Antes havia cartas. E por isso precisava haver muitas gavetas para guardá-las. Quanto mais cartas, mais eram necessárias gavetas. Quanto mais gavetas, mais reviravas desesperada para encontrar o que já tinha desfrutado antes - sem saber que era precioso - e que faria falta, depois. A tecnologia prescinde de espaços e, mesmo assim, pode ser vasta.
Moro numa casa pequena. Com vasos pequenos. Uma biblioteca pequena. Creio na modéstia voluntária e optativa como a maior insígnia da dignidade. Quanto menor a representação da riqueza, mais sinto pertencer melhor ao lado que me importa da dinâmica do mundo. E acho isso bom. Só titubeio às vezes.
Agora tenho um Kindle. Também da palma da mão, assisto a tua vida a uma modesta distância. Tenho visto prazeres vulgares e difíceis de manter, como as filhas pequenas e tão doces e bem educadas, um marido que tua família não aprova tanto assim e a caminhonete (me diz, pra quê?). Tudo me grita beleza e muita renúncia. A troco eu acho de eu sei o quê.
Sempre te achei bonita. O cabelo, a pele clara e uniforme, o formato das unhas. Acho que disse pouco e hoje em dia, se disser, fica parecendo deboche. Tenho nem oportunidade. Com a nossa idade, louvadas sejam as feministas para as quais você não dá a mínima, ser bonita dispensa comparativos. Idade nenhuma imuniza, porém, dos comparativos feitos naquele intervalo em que eram feitos, importavam e nos deixaram marcas tão não sutis.
Acho que um bom tempo eu fui porque tu não eras. O anti-parâmetro. Eu gorda tu magra, eu magra tu gorda, tu ativa e eu altiva, tu quieta e eu crítica, tu mãe e eu velha, tu mãe e eu livre, eu pai tu sem. Porra. Eu pai e tu sem. Cada antônimo entre nós o futuro corpo de um delito ofensivo. Marcadas pela vida toda.
Um pai marca a vida. Eu não quero ser hipócrita com as outras coisas que marcam a vida. Também não quero, entretanto, fingir que presença implica qualidade. Quando penso que alcanço essa compreensão porque é mais fácil teorizar renúncia ao que já está garantido do que ao que nunca se teve, sinto gosto de remorso atrás dos dentes da frente, como se eles fossem se quebrar sozinhos e me deixar banguela. Me trazendo uma grande vergonha, como a que parece que me lembro com certeza que sentias por muito e por tudo.
Ninguém diz
sinto muito
- pelo que nasceu tendo -
como eu.