quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Funerais

Me lembram que vamos todos nós
Os vivos
Ainda morrer
No futuro
- e isso eu não suporto,
é absurdo.

Ter dito eu te amo
centenas de vezes
E ouvido em retribuição
Nenhuma sendo a suficiente despedida
Em vida
Eu não suporto
Porque é absurdo

Ouvir de minhas tias
“Foi encontrar a própria mãe”
Me corrói por dentro
Já que não sei se é verdade
Que alguém possa ser despartido
Quero dizer
Reencontrado
Depois de partir

Ouvir de minha mãe
- que agora não pode mais ser a filha, só a mãe -
Que “parece um buraco”
“me faltam as raízes”
E “eu não sabia ser triste”
É insuportável

Exatamente como são os funerais

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Samambaia



Antes havia cartas. E por isso precisava haver muitas gavetas para guardá-las. Quanto mais cartas, mais eram necessárias gavetas. Quanto mais gavetas, mais reviravas desesperada para encontrar o que já tinha desfrutado antes - sem saber que era precioso - e que faria falta, depois. A tecnologia prescinde de espaços e, mesmo assim, pode ser vasta.
Moro numa casa pequena. Com vasos pequenos. Uma biblioteca pequena. Creio na modéstia voluntária e optativa como a maior insígnia da dignidade. Quanto menor a representação da riqueza, mais sinto pertencer melhor ao lado que me importa da dinâmica do mundo. E acho isso bom. Só titubeio às vezes.
Agora tenho um Kindle. Também da palma da mão, assisto a tua vida a uma modesta distância. Tenho visto prazeres vulgares e difíceis de manter, como as filhas pequenas e tão doces e bem educadas, um marido que tua família não aprova tanto assim e a caminhonete (me diz, pra quê?). Tudo me grita beleza e muita renúncia. A troco eu acho de eu sei o quê.
Sempre te achei bonita. O cabelo, a pele clara e uniforme, o formato das unhas. Acho que disse pouco e hoje em dia, se disser, fica parecendo deboche. Tenho nem oportunidade. Com a nossa idade, louvadas sejam as feministas para as quais você não dá a mínima, ser bonita dispensa comparativos. Idade nenhuma imuniza, porém, dos comparativos feitos naquele intervalo em que eram feitos, importavam e nos deixaram marcas tão não sutis.
Acho que um bom tempo eu fui porque tu não eras. O anti-parâmetro. Eu gorda tu magra, eu magra tu gorda, tu ativa e eu altiva, tu quieta e eu crítica, tu mãe e eu velha, tu mãe e eu livre, eu pai tu sem. Porra. Eu pai e tu sem. Cada antônimo entre nós o futuro corpo de um delito ofensivo. Marcadas pela vida toda.
Um pai marca a vida. Eu não quero ser hipócrita com as outras coisas que marcam a vida. Também não quero, entretanto, fingir que presença implica qualidade. Quando penso que alcanço essa compreensão porque é mais fácil teorizar renúncia ao que já está garantido do que ao que nunca se teve, sinto gosto de remorso atrás dos dentes da frente, como se eles fossem se quebrar sozinhos e me deixar banguela. Me trazendo uma grande vergonha, como a que parece que me lembro com certeza que sentias por muito e por tudo.

Ninguém diz
sinto muito
- pelo que nasceu tendo -
como eu.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Família

Eu
Vocês
A economia circular de bens materiais
Bem gastos
Um chumaço de alecrim com flor e tudo
E dois gravetos

domingo, 19 de janeiro de 2025

Rosa

Enquanto estou num Resort, penso sempre que é uma vida a que eu me acostumaria fácil. É isso que te ocorre todo dia? É isso que te faz escalar as impressões dos outros para se sentir bela vista e considerada? O que justifica a tua tentativa de não se deixar conhecer na sombra para parecer sempre mais elevada, proeminente, asséptica, ilibada do que à luz. Mais inibida e nobre que a nossa mãe e seus deslizes de retórica.
Materializa-se em ti e na tua fé um substrato muito preciso do desamparo da humanidade, que é o desejo de descobrir quanto, de onde e por quê. Mas acho que tanta crença não basta para seres feliz. Devias te concentrar em como e para onde. Pois sincretismo nenhum tem te salvado dessa gana de ser acolhida, validada e jamais preterida. Ia escrever de ser vítima, mas aí você ia emburrar, fazer greve de resposta e ainda achar que tem razão. Depois voltar como se nada tivesse acontecido, pedindo ou enviando uma amenidade como se os silêncios tivessem te feito evitar ou vencer o conflito. Te acolhe primeiro e vais ver que isso tudo é bobagem.
Quando saio de um Resort, logo depois de fazer o check-out eu prontamente me lembro de onde saí. É urgente este trânsito, deve funcionar como um botão de automática reconciliação com a frantumaglia menos afortunada de onde viemos. Experimenta (te dou conselhos como se soubesse mais, não sabendo) enxergar a história atrás de ti como uma porta - que se pode fechar com força, num estampido, ou deixar aberta para que o antes, o depois e o então circulem livremente sem nos fazer um mal determinista. Em paz com os farelos que grudam no caminhante - as farpas, os vinténs, uns poucos glitteres, as conjugações imperfeitas e letras de sobra.
Só não te esquece que ter filhos implica iniciar uma nova linhagem - que, entretanto, não se rompe daquela da qual viemos. E que merda de pai foste escolher. Que vergonha, minha irmã. Ele ainda se mete a galã. Não vou suportar outro comentário pérfido do Senhor dos Deboches e ainda assim, por ti, vou suportar sim, mas em doses breves e espaçadas, como um remédio amargo, evitando o convívio o quanto puder para que o tecido de nossos encontros não se desgaste ou embolote ou rompa as costuras de vez.
Posso estar errando no julgamento. Posso estar cega para o quanto se parecem. Mas é que em certa perspectiva te admito muito. A minha redenção vem dessa coragem de errar. De não se levar a sério. De deixar que os outros errem, em público, sem julgá-los tanto, porque o que vai sentimos sempre voltar, como onda. Tocar o grosso do erro - como para dar sorte. Para que se possa ver o que há por baixo. Como nas estátuas em que fica polida apenas a parte em que, por superstição, o visitante toca porque lhe deram a dica. As bolas, os peitos, os chifres, o queixo. São amplas as possibilidades. De erro e de acerto. Talvez não precisemos nos deter tanto neles. Quem sabe a vida seja oscilar entre o Resort, de onde viemos e para onde voltaremos. Tenta te lembrar que as coisas por trás das coisas estão lá por algum motivo. E não deve ser para que tentemos adivinhá-las, supô-las ou inventá-las. Se se revelarem, bom. Se se mantiverem encobertas, por favor, te esforça em deixar para lá.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Orquídea

Se posso te dizer, meus anos não se atrasam por esse botox que finalmente renovei na segunda. 41 unidades. Tu cada vez mais harmoniosa (sic). Eu envelhecendo. Minto mal para mim mesma, porque sei o que o tempo andou me fazendo. Tanto, que no entanto não tenho força nem disposição para pagar mais para negar os sinais com menor periodicidade. E encuco com os efeitos de longo prazo, dá pra crer? Como se a pele fosse esticar, acostumar, esquecer como ser nova por conta própria. A cada poucos meses, os vincos do espanto e da brabeza voltam viscerosos à minha testa desidratada. Dura menos que os seis que me prometeram. Pelo menos ainda não tenho marcas de sorrir. Quer dizer, isso é bom? Me assusta um pouco - só não mais porque aí a ruga de assustada afunda outro centímetro. Os músculos me desdeformam com a pressa de ser expressiva. Percebe? Com a pressa de me expressar sinceramente (eu que acho que nunca soube ao certo como conter as sobrancelhas), fico um pouco a folha ofício que já foi barco de papel - em tempo de expedição às Índias.
Também não há meio dos cravos me abandonarem o nariz. Esfoliante-químico-de-cu-é-rola. Estou dizendo isso batendo a palma de uma mão no soquinho em forma de segurar sorvete da outra, que é pra te assustar com meus maus modos. Tenho as manchas que começam a despontar marrom médio no alto da maçã do rosto (será melasma ou luz artificial?). Aquela faixa tímida de pelos finos que simulam costeletas. Enrubesço de pensar que os pelos me acentuam a boca acinzentados quando menos espero, alternando lugar com os pequenos pontos inflamados que cravejam meu lugar favorito de espremer: o queixo (atualmente mais assimétrico por uma espinha interna) e ao redor da boca (sempre ela). São sinais claros de que o controle não está comigo - passa perto do retrogosto de privilégio, mas comigo mesmo não está.
Sinto que a vida passa ligeira. Em dias úteis. No máximo 15 por vez. Muitos de 15 por vez. Quem foi que te ensinou que ser prosperada fazia sentido? De onde vem tua coragem, o teu conforto e a tua incúria? Eu sei. Minhas rugas sabem. Personificam tua lisura em contraste.
Em notas mais ou menos relacionadas: vão acabar com os filtros do Instagram. Daqui a um tempo nós olharemos abismados fotos de gerações granuladas com lábios grossos demais, narizes finos de menos, pele sem textura e a bochecha que acorda e dorme corada. Nesse comparativo certamente vou me parecer ainda mais ladeira abaixo - para não entrar no mérito da minha barriga tendida a crescer e desbarrancar mais se eu tiver menino. Alarguem ou não meus quadris em formato de tanajura, vou lembrar por décadas da cara de quem já viu um pobre ascender quando falei em silicone.
Viu? Pra empatizar com as tuas inseguranças tive que falar das minhas, e isso na tua presença eu sou contra. Amanhã vou vestir azul, azulzão. Você adora, né? Por trás das camadas finas de discrição, escorre das tuas fendas uma necessidade de se provar distinta. Quero dizer distinta da palavra e da ação da distinção, que abomino. Eu sou mais feliz descalça no sol ou de chinelo. Minha bandeira é ser medíocre e natural enquanto a tua cara, preenchidésima, completa o pescoço desse monstro imaginário que acordou deitado em cima da minha caixa torácica no pesadelo de hoje, dizendo: auf wiedersehen, logo logo tem mais.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Alma de artista

A realidade
ancorará
teus devaneios

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Zamioculca

Na Economia dos meus afetos, dia sim outro também um ábaco colorido e plástico marca negativo: sinto que estou te devendo. Com frequência, falta ponteiro no meu relógio de adulta para quem eu gostaria de ser para ti. E se nos arábicos as coisas vão mal, nos fonemas não vão melhor. Tua fala é tão enrolada - mesmo agora, conversa pouco comigo. Parece outro idioma. Talvez se possa dizer o mesmo de mim, hermética, aqui, no centro destas quatro paredes altas de minhas boas intenções não postas em prática. Quando enfim te deixas levar pelo oceano, eu te vejo pela tela. Aí mesmo é que anseias ainda menos por mim. Fica evidente a desconexão que se estabeleceu. Outras vezes, gosto de pensar que ainda teremos chão para alinhar as prosas e interesses. Que coexistiremos juntos num tempo futuro de semelhanças leves e intuitivas, marcadas pela afinidade e pela abertura ao diverso, mais do que pelo sangue. Me distraio com o pensamento de que nosso momento de nos darmos melhor apenas ainda não chegou, está em suspenso, perenemente virtual - encerrado no factível de si mesmo. Encerrada no factível de mim mesma. Eu sou assim, vais saber se eu não mudar até te dares conta. Eu também ainda sou pequena.
Queria estar mais presente e te aconselhar desde já, fui coroada para isso. Só que eu sei muito pouco. Muito pouco além de que as vidas podem ser paralelas e distantes - até se cruzarem.
Ainda outro dia me alcançaste um vaso cerâmico pequeno, branquinho, com uns detalhes de tinta marrom e um trincado ou outro estilizando. Parecem sujeira imperfeita e cicatriz. Dele ascendem galhos relativamente grossos e folhas muito verdes e vivas, assimétricas. Pra cá, pra lá. Desde então deste para ser presença viva na estante da minha sala. Acertou quem disse que era fácil de cuidar. Te espio, imóvel exceto pelos olhos e pensamentos que bem poderiam te acompanhar os movimentos, a uma terna distância das raríssimas irrigações, como quem torce para que também o sentimento vingue sozinho, com a luz indireta de qualquer coordenada, meridiano ou hemisfério. O ordinal de qualquer mundo (o meu é todo latino, o terceiro, vais saber).
Fico querendo espiá-lo outra vez, mais adiante, quando tivermos novos olhos que sejam nossos. Porque fomos conectados por apreços que nos precederam. Estavam postos à mesa. Talvez seja natural que não saibamos bem ao certo o que fazer com isso. O tilintar de uma colher nessa chávena de chá te faz ouvir o que eu não digo: ao cresc(h)er, preferia que te parecesses mais com a tua mãe do velho testamento do que com teu pai. Mas prefiro mais que não pese o peso das divagações. Combinamos assim: conserva o teu olhar de menino que eu vou conservando em algum lugar aquele meu, de menina, até que uma nova realidade nos torne grandes amigos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Magnólia

Recordo de quando a porta se abriu - ambos tínhamos as chaves. Éramos um para cada lado do batente - nos olhando longamente. Tu tinhas, altivo, uma mochila vazia nas costas. Eu tinha o rosto, a roupa, os cabelos e o corpo, mas sobretudo o rosto, envolto em uma gosma espessa translúcida que escorria lenta de cima para baixo de mim, como na cena que fez de Carrie a estranha. O visgo me avançava da raiz à ponta dos cabelos, das ancas até os pés descalços tocando o chão, das sobrancelhas para a parte alta da maçã do rosto, encobrindo tudo com a forma de estalactites recém formadas. Tudo em mim grudava e dava asco. Tinha cheiro de umidade, noite, absurdo, veneno branco e gelado, canto de parede e bolor.
Eram os resquícios de uma intensa chuva de sapos
ocorrida do lado de dentro.
E nós ali, parados numa manhã seguinte - como se a porta fosse um portal e quem ousasse atravessar pudesse se esfarelar, moer ou ser abduzido. Tu vinhas de fora. Muito de fora do meu redemoinho, ainda fresco da rua, ares de aurora, normalidade, retidão, banho tomado. Foi também tomado da surpresa de me ver naquele estado. Quis saber se eu conseguia enxergar. Te disse: quase não.
E tu deixando de acreditar, como é que pode uma coisa dessas. Ali nasceram mil perguntas insistentes. Sempre as mesmas, a serem feitas de jeitos novos, às quais me custa responder. Sinto que preciso soprar algo em voz baixa e mansa para fora, mas me falta ânimo. Meus lábios semicerrados de não se deixar intoxicar por este caldo gelatinoso que escorre abundante.
A ponto de só conseguir dizer: quase não. E então o vulto dos teus opositores se estendendo na minha direção. A porta, um portal atravessado afinal, pondo à prova uma evolução inteira para tentares me limpar com as pontas dos dedos os dois olhos ao mesmo tempo, direita para a esquerda, esquerda para a direita.
- E agora? Agora tu enxergas de novo?
E te fiz que sim, assentindo com a cabeça para nos mirarmos com intensa e pesada demora. Limpo e suja, real e real, inédito. Prometi não dizer mais “necessário”.
Suspeitei que este visgo e este asco se regenerariam de tempos em tempos, impacientes, de dentro para fora de mim. Depois de dentro de ti para fora de mim. Por fim de dentro de ti para dentro de mim.
Sim, esta também sou eu. Sou feita também desta seiva lisa e pegajosa que parece transpirada diretamente dos meus recônditos - e às vezes se acumula e se avoluma numa camada grossa que vai me circulando para formar um conjunto de mim, que também sou eu. Toca que vais sentir que eu penso, insistente: será que um dia saberei te fazer gostar de navegar sem espanto no fel e no mel disto tudo - que também sou eu, e eu também não entendo?