quarta-feira, 26 de novembro de 2025

O Fantasma do Vô Pedro


Presta atenção nesta história
de assombração
latina e boa demais
pra não ser contada
Pensei até arriscar um
Cordel, e
Tava com a
Xilogravura
Já encomendada.

Se desisti é que foi
Por chapéu de palha
E não de cangaceiro
Que eu fui criada

Mais ao sul do Equador preferimos
À crueza dos livrinhos
de folha fina com capa
A tradição oral
bem contada.

***

Para cirandar nos tempos,
Uma cerveja e outras
E já que em sábados de festa ficamos todos alegres
Eu provoquei a tia,
meio embriagada,
só pra ver do que ela ainda se lembrava:
— Ô, tia, e aquela história do Fantasma
do Vô Pedro,
hein?

Ela acendeu olhos bem verdes
crente
de que há muito eu sabia de quase tudo mas
Animada de poder contribuir
nem que com dez centavos
pro debate em público debaixo
da nossa árvore genealógica:
— O que eu sei é
o que me contaram.

Pois era isso mesmo que eu queria
ouvir
de novo, de preferência
bebendo
e de outra fonte,
Cada história destas
merece em voz alta cem vezes ser
recontada
para que em cada uma
um aumente um ponto
à margem da falta de memória
registrada
e em três vias nos
Cartórios da Capital
passada.

É que esta história é o fino
do que a gente herdou mas
por dentro.

— Era uma pessoa que ao mesmo
tempo que tinha, não tinha
as coisas.
Isso ela repetiu quatro vezes
que é pra que a gente
reordenasse as vírgulas
podendo supor
Se o que mais queria dizer
é que é de família a nossa
Inconstância ou
Generosidade ou então o
Mau tino pros negócios,
talvez até
Um pouco de cada
Eu acho sinceramente que é
isto e aquilo
tudo o que ela acha.
Ficou no ar
como ficou o Vô Pedro no fim:
— Era uma pessoa que ao mesmo tempo
que tinha, já não tinha mais
as coisas
materiais, eu suponho
que os melhores de nós são assim
Desapegados mesmo
Os piores também
mas obrigados.

A julgar por todos os homens que vieram
depois que eu conheci esta história
Dele,
Eu imagino o biso Pedro um João
meio Grilo, fico
rico, fico
pobre,
As sobrancelhas bem grossas
Pele de pardo pra mais
Cor de catuto que
empalidece sem sol
e isso é raro
As mãos ressecadas nas juntas
e isso é sempre
Meio magro;
A perna de varde que balança sem cansar
naquela ansiedade de estar
Sentado, existindo
Igual ainda fazem o pai
e o pai do pai, filho dele,
Bigode farto e bem pretinho
Como o vô
quando era novo
e eu vi de foto.

— Teve Mulher e uma dúzia de Filho,
até que um dia teve também um
Tumor
Na época era assim
que chamava o
Câncer.
Aqui não tinha tratamento
E ele saiu, como às vezes saía
por aí meio espaventado que era,
Só se soube pra onde
Semanas depois
Quando venceu a promissória do agiota
que veio cobrar a notícia:
Foi pra Floripa, dona Dora, disse que ia
ver se talvez não tinha
                                       o que fazer com
o Tumor.
Disse a
Ninguém
que se importava com ou
mandava nele, ele só
Foi
Quem ficou que adivinhasse
Por quê e
Para onde
Como
era costume.

— Diz que internou se dizendo
Indigente,
Entregou o corpo pra es-
tudo,
Abriram-lhe a cabeça
Morreu na operação
Deu-se para a ciência e
o maior do trabalho pros filhos
Que zarparam para lá com ainda mais dinheiro emprestado a juro e ainda tiveram que lidar depois
com a assombração ou
O Trauma
Ver o Pai Pedro deles
que deu entrada como
Indigente de propósito
Todo aberto e
espetado pelo queixo pendendo 
do teto do
Hospital
— Ou é assim que eu imagino,
é só o que me contaram. 
Escoava o sangue que não era útil para os es-
tudantes, para nós era porque era o mesmo que o nosso, enfim
reconhecido, era a cara dos seus e
Trazido para velar,
o corpo de um pai agora já sem
Vida e
os rompantes
e o Tumor.

Longe de mim romantizar a
Loucura só porque
O Louco é dos meus
mas talvez até era isso que desde cedo
fazia ele dar as descargas
elétricas
Nos outros,
tão ruim tão brabo e tão
Nervoso e talvez até um pouco
Triste também
A história dele eu não sei bem mas
O resto do tempo
quando não tava dando
e levando
choque
diz que ele era uma
Pessoa boa.

— Pelo menos no fim tinha o
Tumor
pra culpar, nós nem isso
então
culpamos ele.
A tia deu risada
sem repetir a palavra Fantasma,
ela acredita é na vida eterna
não nessas coisas,
só confirmou que acha sim que
talvez possa ser que o seu
Vô Pedro nos faça
visitas
A toda a sua linhagem
Um de nós
de cada vez.

Quando ele vem ficamos
Intragáveis,
exatamente como
ele era quando encostava
os fios, os fios não, não era fio era o
Tumor.

É bom já ir se acostumando com a ideia e enquanto ele
não vem, quem sabe
aproveitar pra
Arrumar bem a casa
Botar o que der no lugar, faz tanto tempo que
Alguns nem mexem nas gavetas
Será que é medo de serem pegos
Desprevenidos
com suas bagunças pra fora
Será que é por isso que
Comunicam mal
cada emoção
É o medo e a influência
da visagem,
Vai que o Vô Pedro aparece
de vereda
pra nos dar surto ou
susto
todinho para fora.

Assim, por solidariedade,
quando nos sobra um tempo e
pois moramos perto
Temerosos da visita repentina,
sempre anunciada,
Passamos uns para os outros
os panos
Que é pra mostrar o orgulho
e o capricho
em defender
o que sobrou do patrimônio
do patrimônio nada, do matrimônio
Com os quais talvez ele nunca se tenha
importado.
Vai saber quando o Vô Pedro
vem 
e para quem.
Não fosse ele não saberíamos o valor
que a faxina tem.

Quando ele não vem pensamos
Aleluia,
já não era sem tempo
Posso voltar
a ser alegre
Não é má criação nem desonra,
É que quando nos baixa o Vô Pedro não há
alegria
nervo ou
cônjuge
que aguente.

Mas quando se vai sabemos que já
já é outro de nós que vai ser
atormentado
com a aparição genética e caótica
talvez até meio entrópica
do Fantasma do Vô Pedro
que vagueia

Ele nos vaga é na veia

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Autolóctone


"Favela venceu" é história que vende bem. É o mecanismo psíquico de um Holanda vs. Camarões: torcemos sempre por Camarões. Na dúvida, o menor IDH. E quem não faz essa conta rápido e de cabeça é maluco. Ou não foi atravessado pela ideia da mobilidade social à brasileira. Ou finge que ama muito um tataravô de cabelo bem branquinho que nunca nem conheceu. Das três, uma. Às vezes duas. Gabaritando é um hat trick, como só eles mesmos, tão anglicistas, seriam capazes de dizer sobre si mesmos achando bonito e óbvio. Tão alfabetizados em manifestar o pedigree bilíngue. Se confesso o que confesso é por mera eliminação. É o que me sobra pra ser coerente já que compro tão mal o bem nascido que seguiu vencendo e acha que é grande coisa. Pareidolia às avessas: eu simplesmente não sei ver mérito nem onde eles têm. Preciso me esforçar. É que essa história sempre me transporta de volta

Ao limoeiro. Jamais esquecido no canto dos fundos do terreno. O limoeiro que vivia vazio, porque vizinho tinha de monte e pedido de limão o equivalente ao número dos filhos de cada, isso quando eram dos que pediam e não dos que iam entrando pra pegar mesmo que a gente não estivesse em casa. Não importa o quanto a árvore fosse carregada das verdes promessas de fruto maduro, havia um sentimento de que tinha sempre pouco limão disponível. Talvez usássemos demais. A impressão que ficou em mim é a de que era muita oferta e o dobro de demanda, ao redor. Havia também os limões que caíam bem do alto onde não se alcançava pra apanhar e ficavam caídos cirandando o tronco num cenário de desabamentos passados colorindo o cinza da pedra lousa, a tela-chão abstrata de respingos laranjas de casca e grumos, eram dos caipiras, e tons de um mofo branco e esverdeado, os mais vulgares de todos, depois escuros esquecidos e a essa altura já quase da cor da pedra, de tão marrons acinzentados. Esse era o pé de limão — é que se penso bem não dizíamos “limoeiro”, era só o pé de limão. Foi grande desde que me lembro, nascido ou plantado antes de mim num canto que sobrou logo depois do viveiro, que era telado em cima e dos dois lados. A tela partia da churrasqueira e ia dar no muro alto de fazer a extrema dos fundos, lote com o lote do mesmo tamanho exato do vizinho da outra rua de apelido engraçado — ou com o casal de vizinhas que uma era a ex-mulher do primeiro, este que depois disso de engraçado só tinha o apelido, era um coitado, na boca do povo não tinha nada pior que ser trocado ou sucedido por uma mulher-macho. Foi ali, bem ali, que aprendi. Tudo isso e que um quadrado telado onde vive ave dentro chamava Viveiro. Trava a língua e o nariz só de lembrar dizendo rápido: era um viveiro de passarinhos que vivia cheio, esvaziou mais tarde e ficou sempre

O cheiro. É um pavor rimar pobre assim mas eu preciso ainda dizer que não sei o que veio Primeiro. O monte de canarinho, gaiola, ovo choco, esse não vingou, essa é uma feminha, o cheiro de penas com textura de alpiste espalhado onde não devia, porque caía sempre das gavetinhas, que alpiste é coisa bem miúda, e a merda de passarinho respingada pelas paredes também muito onde não devia mas sabe como é, gaiola tem que ser suspensa, porque não se podia mais ter viveiro embora gaiola acho agora que também já não. São esparsas e pouco lineares as minhas lembranças de quando tinha e depois já não tinha mais bicho no viveiro, o viveiro ficou lá mais um tempão vazio e cheirando mal, a palavra Ibama acho até que nunca foi dita, mas teve aquele vizinho, o marido da Muda, que se incomodou com a polícia e teve que se desfazer de tudo acho até que pagou uma multa, e de repente isso acendeu um alerta de que algo no fim dos tempos havia começado a tornar feio que um homem feito não pudesse mais se provar mais sabido que os outros bichos ao encarcerá-los assim, de modo tão diligente, só pra bonito e pra ouvir o canto. Pra ter viveiro bastava ter e telar um canto. Se tudo desse certo o canto era bonito como nas fitas que, se os filhotinhos demorassem a aprender, o pai pegava emprestadas e botava tocar pra incentivá-los e ensiná-los como é que faziam livres na natureza os seus antepassados. Era quase como se os bichos lá em casa não cantassem espontaneamente tão bem porque só vissem

Cor de construção. Construir — um verbo assim no infinitivo permanente da escassez da verba para terminar. A tonalidade do cimento cru da Área de festaS a que chamávamos Ranchinho com a parede eternamente por pintar, subindo um tanto de umidade a pouco menos da metade, como também subia pelos muros que deviam ser brancos porque eles foram revestidos de cal em algum momento mas já fazia tempo. No Ranchinho um quarto à direita de quem entra com a cama de mola de solteiro pra pormos coisas em cima, o travesseiro velho de pena de ganso que ninguém usava, a mesa de passar com a cobertinha verde esfiapada, a antiga estante da vó que virou nossa estante de guardar sapatos e bagulhos, metade dela tá lá na casa da mãe até hoje, não se extrai mais madeira do mato como antigamente. Mas as paredes. O que me aponta do chão à memória da Laurentino, 35, são agora aquelas paredes. Em toda a área um cinza ímpar revelado em 10x15 onde e quando comemorei vestida de Chiquinha, em cima de um barril bem enfeitadinho, os meus dois ou três anos. Uma blusinha vermelha de manga comprida com a jardineirinha jeans por cima, a pose de quem sorri se achando uma artista na frente dos outros personagens — bem desenhados, bem pintados de guache e bem colados nesta parede entre o quarto da cama de mola e a lavanderia, digo, a lavação, digo, também a nossa Área de festaS, sim sim, Chaves e Chapolin coladinhos com fita bem direto no cimento. Eu primeiro sozinha em forma de açucareiro, na seguinte do lado da bisa com chapeuzinho de papelão sem mostrar os dentes mesmo antes dela usar a cadeira de rodas, e aí eu sorrindo com as tias mas só as por parte de pai (não sei o que houve de anormal naquele ano, ou: meu deus como rendiam pouco os filmes de vinte e quatro poses, ou: onde é que mijaram as visitas desta festa e de todas as outras feitas ali só pode ter sido no banheiro lá de dentro que nesse daqui tem perereca de monte e é onde a mãe guarda as vassouras e nem tem porta, ou: como é que se faz uma festa com duas famílias que somam 30 cabeças se contar as madrinhas no mesmo lugar onde moram um tanque de duas cubas que vivia cheio de fraldas de pano e com sorte já também aquela Wanke de madeira e carambola apartada da centrífuga que às vezes dava choque e saía pulando, tudo disputando o espaço com as cadeiras apinhadas e os pratinhos de plástico nas mãos). As fotos desbotam este ângulo da minha memória mas, porque foram reveladas, contrastam pouco a cor de construção das paredes com o personagem do Seu Madruga e com os

Outros cômodos da Grande Ampliação. Que em dialeto de pobre ainda se chama Puxado. É que arquiteto nenhum amplia, ou orça, avaliza ou faz fiado em 120 vezes — como ousou fazer a Caixa Econômica em troca de um lote e quatro cômodos — uma verdadeira e documentada ampliação, propriamente dita. Tenho pra mim que a lá de casa começou com um sonho de grandeza, uma caneta, um pedreiro que aceitava pedalar, o pai de servente e a mãe no desenho. A Grande Ampliação foi simultânea à construção do Ranchinho-Área de festaS, eu acho. Tudo num pacote só. Só não tenho certeza porque parecia um defeito grande de planejamento do desenho as telhas de uma não conversarem se encostando com os eternites do outro, deixando assim escoar a chuva na gente quando precisava passar daqui pra lá e pelas paredes, que com a falta de tinta em dia de chuva sempre pareciam recém construídas, de tão úmidas. Cada piolho e lêndea que eu tive viu ali, sentadas na porta da cozinha, as luzes dos raios de sol incidirem numa folha de caderno bem branquinha só porque faltava uma folha, quero dizer, na verdade uma fileira inteira de folhas de telha ou de eternite pra ligar o Puxado ao Ranchinho. Ainda assim, cada tijolo que subia era um novo sinal, orgulhoso porque distintivo, das outras casas lá da COHAB (talvez o certo fosse dizer “o” COHAB, de Conjunto Habitacional, mas acabou pegando mais o gênero feminino em forma de gratidão à Companhia que viabilizou a compra). De saída as casas eram pra ser iguaizinhas e este plano bem no princípio deu bem certo. Todas tinham o relógio de medir a luz na parede da frente, descentralizado. Todas brancas. Duas janelas de ferro pesadas de correr com aquele engate tenebroso que por tanto tempo eu nem alcançava. Exceto as casas de esquina. Essas eram desde o início bem maiores e mais vistosas, podiam ter duas frentes (mas não tinham), sei de cor até hoje os nomes da maioria dos donos, um ou outro foi se mudando, algum estão lá até hoje, foram bem poucos os que eu nunca soube quem eram, estes que por milagre eram dos mais reservados. A da esquina do nosso vizinho de parede era grandona e cheia de telhados. É porque ele é pedreiro daí fica mais fácil, o pai dizia. Um pedreiro que depois vendeu pro outro, que depois vendeu pra outro, quase não dá pra acreditar, foram três vizinhos pedreiros seguidos, cada um ampliou a mansão mais ainda, na frente da porta do último eu me humilhei algumas vezes pela companhia da filha que ficou mocinha antes e já não queria mais jogar vôlei comigo naquele verão que encarnei de jogar vôlei com ela. Lembro do sentimento de uma vez subir as escadas do mezanino dos fundos, onde a mãe dela estendia a roupa, e ver a nossa casa mais de cima, e pensar então é assim que é morar numa casa de dois andares. Embora nem fosse. Eu meço a evolução dos nossos Puxados, quero dizer, das nossas Ampliações, pelas fotos — quando se começa a tê-las nos álbuns, ano a ano, quase só nos meus aniversários, e eu comemorei todos com bolo, convite e decoração, não pifou um. Assim me vem logo à mente também a

Suíte, que antes de ser pintada e usada também foi salinha pra uma das minhas festas, aquela em que eu fui vestida de Minnie, orelhinhas e tudo. A janela de madeira grossa grande e aberta para ventilar bem o cheiro da obra, eu não lembro se choveu ou foi só pra variar que a festa foi ali, quem sabe pra mostrar a ampliação pra todas as visitas possíveis de uma vez, do que eu lembro bem é da criançada se acotovelando na mesa emprestada do Centro Social com os bancos bem compridos dos dois lados e da minha colcha de solteiro esticadinha também da Minnie servindo de painel. Havia um justo temor do reboco puxar um fiozinho ou outro ou estourar os balões, então a mãe escolheu bem onde por as taxinhas contra o forro e amarrou cada balão numa tripa, pendurados. Eu devia estar fazendo uns cinco. Era assim a Suíte que nunca chegou a ser, cujo esqueleto em pé do rascunho de um banheiro que por ali seria acessado nunca foi recheado de móveis, para ser inaugurado, nunca foi posto o piso, nem pintado por dentro ele nunca foi, quem dirá tirar da imaginação aquele guarda-roupa embutido com a porta oculta que lhe esconderia a entrada como o que tinha na casa daquela vizinha de cima que eu chamava de tia, porque trabalhava na minha creche, e era casada com o vereador e mãe do menininho quase da minha idade que os irmãos dele fizeram eu beijar aos quatro e aí na semana seguinte eu peguei caxumba e ele também. Não instalaram nem o vaso sanitário naquele Puxado que se pretendia Suíte, tinham outras prioridades, portanto também nunca vi a banheira da qual eu ouvia falar que um dia teríamos. É incrível como a própria ideia sonhada de uma prosperidade futura pode ascender a classe social metafórica dentro da gente, dar um senso de importância e merecimento e nos acender — até inflamar — um pouco de ego por dentro dos brios. Aquele cômodo que era pra ser o mais chique e promover o Quarto do Pai e da Mãe a Suíte ficou mesmo foi no chão batido. Servindo de depósito pras coisas mais esquecíveis de todas: saco de argamassa, resto da construção. Um dia de noite cogitei me esconder ali para sempre quando o filho daquele amigo falecido do pai entrou porta adentro segurando um sapo vivo pela perna na minha direção só pra ver o meu espanto e conseguiu. Eu ainda sinto a poeira dali me corroer o nariz só de lembrar, a porta vivia fechada era por isso, a mãe sempre teve rinite, e se abríamos era só de vez em quando, quando chegava visita de longe, para renovar as promessas de um dia ter uma banheira, mas ainda não era pra agora. Parentes distantes que vinham de muitos em muitos anos fazer a via sacra em todos os primos, mais era os por parte de pai, e então gostavam de passar na COHAB porque assim visitavam logo quatro de uma vez. Ainda sei reproduzir de cabeça como era o marrom do padrão de madeira com figuras em nós um tanto quanto diabólicos, se fosse brincar de adivinhar igual nuvem, a pseudo-madeira desenhada no compensado das portas do armário e da base da penteadeira com o espelho oval. Foi dentro desse armário que eu descobri bem cedo que o Papai Noel não existia, porque se não por qual razão ele ia deixar o meu presente atrás das calças jeans do pai, e já no comecinho de dezembro, que é quando caíam o pagamento e o décimo, ainda por cima. Não sei mais quem deu essa dica de procurar mas achei esta verdade enorme para sempre e ainda tive que escondê-la dos mais novos e das amigas que ainda não sabiam. Era chumbado bem alto na parede o suporte da TV preta de tubo, a única da casa, das grandonas de tela arredondada, acho que tinha umas vinte e quatro polegadas. Alta demais pra assistirmos os três deitados na cama mas esse era também o único jeito do pai ter ângulo pra ver o Globo Esporte no lugar dele da mesa azul de quatro lugares na Copa, a uma distância do corredor, enquanto a gente almoçava. O lugar dele era o único que não mudava nunca. Na Grande Ampliação o principal era fazer

Cozinha e Copa, conjugadas. Por dentro azulejos até nas paredes com aquela divisoriazinha horizontal compridinha estampada na altura dos olhos, por fora só o reboco. Cozinha e Copa divididas só por uma estante projetada pela mãe com parede até a cintura e a madeira com aquele verniz pegajoso dali pra cima até chegar no teto. Os nichos vazados dando vista e pompa, não sei onde é que ela aprendeu que isso era moda, mas na COHAB ninguém mais tinha igual então eu achava bonito e bastante moderno. Era nos nichos que ficavam os potes verdes com flor pintada no gesso, o pote de balas, e o meu aquário pequeno pra todas as tartarugas que tive sucessivas, o mesmo nome, até ficarem grandes e gordas demais porque foram tratadas pelo vizinho da multa das aves que vinha tratar os bichos muito generosamente quando a gente viajava de excursão pra Gravatá no andar de baixo da casa do Nereu, e isso era todo fim de ano. Tinha o armário das louças e travessas na Copa, esse foi herdado de uma tia do pai, depois uma tia minha fez questão, porque aquele era o dela, porque a tia que doou na verdade era madrinha era dela, o nosso devia ser o outro, que estava lá não sei aonde, ela buscou o nosso lá de casa, pintou todo de branco e a mãe nunca perdoou aquela violência estética à memória da mobília antiga onde é que já se viu pintar madeira de lei de branco. Tinha as quatro cadeiras pesadas que faziam barulho quando arrastava, em que nos sentávamos pra enrolar os brigadeiros nas vésperas, ou molhar o pãozinho do pão picante na água com caldo de galinha, ou só comer o macarrão do almoço. Entre a Copa e a Cozinha se via bem de perto a estante-portal, formando também um batente, que dividia mas não dividia, talvez multiplicava em número os cômodos, mas se eu paro um minutinho pra pensar não era tão apertado assim para ser só um em vez de dois. Na Cozinha, a fruteira. A geladeira marrom que viveu lá em casa até esses dias, o forno idem, um fogão de quatro bocas e o jogo americano amarelinho, amarronzado, que também tentava imitar madeira e não conseguia. Só que só de dizer que tínhamos um “aéreo” já ficava bonito combinar a estante da pia e a cuba toda de inox com o armário que ficava em cima da outra parede e eu precisava arrastar as cadeiras pra alcançar, não dava pra botar os dois juntos, é que na parede da pia tinha a janela com vista pra parede cega dos três vizinhos pedreiros, um por vez. Quase não dá pra crer que no vão entre a cozinha e o muro alto coube um dia uma piscina de mil litros, espreitando toda

A área externa. Se eu penso em espiral na área externa, começava no quartinho atulhado de bagunça pra aproveitar a parede também cega da garagem, só tinha a porta, não tinha janela, nele o pai guardava os alpistes, outros suplementos, parafusos, a máquina de cortar grama e as ferramentas em prateleiras altas, mais tarde vieram os potões de plástico da sorveteria que os meus tios faliram, como eram úteis e bem espaçosos e vedavam pra não entrar bicho, bons mesmo de guardar todas as coisas, os adultos diziam e agradeciam quando chegavam. Seguindo a calçada se passava por aquele vão entre o Puxado e o Ranchinho, que por sua vez tinha aquela estante dos sapatos e bagulhos, e eu talvez na época não me perguntava pra que ter mais que um espaço pra acumular bagunça até que, mais tarde, cheguei à resposta de que ter só o suficiente alimenta uma vontade de certo acúmulo, dentro do possível, nem que seja de bagunça. Era uma época em que eu brincava pouco, eu não sei bem por quê mas tenho lá minhas suspeitas, nunca subi no pé de limão, por exemplo. Não dava trabalho. Eu gostava era de imaginar mundos maiores, de tirar dez com três estrelinhas e um parabéns da professora escrito em cima com a caneta vermelha, de ler, de que me pedissem pra contar até dez pra eu perguntar se era em inglês ou em português, que nessa época eu fazia aulinha com uma conhecida da mãe, depois não deu mais. Gostava de não dar trabalho. A primeira bicicleta eu ganhei bem tarde para os padrões dos filhos dos vizinhos, é que em lugar cheio de morro é fácil criança se matar, o teu pai é motorista, minha filha, tu não faz ideia o que ele vê de perigo com criança e bicicleta por aí. Antes então um patinete, no qual eu mesmo quase me matei no piso liso da garagem passando vergonha porque não sabia usar o freio, o campinho na frente de casa tava cheio de meninos jogando bola, inclusive aquele que eu achava o mais bonito mas criança não namora ainda mais depois de pegar caxumba porque beijou um amiguinho aos quatro. Não lembro de carregar bonecas, nem de niná-las, nem dar a elas a mamadeira. Lembro de um tabuleiro de ludo, mas este é fresco na memória porque trouxe comigo, ainda deve estar por aqui em algum lugar. No verso do tabuleiro os riscos improvisados pra jogar Trilha com nove baguinhos de feijão, nove de milho, que comece a diversão. Lembro de uma Barbie só, loira e original, e a minha casa dela: que começava e terminava em duas peças, um armário de roupa e uma caminha, de madeira, sem pintar, mas no capricho, devem ter vindo da fábrica onde trabalhava o amigo do pai que fazia e vendia tacos de sinuca, um dia até me deu um taco de bets com meu nome completo pirografado pra jogar com os piás na rua reta, que era a que eles moravam, este vizinho era bem querido e tinha uma filha quase da minha idade, fez um taco pra ela e depois um pra mim, e teve outra vez que ele ajudou a mãe a matar um rato com a espingarda de pressão quando o pai foi pro Mato Grosso de viagem e ficamos um pouco nervosas para lidar com aquilo sozinhas tudo só confiando no veneno que o pai tinha deixado. Depois da calçada entre o Puxado e o Ranchinho, o gramado enorme — para as minhas noções de distância e classe — que pela esquerda de quem via de fora circulava a nossa casa inteira. Descobri que não era tão grande quando inventei de ter um collie, é a raça da Lessie, eu dizia, mas o meu é macho, ele se chama Tigor. Durou nem três meses. Roeu tudo o que pode. Fugia muito e a mãe fazia eu ir atrás que eu é que tinha inventado de ter cachorro, ela já tinha me avisado que nunca gostou, bicho era uma coisa meio nojenta e que dava trabalho nas horas vagas. Em espiral a grama, por este curto período recheada de grossos cocôs do Tigor, seguia desde a calçada que terminava na Área até a entrada da garagem que só começou a ser usada para o seu propósito quando ganhei a motinho na rifa da igreja. Eu devia ter uns oito, já era sortuda na época, não importava o quanto meu pai comprasse, o importante era eu ter sorte, tem uma foto minha abraçada na amiga que me vendeu o bilhete e depois virou minha comadre. Logo o pai trocou a Biz num Uno Mille vermelho, daqueles bem quadradinhos, com as portas odiosamente leves. Hoje em dia, que conheço um pouquinho mais de carro e meço melhor de olho, sei dizer que da parede ali dos cômodos do lado esquerdo até o muro da madrinha (com quem a mãe só falava quando o pai não tava em casa, porque a partir de um ponto passaram a não se dar, as razões me são obscuras até hoje) devia dar uns quatro metros até começar o canteiro. Um pé de boldo para quando nos doía a barriga, uma folhagem ou outra, lembro de ter pouca flor, mas é que a mãe trabalhava muito, saía cedo e voltava tarde, por isso eu ficava bastante com o pai, ela não tinha tempo como tinha a vó pra fazer um jardim bem florido, é que a vó se aposentou quando eu nasci e ajudou a cuidar de mim, depois vieram as tias e moraram aqui uma das três a cada ano, me disseram, mas desse período tão longe eu quase não lembro. No canteiro se escondia o jabuti. A criatura, jamais batizada, a cada três meses era por mim encontrada e ganhava metade de um tomate, quando tinha na geladeira. Outra coisa ele não roía, ou pelo menos eu não via, mas tomate era bonito de ver ele comer, mastigando sem ter os dentes. Eu nunca entendi bem o negócio que o meu pai fez pra eu ter aquele bicho, parecia um favor de amigo, do meu pai não é de se duvidar que tenha pego pra ajudar a desovar, nem de que tenha aceitado ou pedido um espécime porque ninguém mais na COHAB tinha uma tartaruga no jardim e isso nos tornava de algum jeito um pouco mais distintos, pelo menos pela via da excentricidade, porque jabuti nunca custou caro, só era raro, é que o pai sempre foi desses que gostou de uma inovação e de ter algo primeiro que os outros. Nunca ninguém soube me explicar a contento do que o bicho se alimentava exatamente (fora os meios dos tomates), ou para onde ele ia nos longos períodos em que não o encontrávamos por nada, mesmo não tendo tanto assim onde procurar no terreno e olha que às vezes eu me dedicava porque pra mim parecia grande. Quase parecia que o canteiro tinha um túnel que dava acesso aos outros lotes COHAB afora. O jabuti foi um mistério dos que ficaram sem desvendar no meu imaginário até que um dia sumiu de vez, ou sumiram com ele, ou fecharam o túnel, ou meu pai embutiu no preço da casa quando eu tinha onze e ele vendeu pra aquele crente que parecia sério e nos mudamos pra morar de aluguel na outra casa. Ficou o banheiro da Suíte, inacabado, acho que o comprador deu conta de terminar, talvez ficou o jabuti, e com toda a certeza ficou a antena parabólica, que era bem na frente do terreno e sem ela a TV não pegava, o nosso cartão de visita com a base de concreto, só sobrava o espaço pra botar placa de política a cada dois ou quatro anos, o bom mesmo era quando o candidato do pai ganhava, o de prefeito e o de vereador, que se não perigava de botarem ele de novo trabalhar no caminhão do lixo aturando desaforo daquele vizinho de cima que bem naquela vez soltou um foguete atrás do caminhão pra comemorar que perdemos a eleição no viaduto lá da praça, de tocaia, o desgraçado. Esta história e outras parecidas, naquela casa, eu ouvi cem vezes. A antena ou a placa, quando era o caso de placa, faziam sombra na grama e bem na altura da janela do

Meu quarto. Eu tinha a cama de solteiro tubular cor de rosa claro com acabamentos dourados nas pontas, ela fazia jogo com a minha penteadeira com prateleiras de vidro e espelho de meio corpo, se sentasse na cadeira também tubular e um pouco estofada se via bem o rosto enquanto eu penteava os cabelos, tudo muito na mesma paleta, o crème de la crème do refinamento noventista lá da COHAB, falando assim nem parecia que o meu armário era o mesmo desde que eu era bebê, fazendo conjunto com a cômoda em que a mãe me trocava em cima e agora guardava as toalhas da casa, e talvez os tapetes, e depois os meus gibis da Turma da Mônica, e claro, as roupas da outra estação, e as que deixavam de me servir mas podia que alguma tia engravidasse e aí era melhor doar pra parente do que pra estranho porque custaram caro, é que o armário só tinha uma porta e meia e quatro gavetinhas que às vezes emperravam nas quais depois aquele amigo do pai, pra revitalizar, fez uma Pátina. A palavra Pátina sendo tão técnica que só podia mesmo sair da boca de um artesão-jardineiro que era artista por hobby nas horas vagas do emprego que pagava tão bem, lá na Celesc. Ele depois separou da mãe dos filhos e se juntou com aquela outra vizinha da rua de cima que sempre foi tão calada e tinha um filho meio esquisitão o que será que eles conversam, será que o menino é meio doente, ela nunca mostra os dentes pra gente, era o que eu ouvia especular lá em casa sempre que a gente encontrava eles no mercado. Meu quarto, em que tive tanto medo de escuro e de ouvir barulhos, fazia parede meia com o

Escritório estreito, a estante de um metro de largura e três prateleiras de altura bem cheias de livros da mãe, alguns até eram meus, bem mais que a média das outras casas em que eu já tinha entrado, mais livro do que lá em casa eu só via na biblioteca do colégio. Eu tinha um orgulho do Escritório, embora só coubesse uma pessoa em pé entre a estante e a parede, no máximo duas mas uma enfileirada na frente da Escrivaninha, essa palavra sim é que nos dava ares de fidalgos, muito mais do que ter Escritório importante mesmo era ter e usar Escrivaninha, estudiosas que éramos a minha mãe e eu, inteligente como a mãe, eles diziam, ali era o meu lugar de fazer as tarefas e ler um gibi, ou o volumão grosso com os clássicos da Disney que o pai me comprou diretamente de um ambulante e eu poupava a leitura para sempre ter novidade, anos mais tarde sequei uma rosa dentro e tive que arrancar uma página porque manchou. Um dia, num armarinho próprio pra isso, branco com as bordas pretas de borracha, teve até um computador, que na época também era de tubo, a cor algo entre o bege e o cinza, protegido com as capas plásticas para não pegar tanta poeira, é que fomos uma das primeiras famílias a ter, tinha que cuidar, isso era chique demais para um pobre, para ter internet tivemos até telefone de linha e o nosso já era dos sem fio, quase não dá para crer que os anos 2000 começaram tão bem. Pra falar com quem também tinha, quando era motivo importante que chega pra ligar, dava pra andar pela casa ou sentar num dos módulos do

Sofá verde-musgo-militar, separado peça por peça, acomodado na sala de estar. Um confortinho dividido em módulos, assim era fácil de limpar, de compor dois sentam aqui e três ali, de ornar com o piso de tacos em que a mãe uma vez derrubou vinho quando foi servir o pai com o garrafão de cinco litros mas nessa época eu não era nem nascida soube só de ouvir contar que impregnou e nunca mais saiu a mancha, bem depois é que puseram piso. O sofá com aquela peça de canto em cima de onde ficava o presépio, e a textura que marcava a pele da perna de quem sentava, outro dia comprei uma blusa com a mesma textura e cheguei a marejar só de lembrar dos frisos. Uma porta de entrada na casa dava na sala sem TV, a outra na Copa. O coração da casa era o banheiro. Uns três por dois de tamanho, uma pia bem pequena e o espelho de guardar as escovas de dente. O espaço do chuveiro era delimitado pela cortina de plástico que colava no corpo molhado da gente e nunca secava direito, porque a janela dava para a garagem, que por sua vez dava para a parede cega do muro da casona da esquina.

As boas-vindas eram por conta do portão — manual, é claro. Nele encostada a cesta do lixo fixa, de alumínio vazado. Quatro colunas baixas de tijolinho à vista (igual na rodoviária, no fórum e no pavilhão, parecíamos até bairristas), essas colunas firmando o portão prateado com um acabamento de espetos, esse era o mais seguro de todos, tanto que está lá até hoje, às vezes visito pelo Google Maps tentando sempre adivinhar quem é o senhor com a cara borrada passando bem na frente, que eu não conheço mais, de quem é aquela uma perna entrando na porta da sala e que nome tem o cachorro cujo rabo foi capturado porque agora vive solto por ali. Uma vez por ano passo na frente pessoalmente, de propósito, para ver o que eu sinto olhando aquele endereço, mesmo sabendo que há muito aquela casa, que ainda está por lá, não é mais a mesma que agora eu tento descrever.

O memorial descritivo da obra em que eu nasci e me criei dentro hoje pode virar a tentativa turva de uma vontade de imprimir "Favela venceu" na minha história só pra vender bem. É que pobre, pobre mesmo, a gente nunca foi. Pobre era só a vizinha da rua de cima que, nos mesmos metros quadrados, criava cinco filhos e um neto e às vezes ganhava de nós o feijão que sobrava cozido direto da panela de pressão, e eu ficava esperando ela lavar com o paninho pra nos devolver, ela não tinha nem esponja, eu espiava da porta pra dentro e era até mais coisa que não tinha do que as que ela tinha, a mãe dizia que era feio entrar sem ser convidada e mais ainda ficar reparando, mas mandava eu levar o feijão lá às vezes e eu sempre fui das involuntariamente reparadeiras dos contrastes. Também sempre fui filha única de pais casados, assalariados, criada com renda baixa que chega pro incentivo imobiliário do governo, mas alta demais pra passar necessidade. De pais que nunca tiveram reserva, de modo que a maldade do Collor não lhes atingiu, mas a bondade dele e do Kleinübing sim. Se bem que se é que venceram deve ter sido tudo por mérito deles, que trabalhavam bastante, sabe-se lá como deram conta de honrar todas as parcelas, teve quem não conseguisse, a vida era dureza, no início era mais ainda, como diz a minha mãe sempre que lembra da época.

Eu sou de um ano antes do Real. Embalei nos braços dos primeiros meses de uma inflação galopante e do arrocho, mas cresci revestida do brilho da promessa de que a vida vai melhorar, como ainda jura até hoje o Martinho da Vila. Vesti Lilica Ripilica. E uma coisinha doada dos outros ou outra. Hoje não sei definir bem em que ponto da escala isso me pôs, só sei que saber me importa tanto, tanto assim. Quando empobreço o morro do passado das minhas memórias é porque vi, com os próprios olhos, um Puxado ser rascunhado e levantado do zero. Ou porque, assim, a altitude que percorri até chegar aqui se avoluma e talvez as minhas façanhas pareçam mais heroicas. Ambiente hostil, muita humildade e suor.

O Visconde mais próximo da minha infância foi o de Sabugosa. Este passado é imutável. Receio, porém, que os olhinhos que lhe testemunharam podem trair o tempo e sucumbir à ideologia, míopes de tanto não crer em meritocracia, astigmatas espremidos para tentar focar em entender do que é mesmo que se trata o Privilégio. Eu sei que eu me movi de um ponto a outro, entre um acesso e outros, mas isso foi depois ou enquanto eu me movia entre um cômodo daquele e outro? Entre uma cidade e outra, e aí entre uma experiência e outra. Ou pendurada em uma sorte até a outra mão alcançar a outra. Até hoje não sei dizer, embora tanto já tenha me esforçado, de onde mesmo é que eu parti para a escalada e com que qualidade de equipamentos. Só sei que eu sou de lá. Minha história ainda é construída e escrita com o cimento daquelas paredes. Grata por ter podido crescer. Torcendo pra obra acabar. Estou sempre, ao mesmo tempo, aqui e lá. Laurentino, 35. Camarões.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Tratar aqui 3: o retorno

Beijinho no rosto. Meu primeiro ato entrando pela primeira vez na antiga casa adaptada para o comércio foi mesmo esse, é incrível...mente difícil de explicar a minha. É. Eu sei. Beijinho no rosto da recepcionista. De quem não sei o nome. Que não entendeu nada. Beijinho no rosto de uma desconhecida prestando um serviço. Uma intimidade estalantemente forçada. Nesse lugar que todo mundo se conhece, chego eu tanto tempo de cidade nova depois, praticamente a mesma cara. E o mesmo nome e sobrenome. E, de nervoso, carco um beijinho no rosto da única pessoa que nunca tinha me visto mais gorda. Como se fosse comadre. Como se houvéssemos nos mordido na creche. Como se eu fizesse parte da família. Essas vergonhas eu passo no crédito. Me dói na hora e eu vou lembrando a prestação. Somam-se os juros da maquininha do constrangimento. Sei que as pernas me amolecerão só de lembrar depois. Como amolecem toda vez que ninguém ri de piada que eu faço pra quebrar o gelo. Agora, como sempre que acontece, num silêncio semi sorrido, eu vou ter que fingir demência e normalidade até amenizar pra mim. Eu, a beijoqueira natural. Que me basto. Que sou simpática. Desencanada. Comigo é assim mesmo, bobeou eu invado o balcão e beijo. Arghhhhhhh. Acho que tô com bafo. Odeio encostar em quem não quero ou respirar muito perto por isso. O alívio é que a moça sabe se defender do importuno. Me interrompe rápido. Podes sentar ali. Quero muito muito explicar tim tim por tim tim que foi sem querer eu me atrapalhei um pouco volta aqui esquece tudo eu vou sair e entrar de novo deleta essa cena que deu errado da próxima vez eu juro que não te beijo agora vai ser a chegada pra valer. Não tenho chance. Ela é mais nova. Mais nova que a última vez que estive no salão para o qual ela trabalha. Isso uns o quê... 15 anos atrás. Portanto, não me conhece. Portanto não entenderia a intimidade que eu acho que tenho com tudo e todos aqui, embora nunca tenha pisado rigorosamente aqui desde que ela trabalha aqui. Vou precisar me conformar. De novo. Pode sentar, ela já vai te atender. Sofá comprido de frente pro espelho horizontal. Muito baixo. Recém reencapado. Confortável. Mas muito baixo. Os meus joelhos ficam mais altos que o quadril. Não me vejo no reflexo. Talvez não seja o público alvo. Espero sem me ver fazendo hora. O meu horário era 8:15, uma outra desmarcou. Aí eu aceitei vir fim do dia. Atrasou um pouquinho, tá? Ela já vai te atender. Devia ter adivinhado e atrasado como sempre. Pelo menos trocaram o horário e não acordei cedo nem corri na estrada. Abro Instagram. Depois o Twitter. Vou alternando. Vai atrasar só mais uns minutinhos hihihi. Reparou? A pilha do relógio da beleza é sempre fraca. Uns minutinhos equivalem a quarenta. Zapeio o Insta. Foi ele que nos reuniu para eu estar aqui de novo. Não trouxe um livro. Que bom, porque ia parecer performance. A última coisa que eu quero é parecer performática voltando aqui. Quero passar batido. Me misturar nativa. Quero provar que sou de onde vim. Simprona. Não quero ó lá a otária metida a besta que agora paga de inteligente no sofá da espera o que ela veio fazer aqui que não fez lá onde ela mora. E neste contexto qual será a imagem que aquele beijinho da entrada transmitiu. E quem diabos pensa tanto quanto eu penso no que pensam sobre. E quem caralhos me implantou a maldita capacidade de parar de seguir as pessoas para esquecer os infortúnios vividos e, embutida, esta bendita aptidão para esquecer o fino dos motivos. Eu sei que vem depois um efeito de Prescrição. Decadência. Caducidade. Adoro esses nomes no juridiquês. Lembro que quando eu ficar velha vou ficar caduca e esquecer tudo com o tempo porque é de família e rio sozinha no sofazinho como se fosse bom esquecer todas as coisas só pra esquecer também algumas. Como eu disse, caduca. Deve ser isso que me fez voltar aqui como se nada fosse nada. O carro sujo de chuva e poeira ali na rua quase deserta depois da porta aberta por sorte me humaniza. Um pouco. Ao menos eu acho. Um carro sujo de chuva e poeira na frente de um salão sem placa no segundo bairro mais urbano desta Terra Mãe que Embalou o Meu Viver no interior onde nasci. Trocaram o calçamento por asfalto tem nem dois anos. Passo aqui na frente a cada um mês ou dois. Às vezes mais, porque não é caminho. Mas notei hoje que não reinstalaram a antiga placa depois da obra. Nem precisam. Todo mundo conhece a Tânia e as filhas. Elas descendem de larga linhagem de prestadoras de serviços de beleza no Salão da Tânia. Desde adolescentinhas. Desde que a sede era a outra, na sala da frente da casa delas. Desde aquela fatídica ocasião em que eu consegui um encaixe pra fazer prancha pra formatura do ensino médio mesmo marcando de última hora e acabei soltando que só tava ali porque o outro salão em que se fazia menos fofoca não tinha horário. Por quê? POR. QUÊ. Minha Nossa Senhora do Rosário, de Fátima, das Dores, de Guadalupe, de onde quer que seja que já tenha aparecido, me apareça agora só pra fazer desaparecer essa memória de mim a jato e eu não ir embora sem explicar nada. Gasto meu tempo no sofazinho sonhando com a cirurgia de redução de língua que um dia, tenho muita fé, farei de cobaia e de bom grado entregando o meu corpinho à ciência. De repente me voluntario pra um botox de atrofiar disparates antes que eu os despeje com a minha boquinha de disquete afora. De novo. Sei que a qualquer momento posso fazer de novo. Ainda tenho o dom. Minhas pernas amolecem como é praxe só de lembrar da gafe. Sorte que estou sentada. No sofazinho que deve ser aquele que ficava na outra sala da casa delas antes e o marido da Tânia vivia deitado, presunço eu. Nem tenho tempo de me autocensurar por mais esta ideia classe média burguesa que ascendeu de classe e Zofia desponta na porta da sala dela, a mais ampla e iluminada, de prestígio entre a família, a bem da frente, denunciando com zombaria a cliente com as sobrancelhas finas recém pigmentadas que sai junto com ela. Atrasou foi por causa dela, briga aqui com ela viu, ela chegou tarde, não sei o quê, não sei o que lá. Uma coisa nada passiva. Também nem tão agressiva. Deve ser uma cliente de sempre, ao contrário de mim. Sorrio amarela dizendo não tem problema eu tô com tempo hoje é sábado. Ela me chama pelo apelido que nunca errou pondo um L a mais desde que lhe expliquei por que é como é e me convida pra entrar. É a mesma Zofia de sempre. Só que está com o triplo de boca. O cabelo meio sujo, amarrado. Nada de maquiagem: os poros precipícios, as manchas destacadas. Bem ao contrário dos filtros que usa no perfil da estética. Lá ela não é Zofia, é @ZS_MakeupArtist. Faz muito mais que isso, todo mundo sabe. Zofia Silva maquia como ninguém, mas também micropigmenta, e limpa pele, e habla y habla. É da versão vida real que eu ainda me lembrava. Ainda é a mesma. Minha primeira amiga da quarta série depois de trocar de colégio. É um nome italiano, ela gabava na época. Não devia ser Sofia? Eu pensava. Uma vez cheguei a dizer. Não, ela respondeu. Não, na Itália é assim mesmo, você é que não sabe de nada. A boa e velha Zofia, que sempre sabia de tudo. Deito na cadeiraca de espremer e embelezar gente e ela me alcança a cobertinha. É uma espécie de cadeira mas também é uma maca, reclinada. Lembra um pouco as de dentista. Por causa da ring light bem em cima, que é boa pra selfie e pra fazer os antes e depois dos procedimentos pra postar e mostrar o trabalho. Eu odeio. Porque eu também julgo. Só não mais que quando não fazem de mim e nem perguntam se eu deixo, porque aí acho que sou das clientes que não deu o resultado esperado. Ou das mais feias, que não compensa mostrar nem pra espantar mosca. Mas, se perguntam, eu digo que não quero. Que tenho vergonha. A gente vai em salão de beleza é pra ninguém mais ver o antes. Mas ela, Zofia mesmo, sei que não vai nem perguntar e nem fazer. Ela me conhece. Quase me adivinha. Vai querer evitar o stress. Tudo isso eu penso no milissegundo em que ela me alcança a cobertinha. Não tenho frio algum. Nenhum. Zero. Tenho até medo de suar um pouco. Só que quem sou eu para rejeitar o cumprimento desta etapa do manual de conforto da cliente do ramo da beleza. Sim, sim, claro que sim, eu quero a cobertinha. Se disser não, pareço besta. Mais besta que a eu de 15 anos atrás insinuando elas serem o grupo de acesso do que havia de mais top no ramo da beleza do nosso município. Na época eu acho que não dizíamos top. Talvez show de bola. E ainda por cima eu chamei de fofoqueiras. Embora fossem. Como quase todo mundo ao nosso redor era, para ter assunto, só que no salão circulava mais gente. Testo ficar em silêncio um pouco só pra variar. Ver no que dá. Som ambiente que não vejo de onde vem mas é bem baixo: Engenheiros do Hawaii. Eu gosto. Ela também. Lembro que a gente já gostava antigamente. Temos idade pra dizer antigamente, Zofia e eu. Engenheiros sempre foi a zona mista do prazer culpado entre o meu Los Hermanos e o Pearl Jam dela, que eu gostava de imitar pra fazer raiva grunhindo um inglês nada com nada. Como, aliás, eles também fazem. Mas de Engenheiros eu lembro que a gente gostava. Ou ela lembrou disso ou ainda somos rigorosamente as mesmas que já fomos, distraídas. O que há de melhor, o que dá pra fazer, o que não dá pra evitar, etcetera. No que mudamos exatamente ainda não sei. Lá vem o terceiro produto esfoliante me derretendo as impurezas da cara. As luzes da sala apagadas e a porta aberta pra vir uns raios indiretos da fluorescente contígua e dar soninho. Relaxar. Nunca me entrego ao relaxamento em momentos assim, porque não sei desligar as vozes da cabeça. Ela quebra o silêncio pra se justificar. Tô reformando, ainda não comprei a luminária de luz quente, achei uma na Shopee mas tenho medo de ser muito vagabunda, ela diz. Eu entendo. As portas aqui tão sempre abertas e sei que estarão depois, mesmo com um abajur. É um entra e sai. Não espanta se vem uma com a colher de pau pra outra provar se algo tá bom de sal. Ou roendo qualquer coisa e oferecendo. Tampouco admira se entra a secretária dizendo pra não esquecer de trocar o horário daquela cliente chata que remarcou de novo pra quarta à tarde mas não vai poder porque ela é assim mesmo. Muita língua. Pouca cerimônia. Entre uma extensão de unha e outra, metade extensão da casa, metade extensão da rua. Eu ouço com as orelhas tampadas pela faixinha de cabelo com tecido de toalha bordada com um monograma no meio: ZS. Falta esperar a argila secar. A rosa é pra isso, a verde é pra aquilo. Temos tempo. É o ócio entre um ativo e outro. Essa meia hora que falta dá pra passar a vida a limpo como a pele. Atualizar o que o Insta não mostra. Se mostrar um pouco mais por trás das câmeras, e dos filtros, e das inflamações e rugas que agora despontam em nossos rostos. Zofia já é mãe. Casou bem nova e separou de um cara que eu achava lindo quando tinha 10, depois embarangou. Por falar nisso lá vem entrando o Daniel, que eu só conhecia de foto, bonito como o pai quando era novo, com uma camisa de time. Tem uns 15 anos. Tá um moço, hein. Apelo para esses clichês que funcionam. Tá um moço, hein. Tá um moço e quer usar o notebook pra jogar. Ela deixa. Dali então é que o Gessinger entoava os versos. Vamos ficar nós três na sala? À meia luz? Enquanto esse vaporizador que parece um pouco a minha passadeira de roupa a vapor e talvez seja mesmo só está enjambrado para cumprir outra função fica feito um canhão na direção da minha cara para abrir bem os poros e depois ela poder espremer? Isso não implica em pouco profissionalismo? Estou pagando. E daí. Eu não sou dessas que se incomoda com as coisas só porque está pagando. Não tenho bem certeza se devia mesmo me incomodar. Logo eu que já conhecia a dinâmica quando agendei o horário. Logo eu que dou beijinho no rosto da recepcionista. Relaxar eu já não ia mesmo. Ela aproveita pra dar uma saidinha da sala e me deixar sozinha com Daniel só uns 5 minutos, dessa vez não viraram quarenta, enquanto um novo produto age. Não sem antes ela me por um negócio pra hidratar a boca, que não é do pacote da limpeza, mas ela me faz, deixando claro, a título de cortesia. Ele me pergunta curioso sem desgrudar os olhos da tela há quanto tempo eu conheço a mãe dele e eu dou um grunhido para que entenda que não consigo responder. Vira pra trás e ri da minha situação de feia tampada por uma cobertinha enquanto o vapor quente continua saindo. É um adolescente dos melhorzinhos. Só diz: eu tinha esquecido que tem essa parte. Ficamos os dois rindo, eu mais modestamente porque estou com o troço de silicone cor de rosa trancando os movimentos da boca. Quando Zofia volta, pede pesquisa aí, Daniel, se a mãe pode fazer alta frequência em quem tem psoríase. Mãe, como escreve isso? Vai lá: P-S- pera, Daniel, me deu um branco. E eu ergo o silicone da boca que agora já deve ter me hidratado os lábios que chega e completo: o-r-í-a-s-e. Ele lê lento o primeiro resultado da IA da Google: sim, é possível fazer alta frequência em quem tem psori-á-se. E engata: mãe, tu teve lua de mel? Ela não acredita na pergunta e ri para o menino dizendo que se ele conhece o pai que tem, podia imaginar que não. E rimos juntas, porque eu também conheço o pai que ele tem. E me lembro que Zofia é canceriana e deve ter sofrido horrores com a separação. E, antes, com não ter lua de mel. E, antes, com ter engravidado do Daniel no susto. Eu não estava ao lado dela nestas fases, o tempo e a minha boca grande já tinham cumprido seus papéis, mas certas coisas que são sabidas uma vez não mudam mais. Ficam encravadas mais ou menos na mesma posição, como os astros no céu. E me pergunto se a curiosidade aleatória do Daniel significa que também será daqueles, como nós, capazes de dizer e fazer coisas dramáticas enquanto ouvimos Engenheiros do Hawaii. E de lembrar de algumas peculiaridades dos amigos antigos, que há muitos anos não víamos. E de voltar a seguir numa terça à tarde como quem não quer nada. E, depois, de marcar horário. E de vir. E de não ir embora na primeira vergonha que passar. E de saber ser frágil. E de pedir desculpa. E de resistir aos julgamentos. E de ter impresso nas certidões de renascimento uma qualquer coisa da procedência de origem que fica no DNA e nos documentos, desde a de nascimento. O procedimento acaba comigo toda vermelha. Desobstruída. Finalmente limpa. Foi pra isso que eu vim. Recebo as recomendações para os próximos dias e digo tchau, Zô, boa festa de aniversário do teu namorado novo que eu sei que é hoje por causa das declarações de mais cedo no Insta. Nela até tinha contexto, mas melhor pecar pela falta e eu não dou beijinho na despedida. A intimidade é um bichinho que vai e pode voltar, como os cravos no meu nariz. Tratar aqui.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Ataraxia

Papai Noel, eu quero uma
Lupa de distanciamento
Para ver o todo
Estando perto
ou dentro.

Desejo também um
Reco de boca
Isso mesmo, um zíper.
Fecho-éclair encaixando
Os dentes
Em silêncios
Antes de eu lançar absurdos no mundo
E cair uma arcada inteira de consequências
Eu, tão boca
aberta.

Papai Noel, ano passado eu pedi
Euforias com luzinhas que piscam e um
Encantamento elétrico e perene
com controle remoto.
Era caro, o senhor não trouxe,
Eu ainda quero,
Mas se não der de novo
Esse ano pode ser só um
Cantinho
(mas seguro e acessível)
De pensamento iluminado,
Analógico mesmo,
Em que breve eu volte a
pensar bem
No que eu já tenho
Quando desencantar, acelerar ou
escurecer demais.

Papai Noel, eu quero
Um removedor de culpas
Uma âncora de devaneios flutuantes
Um par de boias com acento, das de braço, e
Um mistério portátil (daqueles mais simples)
Por favor, só não me venha com Cruz,
que eu não quero furar nem pintar as paredes
de preto para instalar nada a essa altura do campeonato

Ah! Podem ser também
Duas passagens aéreas
De ir e voltar
Que me façam, simultaneamente,
Esquecer e lembrar
Que eu trabalho pra isso

Aí, para aproveitar a viagem,
Pode levar embora em seu trenó:
Esta máquina de remoer;
os Supositórios
digo, as Suposições
que por espécie de necessidade tenho enfiado
no meio das bandas
na tranquilidade amena
— nas quais penso tanto
Que me fazem menina mal criada
E não merecedora

Papai Noel, se tiver que escolher só três,
quero muito:

- Presente (desembrulhado)

- Não cansar de ser alegre

- Ter a quem pedir

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A culpa é do Dan Brown?


Os novos agroglifos de Ipuaçu
E as marcas do deserto
no Peru
Assentam-me no juízo
um fascinante chapéu
de abas largas
de alumínio
e, nas mãos, uma CNH
pra mystery machine
do Scooby-Doo.

Cifras de César,
Runas
Arcanos
Toda ordem de símbolos
ocultos,
Moais, rituais
em códigos
— desvendados ou
ainda não
mas quase,
é só se dedicar
um pouco e
Descriptografar.

Já se passaram duas décadas desde A Lenda
do Tesouro Perdido
na Sessão da Tarde
e, muito misteriosamente,
ainda não confesso ser o meu
queridinho.

Fica descoberto:
Eu ainda sou a mesma
eufórica vibrando quando Nicolas
Cage tira
aquele par de óculos de trás
de um tijolo
ou, no fim, molha as pedras do Rushmore
a fim de encontrar
Cíbola.

Eu quero é ser dos que
Sabem.
Dos poucos que
Chegaram lá.
The Dark Side of the Rainbow,
Cicada 3301,
a mariposa impressa no poste
batendo asa,
que avisa:
Não confie no óbvio e
busque o oculto.

Dos artefatos egípcios
ao chão sempre quadriculado
de segredos
das Lojas,
Persigo cem por cento
Envolta
lama a ser limpa
de qualquer incógnita