva para trás, para os lados e para cima. É como se o que me espreita estivesse… adiante? Vago. Em todos os lugares. Até ter certeza, corro mais, suspeitando que o que está à frente é um perigo mais banal que o que me segue. Feito encontrar a secretária do dentista cruzando a calçada e demorar três segundos inteiros para reconhecê-la depois de cumprimentar. Assustador e breve. Incômodo. Inocente, mas fora de lugar. Um mal menor do que este outro, do qual corro tanto. O vestido comprido com as mangas bufantes azul petróleo e armado em godê por uma anágua robusta engata em uma das minhas botas. Tropeço. Alguém me fixa pelo braço com o cabo de uma bengala de madeira. Não dói. Não é ninguém. Não tem rosto. É um bem anônimo. Recado antigo de que ainda há beleza no mundo. Se me solta, recomeço a correr. Penso em tesouros que ficam para sempre perdidos, até virarem lendas, porque envelheceram as pistas. Um livro antigo encontrando amparo contra um corpo. O meu corpo. Um registro que guarda a grandeza da possibilidade, sem por isso poder antecipar onde ou como será. O que seria de mim se eu tivesse sangrado em vez de fecundado? Que males me teriam desencontrado se eu não estivesse tão detida neste tema que me dura tão duro no imaginário? Estou atravessando este momento
A ideia fixa
como a um portal
Enquanto acordo
deitada de bruços no chão
do pequeno elevador
quebrado
e sem espelhos
desse prédio antigo no qual moramos
(foi o primeiro da cidade?)
e onde estou trancada
No escuro

Ainda há alguém que chora alto esperando por mim
Ainda é preciso comprar as fraldas
Quantas horas estive aqui?

Estou mesmo trancada
em meus próprios devaneios
Dos quais não fujo senão em sonho

A inconsciência é um portal
incontinente
para outro tempo
Dos mais místicos
Dos mais estranhos
Dos mais transcendentais