terça-feira, 17 de setembro de 2024

La plata

O peso da porta do quarto onde eu durmo é um cofrinho de brinquedo que imita um cofre de verdade e que abre se o fecho é virado para o 70. É um dos poucos bens materiais que eu guardei da minha infância. Cabia um cadeado, mas nunca pus. Eu nunca tive muito apego às coisas, embora deteste não saber onde estão ou notar que sumiram, e me desfiz sem muita cerimônia de vários cadernos, diários, daquele taco de bets com meu nome pirografado na fonte da Coca-Cola com o adesivo das Meninas Super-Poderosas colado e de tudo o mais, o que deixa ainda mais simbólico e engraçado eu ter guardado não uma boneca (a única Barbie da vida), nem um utilitário gibi, mas justo um cofre. Um cofrinho. Tem em cima dele uma marca áspera na tinta lisa que eu guardo como um segredo. É a forma de um dedo sujo de brigadeiro, que encostei enquanto enrolava vários em algum aniversário quando ainda era criança, talvez até no dia em que ganhei de presente, mas não me lembro direito da circustância. Só lembro de ter pensado, dias depois de muito esfregar, ao ver que a marca não ia sair ou uniformizar de novo no verde do revestimento, que deve haver muita química nos corantes daquela época, imagina o que faz no estômago. E que talvez mais valesse ter continuado com o cofrinho prata amassado da Minnie - que já estava meio enferrujado nos cantos mas era o meu de estimação e as moedas não trancavam nas extremidades porque era cilíndrico e eu já tinha aberto dezenas de vezes em cima da cama para separar tudo por valor, e depois contado com meu pai enquanto ele me ensinava a contar e a por tudo em sacolas de plástico bem amarradinhas para facilitar a troca. Talvez tenha sido ali que aprendi a guardar e dar valor ao dinheiro - eu não tenho certeza, nunca entendi de onde veio essa minha rebeldia. Também nunca entendi se lemos minei o nome da Minnie só pra rimar com Mickey ou se existe um justo motivo na língua inglesa, mas essa é outra história. Sou boa de decorar. O jeito certo de escrever as coisas, mesmo que elas não façam tanto sentido assim pra mim. Os nomes completos. E os movimentos automáticos do dia a dia. Para fechar a porta do quarto onde eu durmo, nas raras vezes em que é preciso - geralmente só para acessar as roupas do cabideiro fixo atrás - há dois anos e quase meio arrasto com o pé direito o metal meio empoeirado contra o piso na direção da porta do banheiro. Minhas economias poucas fazem sempre o mesmo barulho. As moedas tilintam apertadas umas contra as outras. Outro dia troquei um pouco no Café, porque começaram a pesar demais para arrastar. Elas parecem cada vez mais escassas no mercado. Precisa-se de moedas, lê-se também nos caixas de padaria. Ainda lido com muitas moedas, apesar de tudo. Coisinhas físicas que valem o quanto houver escrito nelas. Cujos lados opostos se grudam entre si por uma camada fina de metal benzida pelo Banco Central.
Diz-se que para decidir qualquer coisa basta jogar uma moeda para cima e, naquele milésimo de segundo em que está no ar ou se esconde entre o dorso da mão e a palma da outra, saberemos o que escolher, porque saberemos pelo que torcemos. Meu ponteiro não marca mais 70 há muito tempo. Essas moedas são do valor que eu escolhi perder e do preço que me obriguei a pagar quando as quis jogar pra cima.
Hoje saem, mais uma vez, voando pesadas rumo a um céu pela janela de não saber pra onde.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Triperalismo

Se guardarán tus tristezas
En un gran libro de sal
Se guardarán como agua
En la niebla del canal
Hasta que llegues a verme
Y ahí entre soles y estrellas
A tu bondad que es enorme
Y a tus internas bellezas
(Gustavo Pena)

Que palavra usar agora que a palavra vale pouco? Preciso inventar novas.
Sou a expoente primeira do Triperalismo. É dali, das tripas, que me saem as vontades, as lágrimas, os textos e a sensibilidade. Mas também é ali que se situa a filial de mim que tem nome fantasia: Melancolia. Onde se apuram e contabilizam num escritório de paredes apertadas, escuro e úmido, a portas fechadas, os preços pagos para manter o funcionamento da matriz: Alegria. As fendas ficam abertas - para que tudo entre, para que tudo possa sair. Pelo pátio da matriz zanza um cachorro sem raça que corre e corre e ladra e busca e se diverte mas sempre volta muito dolorido com os espinhos de um porco todos cravados no focinho - sem entender como foi capaz de (se) machucar tanto. Na filial, se alimenta de realismo mágico um elefante-baleia imaginário que cresce, cresce e, dobrado, não passa por baixo do vão dessa porta de ir embora quando deve. E pesa. Ainda outro dia, antes de dormir, me ocorreu a imagem de uma mãe sentada num banco de parque, displicente, sem reparar na criança aprendendo a brincar sozinha na gangorra. Queria os altos, mas não sabia administrar os baixos. Até entender que, para aquela brincadeira, precisava dois extremos: um de subir e outro de descer. Atrever-se a flutuar, só jogando pra cima o fardo que afunda. E então aproveitar os microssegundos até que caia de novo. Primaverar o blue e o gris em cores vivas, quentes, solares. Até lá, chorar na mesa de qualquer restaurante. Não se constranger de sentir, se é de sentir. Deixar as lágrimas se anunciarem como febre - para regular a temperatura dos sentidos, cozinhando em água quente e salmourada um caldo fino de temperar as bochechas com líquido
que verte
entre as durezas e belezas.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Bélica

Sem hora
das minhas guerras
Internas
Da batalha do meio para a frente
Ignorada.

Sou na fagulha
Toda explosão
de culpas mais defesas
Em câmera
rápida.

Solto a cavalaria
Na bandeira hasteada:
O dedo aponta
em gatilho
Um ricochete.

Só o tambor conta seis demoras
na boiada
dada
Pra não sair (mais
Como culpada
E até quando menos
- deveria?
Estou sempre armada