segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Autolóctone


"Favela venceu" é história que vende bem. É o mecanismo psíquico de um Holanda vs. Camarões: torcemos sempre por Camarões. Na dúvida, o menor IDH. E quem não faz essa conta rápido e de cabeça é maluco. Ou não foi atravessado pela ideia da mobilidade social à brasileira. Ou finge que ama muito um tataravô de cabelo bem branquinho que nunca nem conheceu. Das três, uma. Às vezes duas. Gabaritando é um hat trick, como só eles mesmos, tão anglicistas, seriam capazes de dizer sobre si mesmos achando bonito e óbvio. Tão alfabetizados em manifestar o pedigree bilíngue. Se confesso o que confesso é por mera eliminação. É o que me sobra pra ser coerente já que compro tão mal o bem nascido que seguiu vencendo e acha que é grande coisa. Pareidolia às avessas: eu simplesmente não sei ver mérito nem onde eles têm. Preciso me esforçar. É que essa história sempre me transporta de volta

Ao limoeiro. Jamais esquecido no canto dos fundos do terreno. O limoeiro que vivia vazio, porque vizinho tinha de monte e pedido de limão o equivalente ao número dos filhos de cada, isso quando eram dos que pediam e não dos que iam entrando pra pegar mesmo que a gente não estivesse em casa. Não importa o quanto a árvore fosse carregada das verdes promessas de fruto maduro, havia um sentimento de que tinha sempre pouco limão disponível. Talvez usássemos demais. A impressão que ficou em mim é a de que era muita oferta e o dobro de demanda, ao redor. Havia também os limões que caíam bem do alto onde não se alcançava pra apanhar e ficavam caídos cirandando o tronco num cenário de desabamentos passados colorindo o cinza da pedra lousa, a tela-chão abstrata de respingos laranjas de casca e grumos, eram dos caipiras, e tons de um mofo branco e esverdeado, os mais vulgares de todos, depois escuros esquecidos e a essa altura já quase da cor da pedra, de tão marrons acinzentados. Esse era o pé de limão — é que se penso bem não dizíamos “limoeiro”, era só o pé de limão. Foi grande desde que me lembro, nascido ou plantado antes de mim num canto que sobrou logo depois do viveiro, que era telado em cima e dos dois lados. A tela partia da churrasqueira e ia dar no muro alto de fazer a extrema dos fundos, lote com o lote do mesmo tamanho exato do vizinho da outra rua de apelido engraçado — ou com o casal de vizinhas que uma era a ex-mulher do primeiro, este que depois disso de engraçado só tinha o apelido, era um coitado, na boca do povo não tinha nada pior que ser trocado ou sucedido por uma mulher-macho. Foi ali, bem ali, que aprendi. Tudo isso e que um quadrado telado onde vive ave dentro chamava Viveiro. Trava a língua e o nariz só de lembrar dizendo rápido: era um viveiro de passarinhos que vivia cheio, esvaziou mais tarde e ficou sempre

O cheiro. É um pavor rimar pobre assim mas eu preciso ainda dizer que não sei o que veio Primeiro. O monte de canarinho, gaiola, ovo choco, esse não vingou, essa é uma feminha, o cheiro de penas com textura de alpiste espalhado onde não devia, porque caía sempre das gavetinhas, que alpiste é coisa bem miúda, e a merda de passarinho respingada pelas paredes também muito onde não devia mas sabe como é, gaiola tem que ser suspensa, porque não se podia mais ter viveiro embora gaiola acho agora que também já não. São esparsas e pouco lineares as minhas lembranças de quando tinha e depois já não tinha mais bicho no viveiro, o viveiro ficou lá mais um tempão vazio e cheirando mal, a palavra Ibama acho até que nunca foi dita, mas teve aquele vizinho, o marido da Muda, que se incomodou com a polícia e teve que se desfazer de tudo acho até que pagou uma multa, e de repente isso acendeu um alerta de que algo no fim dos tempos havia começado a tornar feio que um homem feito não pudesse mais se provar mais sabido que os outros bichos ao encarcerá-los assim, de modo tão diligente, só pra bonito e pra ouvir o canto. Pra ter viveiro bastava ter e telar um canto. Se tudo desse certo o canto era bonito como nas fitas que, se os filhotinhos demorassem a aprender, o pai pegava emprestadas e botava tocar pra incentivá-los e ensiná-los como é que faziam livres na natureza os seus antepassados. Era quase como se os bichos lá em casa não cantassem espontaneamente tão bem porque só vissem

Cor de construção. Construir — um verbo assim no infinitivo permanente da escassez da verba para terminar. A tonalidade do cimento cru da Área de festaS a que chamávamos Ranchinho com a parede eternamente por pintar, subindo um tanto de umidade a pouco menos da metade, como também subia pelos muros que deviam ser brancos porque eles foram revestidos de cal em algum momento mas já fazia tempo. No Ranchinho um quarto à direita de quem entra com a cama de mola de solteiro pra pormos coisas em cima, o travesseiro velho de pena de ganso que ninguém usava, a mesa de passar com a cobertinha verde esfiapada, a antiga estante da vó que virou nossa estante de guardar sapatos e bagulhos, metade dela tá lá na casa da mãe até hoje, não se extrai mais madeira do mato como antigamente. Mas as paredes. O que me aponta do chão à memória da Laurentino, 35, são agora aquelas paredes. Em toda a área um cinza ímpar revelado em 10x15 onde e quando comemorei vestida de Chiquinha, em cima de um barril bem enfeitadinho, os meus dois ou três anos. Uma blusinha vermelha de manga comprida com a jardineirinha jeans por cima, a pose de quem sorri se achando uma artista na frente dos outros personagens — bem desenhados, bem pintados de guache e bem colados nesta parede entre o quarto da cama de mola e a lavanderia, digo, a lavação, digo, também a nossa Área de festaS, sim sim, Chaves e Chapolin coladinhos com fita bem direto no cimento. Eu primeiro sozinha em forma de açucareiro, na seguinte do lado da bisa com chapeuzinho de papelão sem mostrar os dentes mesmo antes dela usar a cadeira de rodas, e aí eu sorrindo com as tias mas só as por parte de pai (não sei o que houve de anormal naquele ano, ou: meu deus como rendiam pouco os filmes de vinte e quatro poses, ou: onde é que mijaram as visitas desta festa e de todas as outras feitas ali só pode ter sido no banheiro lá de dentro que nesse daqui tem perereca de monte e é onde a mãe guarda as vassouras e nem tem porta, ou: como é que se faz uma festa com duas famílias que somam 30 cabeças se contar as madrinhas no mesmo lugar onde moram um tanque de duas cubas que vivia cheio de fraldas de pano e com sorte já também aquela Wanke de madeira e carambola apartada da centrífuga que às vezes dava choque e saía pulando, tudo disputando o espaço com as cadeiras apinhadas e os pratinhos de plástico nas mãos). As fotos desbotam este ângulo da minha memória mas, porque foram reveladas, contrastam pouco a cor de construção das paredes com o personagem do Seu Madruga e com os

Outros cômodos da Grande Ampliação. Que em dialeto de pobre ainda se chama Puxado. É que arquiteto nenhum amplia, ou orça, avaliza ou faz fiado em 120 vezes — como ousou fazer a Caixa Econômica em troca de um lote e quatro cômodos — uma verdadeira e documentada ampliação, propriamente dita. Tenho pra mim que a lá de casa começou com um sonho de grandeza, uma caneta, um pedreiro que aceitava pedalar, o pai de servente e a mãe no desenho. A Grande Ampliação foi simultânea à construção do Ranchinho-Área de festaS, eu acho. Tudo num pacote só. Só não tenho certeza porque parecia um defeito grande de planejamento do desenho as telhas de uma não conversarem se encostando com os eternites do outro, deixando assim escoar a chuva na gente quando precisava passar daqui pra lá e pelas paredes, que com a falta de tinta em dia de chuva sempre pareciam recém construídas, de tão úmidas. Cada piolho e lêndea que eu tive viu ali, sentadas na porta da cozinha, as luzes dos raios de sol incidirem numa folha de caderno bem branquinha só porque faltava uma folha, quero dizer, na verdade uma fileira inteira de folhas de telha ou de eternite pra ligar o Puxado ao Ranchinho. Ainda assim, cada tijolo que subia era um novo sinal, orgulhoso porque distintivo, das outras casas lá da COHAB (talvez o certo fosse dizer “o” COHAB, de Conjunto Habitacional, mas acabou pegando mais o gênero feminino em forma de gratidão à Companhia que viabilizou a compra). De saída as casas eram pra ser iguaizinhas e este plano bem no princípio deu bem certo. Todas tinham o relógio de medir a luz na parede da frente, descentralizado. Todas brancas. Duas janelas de ferro pesadas de correr com aquele engate tenebroso que por tanto tempo eu nem alcançava. Exceto as casas de esquina. Essas eram desde o início bem maiores e mais vistosas, podiam ter duas frentes (mas não tinham), sei de cor até hoje os nomes da maioria dos donos, um ou outro foi se mudando, algum estão lá até hoje, foram bem poucos os que eu nunca soube quem eram, estes que por milagre eram dos mais reservados. A da esquina do nosso vizinho de parede era grandona e cheia de telhados. É porque ele é pedreiro daí fica mais fácil, o pai dizia. Um pedreiro que depois vendeu pro outro, que depois vendeu pra outro, quase não dá pra acreditar, foram três vizinhos pedreiros seguidos, cada um ampliou a mansão mais ainda, na frente da porta do último eu me humilhei algumas vezes pela companhia da filha que ficou mocinha antes e já não queria mais jogar vôlei comigo naquele verão que encarnei de jogar vôlei com ela. Lembro do sentimento de uma vez subir as escadas do mezanino dos fundos, onde a mãe dela estendia a roupa, e ver a nossa casa mais de cima, e pensar então é assim que é morar numa casa de dois andares. Embora nem fosse. Eu meço a evolução dos nossos Puxados, quero dizer, das nossas Ampliações, pelas fotos — quando se começa a tê-las nos álbuns, ano a ano, quase só nos meus aniversários, e eu comemorei todos com bolo, convite e decoração, não pifou um. Assim me vem logo à mente também a

Suíte, que antes de ser pintada e usada também foi salinha pra uma das minhas festas, aquela em que eu fui vestida de Minnie, orelhinhas e tudo. A janela de madeira grossa grande e aberta para ventilar bem o cheiro da obra, eu não lembro se choveu ou foi só pra variar que a festa foi ali, quem sabe pra mostrar a ampliação pra todas as visitas possíveis de uma vez, do que eu lembro bem é da criançada se acotovelando na mesa emprestada do Centro Social com os bancos bem compridos dos dois lados e da minha colcha de solteiro esticadinha também da Minnie servindo de painel. Havia um justo temor do reboco puxar um fiozinho ou outro ou estourar os balões, então a mãe escolheu bem onde por as taxinhas contra o forro e amarrou cada balão numa tripa, pendurados. Eu devia estar fazendo uns cinco. Era assim a Suíte que nunca chegou a ser, cujo esqueleto em pé do rascunho de um banheiro que por ali seria acessado nunca foi recheado de móveis, para ser inaugurado, nunca foi posto o piso, nem pintado por dentro ele nunca foi, quem dirá tirar da imaginação aquele guarda-roupa embutido com a porta oculta que lhe esconderia a entrada como o que tinha na casa daquela vizinha de cima que eu chamava de tia, porque trabalhava na minha creche, e era casada com o vereador e mãe do menininho quase da minha idade que os irmãos dele fizeram eu beijar aos quatro e aí na semana seguinte eu peguei caxumba e ele também. Não instalaram nem o vaso sanitário naquele Puxado que se pretendia Suíte, tinham outras prioridades, portanto também nunca vi a banheira da qual eu ouvia falar que um dia teríamos. É incrível como a própria ideia sonhada de uma prosperidade futura pode ascender a classe social metafórica dentro da gente, dar um senso de importância e merecimento e nos acender — até inflamar — um pouco de ego por dentro dos brios. Aquele cômodo que era pra ser o mais chique e promover o Quarto do Pai e da Mãe a Suíte ficou mesmo foi no chão batido. Servindo de depósito pras coisas mais esquecíveis de todas: saco de argamassa, resto da construção. Um dia de noite cogitei me esconder ali para sempre quando o filho daquele amigo falecido do pai entrou porta adentro segurando um sapo vivo pela perna na minha direção só pra ver o meu espanto e conseguiu. Eu ainda sinto a poeira dali me corroer o nariz só de lembrar, a porta vivia fechada era por isso, a mãe sempre teve rinite, e se abríamos era só de vez em quando, quando chegava visita de longe, para renovar as promessas de um dia ter uma banheira, mas ainda não era pra agora. Parentes distantes que vinham de muitos em muitos anos fazer a via sacra em todos os primos, mais era os por parte de pai, e então gostavam de passar na COHAB porque assim visitavam logo quatro de uma vez. Ainda sei reproduzir de cabeça como era o marrom do padrão de madeira com figuras em nós um tanto quanto diabólicos, se fosse brincar de adivinhar igual nuvem, a pseudo-madeira desenhada no compensado das portas do armário e da base da penteadeira com o espelho oval. Foi dentro desse armário que eu descobri bem cedo que o Papai Noel não existia, porque se não por qual razão ele ia deixar o meu presente atrás das calças jeans do pai, e já no comecinho de dezembro, que é quando caíam o pagamento e o décimo, ainda por cima. Não sei mais quem deu essa dica de procurar mas achei esta verdade enorme para sempre e ainda tive que escondê-la dos mais novos e das amigas que ainda não sabiam. Era chumbado bem alto na parede o suporte da TV preta de tubo, a única da casa, das grandonas de tela arredondada, acho que tinha umas vinte e quatro polegadas. Alta demais pra assistirmos os três deitados na cama mas esse era também o único jeito do pai ter ângulo pra ver o Globo Esporte no lugar dele da mesa azul de quatro lugares na Copa, a uma distância do corredor, enquanto a gente almoçava. O lugar dele era o único que não mudava nunca. Na Grande Ampliação o principal era fazer

Cozinha e Copa, conjugadas. Por dentro azulejos até nas paredes com aquela divisoriazinha horizontal compridinha estampada na altura dos olhos, por fora só o reboco. Cozinha e Copa divididas só por uma estante projetada pela mãe com parede até a cintura e a madeira com aquele verniz pegajoso dali pra cima até chegar no teto. Os nichos vazados dando vista e pompa, não sei onde é que ela aprendeu que isso era moda, mas na COHAB ninguém mais tinha igual então eu achava bonito e bastante moderno. Era nos nichos que ficavam os potes verdes com flor pintada no gesso, o pote de balas, e o meu aquário pequeno pra todas as tartarugas que tive sucessivas, o mesmo nome, até ficarem grandes e gordas demais porque foram tratadas pelo vizinho da multa das aves que vinha tratar os bichos muito generosamente quando a gente viajava de excursão pra Gravatá no andar de baixo da casa do Nereu, e isso era todo fim de ano. Tinha o armário das louças e travessas na Copa, esse foi herdado de uma tia do pai, depois uma tia minha fez questão, porque aquele era o dela, porque a tia que doou na verdade era madrinha era dela, o nosso devia ser o outro, que estava lá não sei aonde, ela buscou o nosso lá de casa, pintou todo de branco e a mãe nunca perdoou aquela violência estética à memória da mobília antiga onde é que já se viu pintar madeira de lei de branco. Tinha as quatro cadeiras pesadas que faziam barulho quando arrastava, em que nos sentávamos pra enrolar os brigadeiros nas vésperas, ou molhar o pãozinho do pão picante na água com caldo de galinha, ou só comer o macarrão do almoço. Entre a Copa e a Cozinha se via bem de perto a estante-portal, formando também um batente, que dividia mas não dividia, talvez multiplicava em número os cômodos, mas se eu paro um minutinho pra pensar não era tão apertado assim para ser só um em vez de dois. Na Cozinha, a fruteira. A geladeira marrom que viveu lá em casa até esses dias, o forno idem, um fogão de quatro bocas e o jogo americano amarelinho, amarronzado, que também tentava imitar madeira e não conseguia. Só que só de dizer que tínhamos um “aéreo” já ficava bonito combinar a estante da pia e a cuba toda de inox com o armário que ficava em cima da outra parede e eu precisava arrastar as cadeiras pra alcançar, não dava pra botar os dois juntos, é que na parede da pia tinha a janela com vista pra parede cega dos três vizinhos pedreiros, um por vez. Quase não dá pra crer que no vão entre a cozinha e o muro alto coube um dia uma piscina de mil litros, espreitando toda

A área externa. Se eu penso em espiral na área externa, começava no quartinho atulhado de bagunça pra aproveitar a parede também cega da garagem, só tinha a porta, não tinha janela, nele o pai guardava os alpistes, outros suplementos, parafusos, a máquina de cortar grama e as ferramentas em prateleiras altas, mais tarde vieram os potões de plástico da sorveteria que os meus tios faliram, como eram úteis e bem espaçosos e vedavam pra não entrar bicho, bons mesmo de guardar todas as coisas, os adultos diziam e agradeciam quando chegavam. Seguindo a calçada se passava por aquele vão entre o Puxado e o Ranchinho, que por sua vez tinha aquela estante dos sapatos e bagulhos, e eu talvez na época não me perguntava pra que ter mais que um espaço pra acumular bagunça até que, mais tarde, cheguei à resposta de que ter só o suficiente alimenta uma vontade de certo acúmulo, dentro do possível, nem que seja de bagunça. Era uma época em que eu brincava pouco, eu não sei bem por quê mas tenho lá minhas suspeitas, nunca subi no pé de limão, por exemplo. Não dava trabalho. Eu gostava era de imaginar mundos maiores, de tirar dez com três estrelinhas e um parabéns da professora escrito em cima com a caneta vermelha, de ler, de que me pedissem pra contar até dez pra eu perguntar se era em inglês ou em português, que nessa época eu fazia aulinha com uma conhecida da mãe, depois não deu mais. Gostava de não dar trabalho. A primeira bicicleta eu ganhei bem tarde para os padrões dos filhos dos vizinhos, é que em lugar cheio de morro é fácil criança se matar, o teu pai é motorista, minha filha, tu não faz ideia o que ele vê de perigo com criança e bicicleta por aí. Antes então um patinete, no qual eu mesmo quase me matei no piso liso da garagem passando vergonha porque não sabia usar o freio, o campinho na frente de casa tava cheio de meninos jogando bola, inclusive aquele que eu achava o mais bonito mas criança não namora ainda mais depois de pegar caxumba porque beijou um amiguinho aos quatro. Não lembro de carregar bonecas, nem de niná-las, nem dar a elas a mamadeira. Lembro de um tabuleiro de ludo, mas este é fresco na memória porque trouxe comigo, ainda deve estar por aqui em algum lugar. No verso do tabuleiro os riscos improvisados pra jogar Trilha com nove baguinhos de feijão, nove de milho, que comece a diversão. Lembro de uma Barbie só, loira e original, e a minha casa dela: que começava e terminava em duas peças, um armário de roupa e uma caminha, de madeira, sem pintar, mas no capricho, devem ter vindo da fábrica onde trabalhava o amigo do pai que fazia e vendia tacos de sinuca, um dia até me deu um taco de bets com meu nome completo pirografado pra jogar com os piás na rua reta, que era a que eles moravam, este vizinho era bem querido e tinha uma filha quase da minha idade, fez um taco pra ela e depois um pra mim, e teve outra vez que ele ajudou a mãe a matar um rato com a espingarda de pressão quando o pai foi pro Mato Grosso de viagem e ficamos um pouco nervosas para lidar com aquilo sozinhas tudo só confiando no veneno que o pai tinha deixado. Depois da calçada entre o Puxado e o Ranchinho, o gramado enorme — para as minhas noções de distância e classe — que pela esquerda de quem via de fora circulava a nossa casa inteira. Descobri que não era tão grande quando inventei de ter um collie, é a raça da Lessie, eu dizia, mas o meu é macho, ele se chama Tigor. Durou nem três meses. Roeu tudo o que pode. Fugia muito e a mãe fazia eu ir atrás que eu é que tinha inventado de ter cachorro, ela já tinha me avisado que nunca gostou, bicho era uma coisa meio nojenta e que dava trabalho nas horas vagas. Em espiral a grama, por este curto período recheada de grossos cocôs do Tigor, seguia desde a calçada que terminava na Área até a entrada da garagem que só começou a ser usada para o seu propósito quando ganhei a motinho na rifa da igreja. Eu devia ter uns oito, já era sortuda na época, não importava o quanto meu pai comprasse, o importante era eu ter sorte, tem uma foto minha abraçada na amiga que me vendeu o bilhete e depois virou minha comadre. Logo o pai trocou a Biz num Uno Mille vermelho, daqueles bem quadradinhos, com as portas odiosamente leves. Hoje em dia, que conheço um pouquinho mais de carro e meço melhor de olho, sei dizer que da parede ali dos cômodos do lado esquerdo até o muro da madrinha (com quem a mãe só falava quando o pai não tava em casa, porque a partir de um ponto passaram a não se dar, as razões me são obscuras até hoje) devia dar uns quatro metros até começar o canteiro. Um pé de boldo para quando nos doía a barriga, uma folhagem ou outra, lembro de ter pouca flor, mas é que a mãe trabalhava muito, saía cedo e voltava tarde, por isso eu ficava bastante com o pai, ela não tinha tempo como tinha a vó pra fazer um jardim bem florido, é que a vó se aposentou quando eu nasci e ajudou a cuidar de mim, depois vieram as tias e moraram aqui uma das três a cada ano, me disseram, mas desse período tão longe eu quase não lembro. No canteiro se escondia o jabuti. A criatura, jamais batizada, a cada três meses era por mim encontrada e ganhava metade de um tomate, quando tinha na geladeira. Outra coisa ele não roía, ou pelo menos eu não via, mas tomate era bonito de ver ele comer, mastigando sem ter os dentes. Eu nunca entendi bem o negócio que o meu pai fez pra eu ter aquele bicho, parecia um favor de amigo, do meu pai não é de se duvidar que tenha pego pra ajudar a desovar, nem de que tenha aceitado ou pedido um espécime porque ninguém mais na COHAB tinha uma tartaruga no jardim e isso nos tornava de algum jeito um pouco mais distintos, pelo menos pela via da excentricidade, porque jabuti nunca custou caro, só era raro, é que o pai sempre foi desses que gostou de uma inovação e de ter algo primeiro que os outros. Nunca ninguém soube me explicar a contento do que o bicho se alimentava exatamente (fora os meios dos tomates), ou para onde ele ia nos longos períodos em que não o encontrávamos por nada, mesmo não tendo tanto assim onde procurar no terreno e olha que às vezes eu me dedicava porque pra mim parecia grande. Quase parecia que o canteiro tinha um túnel que dava acesso aos outros lotes COHAB afora. O jabuti foi um mistério dos que ficaram sem desvendar no meu imaginário até que um dia sumiu de vez, ou sumiram com ele, ou fecharam o túnel, ou meu pai embutiu no preço da casa quando eu tinha onze e ele vendeu pra aquele crente que parecia sério e nos mudamos pra morar de aluguel na outra casa. Ficou o banheiro da Suíte, inacabado, acho que o comprador deu conta de terminar, talvez ficou o jabuti, e com toda a certeza ficou a antena parabólica, que era bem na frente do terreno e sem ela a TV não pegava, o nosso cartão de visita com a base de concreto, só sobrava o espaço pra botar placa de política a cada dois ou quatro anos, o bom mesmo era quando o candidato do pai ganhava, o de prefeito e o de vereador, que se não perigava de botarem ele de novo trabalhar no caminhão do lixo aturando desaforo daquele vizinho de cima que bem naquela vez soltou um foguete atrás do caminhão pra comemorar que perdemos a eleição no viaduto lá da praça, de tocaia, o desgraçado. Esta história e outras parecidas, naquela casa, eu ouvi cem vezes. A antena ou a placa, quando era o caso de placa, faziam sombra na grama e bem na altura da janela do

Meu quarto. Eu tinha a cama de solteiro tubular cor de rosa claro com acabamentos dourados nas pontas, ela fazia jogo com a minha penteadeira com prateleiras de vidro e espelho de meio corpo, se sentasse na cadeira também tubular e um pouco estofada se via bem o rosto enquanto eu penteava os cabelos, tudo muito na mesma paleta, o crème de la crème do refinamento noventista lá da COHAB, falando assim nem parecia que o meu armário era o mesmo desde que eu era bebê, fazendo conjunto com a cômoda em que a mãe me trocava em cima e agora guardava as toalhas da casa, e talvez os tapetes, e depois os meus gibis da Turma da Mônica, e claro, as roupas da outra estação, e as que deixavam de me servir mas podia que alguma tia engravidasse e aí era melhor doar pra parente do que pra estranho porque custaram caro, é que o armário só tinha uma porta e meia e quatro gavetinhas que às vezes emperravam nas quais depois aquele amigo do pai, pra revitalizar, fez uma Pátina. A palavra Pátina sendo tão técnica que só podia mesmo sair da boca de um artesão-jardineiro que era artista por hobby nas horas vagas do emprego que pagava tão bem, lá na Celesc. Ele depois separou da mãe dos filhos e se juntou com aquela outra vizinha da rua de cima que sempre foi tão calada e tinha um filho meio esquisitão o que será que eles conversam, será que o menino é meio doente, ela nunca mostra os dentes pra gente, era o que eu ouvia especular lá em casa sempre que a gente encontrava eles no mercado. Meu quarto, em que tive tanto medo de escuro e de ouvir barulhos, fazia parede meia com o

Escritório estreito, a estante de um metro de largura e três prateleiras de altura bem cheias de livros da mãe, alguns até eram meus, bem mais que a média das outras casas em que eu já tinha entrado, mais livro do que lá em casa eu só via na biblioteca do colégio. Eu tinha um orgulho do Escritório, embora só coubesse uma pessoa em pé entre a estante e a parede, no máximo duas mas uma enfileirada na frente da Escrivaninha, essa palavra sim é que nos dava ares de fidalgos, muito mais do que ter Escritório importante mesmo era ter e usar Escrivaninha, estudiosas que éramos a minha mãe e eu, inteligente como a mãe, eles diziam, ali era o meu lugar de fazer as tarefas e ler um gibi, ou o volumão grosso com os clássicos da Disney que o pai me comprou diretamente de um ambulante e eu poupava a leitura para sempre ter novidade, anos mais tarde sequei uma rosa dentro e tive que arrancar uma página porque manchou. Um dia, num armarinho próprio pra isso, branco com as bordas pretas de borracha, teve até um computador, que na época também era de tubo, a cor algo entre o bege e o cinza, protegido com as capas plásticas para não pegar tanta poeira, é que fomos uma das primeiras famílias a ter, tinha que cuidar, isso era chique demais para um pobre, para ter internet tivemos até telefone de linha e o nosso já era dos sem fio, quase não dá para crer que os anos 2000 começaram tão bem. Pra falar com quem também tinha, quando era motivo importante que chega pra ligar, dava pra andar pela casa ou sentar num dos módulos do

Sofá verde-musgo-militar, separado peça por peça, acomodado na sala de estar. Um confortinho dividido em módulos, assim era fácil de limpar, de compor dois sentam aqui e três ali, de ornar com o piso de tacos em que a mãe uma vez derrubou vinho quando foi servir o pai com o garrafão de cinco litros mas nessa época eu não era nem nascida soube só de ouvir contar que impregnou e nunca mais saiu a mancha, bem depois é que puseram piso. O sofá com aquela peça de canto em cima de onde ficava o presépio, e a textura que marcava a pele da perna de quem sentava, outro dia comprei uma blusa com a mesma textura e cheguei a marejar só de lembrar dos frisos. Uma porta de entrada na casa dava na sala sem TV, a outra na Copa. O coração da casa era o banheiro. Uns três por dois de tamanho, uma pia bem pequena e o espelho de guardar as escovas de dente. O espaço do chuveiro era delimitado pela cortina de plástico que colava no corpo molhado da gente e nunca secava direito, porque a janela dava para a garagem, que por sua vez dava para a parede cega do muro da casona da esquina.

As boas-vindas eram por conta do portão — manual, é claro. Nele encostada a cesta do lixo fixa, de alumínio vazado. Quatro colunas baixas de tijolinho à vista (igual na rodoviária, no fórum e no pavilhão, parecíamos até bairristas), essas colunas firmando o portão prateado com um acabamento de espetos, esse era o mais seguro de todos, tanto que está lá até hoje, às vezes visito pelo Google Maps tentando sempre adivinhar quem é o senhor com a cara borrada passando bem na frente, que eu não conheço mais, de quem é aquela uma perna entrando na porta da sala e que nome tem o cachorro cujo rabo foi capturado porque agora vive solto por ali. Uma vez por ano passo na frente pessoalmente, de propósito, para ver o que eu sinto olhando aquele endereço, mesmo sabendo que há muito aquela casa, que ainda está por lá, não é mais a mesma que agora eu tento descrever.

O memorial descritivo da obra em que eu nasci e me criei dentro hoje pode virar a tentativa turva de uma vontade de imprimir "Favela venceu" na minha história só pra vender bem. É que pobre, pobre mesmo, a gente nunca foi. Pobre era só a vizinha da rua de cima que, nos mesmos metros quadrados, criava cinco filhos e um neto e às vezes ganhava de nós o feijão que sobrava cozido direto da panela de pressão, e eu ficava esperando ela lavar com o paninho pra nos devolver, ela não tinha nem esponja, eu espiava da porta pra dentro e era até mais coisa que não tinha do que as que ela tinha, a mãe dizia que era feio entrar sem ser convidada e mais ainda ficar reparando, mas mandava eu levar o feijão lá às vezes e eu sempre fui das involuntariamente reparadeiras dos contrastes. Também sempre fui filha única de pais casados, assalariados, criada com renda baixa que chega pro incentivo imobiliário do governo, mas alta demais pra passar necessidade. De pais que nunca tiveram reserva, de modo que a maldade do Collor não lhes atingiu, mas a bondade dele e do Kleinübing sim. Se bem que se é que venceram deve ter sido tudo por mérito deles, que trabalhavam bastante, sabe-se lá como deram conta de honrar todas as parcelas, teve quem não conseguisse, a vida era dureza, no início era mais ainda, como diz a minha mãe sempre que lembra da época.

Eu sou de um ano antes do Real. Embalei nos braços dos primeiros meses de uma inflação galopante e do arrocho, mas cresci revestida do brilho da promessa de que a vida vai melhorar, como ainda jura até hoje o Martinho da Vila. Vesti Lilica Ripilica. E uma coisinha doada dos outros ou outra. Hoje não sei definir bem em que ponto da escala isso me pôs, só sei que saber me importa tanto, tanto assim. Quando empobreço o morro do passado das minhas memórias é porque vi, com os próprios olhos, um Puxado ser rascunhado e levantado do zero. Ou porque, assim, a altitude que percorri até chegar aqui se avoluma e talvez as minhas façanhas pareçam mais heroicas. Ambiente hostil, muita humildade e suor.

O Visconde mais próximo da minha infância foi o de Sabugosa. Este passado é imutável. Receio, porém, que os olhinhos que lhe testemunharam podem trair o tempo e sucumbir à ideologia, míopes de tanto não crer em meritocracia, astigmatas espremidos para tentar focar em entender do que é mesmo que se trata o Privilégio. Eu sei que eu me movi de um ponto a outro, entre um acesso e outros, mas isso foi depois ou enquanto eu me movia entre um cômodo daquele e outro? Entre uma cidade e outra, e aí entre uma experiência e outra. Ou pendurada em uma sorte até a outra mão alcançar a outra. Até hoje não sei dizer, embora tanto já tenha me esforçado, de onde mesmo é que eu parti para a escalada e com que qualidade de equipamentos. Só sei que eu sou de lá. Minha história ainda é construída e escrita com o cimento daquelas paredes. Grata por ter podido crescer. Torcendo pra obra acabar. Estou sempre, ao mesmo tempo, aqui e lá. Laurentino, 35. Camarões.