segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Eco [31]

Visto um chapéu de safári verde-oliva sempre que preciso fazer uma expedição aos arquivos antigos em busca de mais espaço. É porque é muito selvagem visitar a minha história contada - e repetida - por todas aquelas figuras ou missivas e doçuras-amarguras que agora parecem tão antigas. Experimento quase forçado esta onisciência zenital, vendo de cima e de depois deste monte onde se amontoaram todas as minhas ingenuidades e buscas por reciprocidade, todos os meus dramas e certezas, no qual por cima se esfarelam fininhos e infiltrados os ciúmes e traumas, as dedicações ou demoras, os egos e carências. Nunca mais serei ocioso a ponto de me fotografar letra por letra. Há nisso algum saudosismo, mas mais uma espécie de alívio. Revisitar estes arquivos é me perguntar se vivem, do que não se alimentaram e como repousam no fundo da minha memória os eus passados. São coordenadas para voltar a mim ou muletas atrás das quais me escondo, como uma vez me insinuou a Laura? Estes registros são, agora, como ipês amarelos que contêm a primavera inteira - que florescem e depois minguam, que espatifam, que mofam, que secam, que decompõem em adubo urbano os asfaltos, sujando o caminho. Mas são tão bonitos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Vestida para matar

- Ihhh, lá vêm as meias finas pretas
- O que será que vai ser hoje, meu parceiro?
- O scarpin preto ou a bota de bico fino, aposto
- Tomara que seja a bota, o scarpin me mói o calcanhar
- O meu também. Mas ela ganhou um novo, lembra? Talvez sirva melhor
- Eles sempre moem. Se tem uma coisa que eu aprendi nesses anos de estrada, é isso. Scarpins sempre moem, quanto mais novos pior, não importa o tamanho. Já devias saber.
- É vero. Ela também não aprende nunca a comprar um tamanho maior ou devolver pra loja, né, é incrível. 
- A real é que eu acho que não tem tamanho certo. Eles são feitos no formato de machucar.
- Tens razão. Talvez ponha ao menos um band-aid?
- Não. Vai ter preguiça de tirar a meia agora e não vai ser brega a ponto de usar por cima
- Então tomara que seja a bota!
- Acho que tá calor demais pra bota, nós vamos suar se esquentar até o almoço
- Se esquentar nós vamos suar de qualquer jeito, com essas meias...

- Ih, não olha agora, lá vem o scarpin novo.
- Olha, eu vou reclamar já, que é pra se tocar de nem inventar de passar o dia com isso
- Vamos juntos no três. Um dois e
- AAAAI. Essa merda doeu, hein? Precisei nem fingir
- Aaai, ai, eu sou um pouco menor e já fui obrigado a reclamar também
- Ai. Vai tirar, vai tirar. Ai. Tenho fé.

- Ufa. O que será que vem em substituição?
- A bota?
- Pode ser, mas vai suar..
- Ela meio que não liga.
- Esse scarpin novo aí vai dar igual os óculos: comprou outro e ainda tá usando o velho
- hahahaha Aquela carniça.
- Ri não, hein. Às vezes mais vale valorizar o conforto do que a beleza
- Beleza? É, não vou me meter, que isso não é meu departamento.
- Até parece que não sabe que metade do que a gente passa é em nome da beleza...
- Às vezes eu tenho a impressão de que ela faz isso com a gente só pra melhorar a postura da coluna enquanto anda
- Não adianta nada, os ombros continuam caídos e ela é corcunda de qualquer jeito
- Mas a lombar melhora, vai...
- É... Ou tem a ver com aquele papo de vencer a primeira batalha do dia, né? Viu que ela começou a arrumar a cama?
- Pelo menos isso faz ainda descalça
- hahahah Pelo menos. Se não seria uma batalha em cima de outras batalhas.

- Brother, eu acho que tá vindo aí aquela sapatilha sem salto.
- Não creiooooo. A confortável? Mas como assim? Ontem e anteontem ela já usou tênis, hoje não é segunda-feira?
- Parece mentira!
- Parece mentira é quando eu imagino que ela podia ter escolhido fazer Educação Física
- Aí sonhou alto, hein? Metade da vida dela te apertando na ponta, mil calos e bolhas acumulados e tu ainda não aprendeu o jeitão que ela gosta de nos tratar
- Com a minha sorte, ia é virar jogadora de futebol
- Ou dançarina de balé
- hahahahahah, pode crer.

- Papo reto agora. A gente meio que deformou pra caber na vida dela, né?
- Bastante. Esse calo duro do meu menor não vai curar é nunca.
- Desse eu tenho, também.
- Que bom, porque ultimamente ela ainda começou a nos comparar
- Quê!?
- É, começou a nos comparar.
- Dessa eu não tava sabendo
- Eu não gosto de fofoca, mas desde que cortou a do teu maior assim diagonal, ela anda te olhando torto e te achando mais feio que eu.
- É muita coragem! Sinceramente! Eu não peguei fungo nenhum, quem pegou foi ela, e sabe-se lá como, deve ter sido na pedicure. E quem achou esse jeito escroto de tentar resolver foi ela, também.
- Fala sério, eu sou mais bonito mesmo.
- Metido.
- E eu tenho tudo o que ela gosta: as unhas inteirinhas.
- Cretino. Te cuida não que eu tropeço em ti, hein.
- Relaaaxa. Tô brincando contigo, mano. Logo vem o verão e a gente respira melhor.
- Se eu bem conheço, vai ser esmalte semana sim, semana não.
- Mas aí ela não vai mais nem ver essa nossa diferença
- A semana mal começou e essa conversa me deixou exausto. Queria tanto ser bem tratado, massageado, escaldado com ervas
- Por ela? Vai sonhando
- Agora que ganhamos esse conforto por mais um dia, deixa ao menos eu imaginar um futuro melhor?
- Deixo. Mas não vai me surpreender se amanhã ela já escolher de novo ir vestida para matar
- Matar nós dois, só se for
- Nós dois e essa vontade estranha de se sentir adequada

terça-feira, 17 de setembro de 2024

La plata

O peso da porta do quarto onde eu durmo é um cofrinho de brinquedo que imita um cofre de verdade e que abre se o fecho é virado para o 70. É um dos poucos bens materiais que eu guardei da minha infância. Cabia um cadeado, mas nunca pus. Eu nunca tive muito apego às coisas, embora deteste não saber onde estão ou notar que sumiram, e me desfiz sem muita cerimônia de vários cadernos, diários, daquele taco de bets com meu nome pirografado na fonte da Coca-Cola com o adesivo das Meninas Super-Poderosas colado e de tudo o mais, o que deixa ainda mais simbólico e engraçado eu ter guardado não uma boneca (a única Barbie da vida), nem um utilitário gibi, mas justo um cofre. Um cofrinho. Tem em cima dele uma marca áspera na tinta lisa que eu guardo como um segredo. É a forma de um dedo sujo de brigadeiro, que encostei enquanto enrolava vários em algum aniversário quando ainda era criança, talvez até no dia em que ganhei de presente, mas não me lembro direito da circustância. Só lembro de ter pensado, dias depois de muito esfregar, ao ver que a marca não ia sair ou uniformizar de novo no verde do revestimento, que deve haver muita química nos corantes daquela época, imagina o que faz no estômago. E que talvez mais valesse ter continuado com o cofrinho prata amassado da Minnie - que já estava meio enferrujado nos cantos mas era o meu de estimação e as moedas não trancavam nas extremidades porque era cilíndrico e eu já tinha aberto dezenas de vezes em cima da cama para separar tudo por valor, e depois contado com meu pai enquanto ele me ensinava a contar e a por tudo em sacolas de plástico bem amarradinhas para facilitar a troca. Talvez tenha sido ali que aprendi a guardar e dar valor ao dinheiro - eu não tenho certeza, nunca entendi de onde veio essa minha rebeldia. Também nunca entendi se lemos minei o nome da Minnie só pra rimar com Mickey ou se existe um justo motivo na língua inglesa, mas essa é outra história. Sou boa de decorar. O jeito certo de escrever as coisas, mesmo que elas não façam tanto sentido assim pra mim. Os nomes completos. E os movimentos automáticos do dia a dia. Para fechar a porta do quarto onde eu durmo, nas raras vezes em que é preciso - geralmente só para acessar as roupas do cabideiro fixo atrás - há dois anos e quase meio arrasto com o pé direito o metal meio empoeirado contra o piso na direção da porta do banheiro. Minhas economias poucas fazem sempre o mesmo barulho. As moedas tilintam apertadas umas contra as outras. Outro dia troquei um pouco no Café, porque começaram a pesar demais para arrastar. Elas parecem cada vez mais escassas no mercado. Precisa-se de moedas, lê-se também nos caixas de padaria. Ainda lido com muitas moedas, apesar de tudo. Coisinhas físicas que valem o quanto houver escrito nelas. Cujos lados opostos se grudam entre si por uma camada fina de metal benzida pelo Banco Central.
Diz-se que para decidir qualquer coisa basta jogar uma moeda para cima e, naquele milésimo de segundo em que está no ar ou se esconde entre o dorso da mão e a palma da outra, saberemos o que escolher, porque saberemos pelo que torcemos. Meu ponteiro não marca mais 70 há muito tempo. Essas moedas são do valor que eu escolhi perder e do preço que me obriguei a pagar quando as quis jogar pra cima.
Hoje saem, mais uma vez, voando pesadas rumo a um céu pela janela de não saber pra onde.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Triperalismo

Se guardarán tus tristezas
En un gran libro de sal
Se guardarán como agua
En la niebla del canal
Hasta que llegues a verme
Y ahí entre soles y estrellas
A tu bondad que es enorme
Y a tus internas bellezas
(Gustavo Pena)

Que palavra usar agora que a palavra vale pouco? Preciso inventar novas.
Sou a expoente primeira do Triperalismo. É dali, das tripas, que me saem as vontades, as lágrimas, os textos e a sensibilidade. Mas também é ali que se situa a filial de mim que tem nome fantasia: Melancolia. Onde se apuram e contabilizam num escritório de paredes apertadas, escuro e úmido, a portas fechadas, os preços pagos para manter o funcionamento da matriz: Alegria. As fendas ficam abertas - para que tudo entre, para que tudo possa sair. Pelo pátio da matriz zanza um cachorro sem raça que corre e corre e ladra e busca e se diverte mas sempre volta muito dolorido com os espinhos de um porco todos cravados no focinho - sem entender como foi capaz de (se) machucar tanto. Na filial, se alimenta de realismo mágico um elefante-baleia imaginário que cresce, cresce e, dobrado, não passa por baixo do vão dessa porta de ir embora quando deve. E pesa. Ainda outro dia, antes de dormir, me ocorreu a imagem de uma mãe sentada num banco de parque, displicente, sem reparar na criança aprendendo a brincar sozinha na gangorra. Queria os altos, mas não sabia administrar os baixos. Até entender que, para aquela brincadeira, precisava dois extremos: um de subir e outro de descer. Atrever-se a flutuar, só jogando pra cima o fardo que afunda. E então aproveitar os microssegundos até que caia de novo. Primaverar o blue e o gris em cores vivas, quentes, solares. Até lá, chorar na mesa de qualquer restaurante. Não se constranger de sentir, se é de sentir. Deixar as lágrimas se anunciarem como febre - para regular a temperatura dos sentidos, cozinhando em água quente e salmourada um caldo fino de temperar as bochechas com líquido
que verte
entre as durezas e belezas.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Bélica

Sem hora
das minhas guerras
Internas
Da batalha do meio para a frente
Ignorada.

Sou na fagulha
Toda explosão
de culpas mais defesas
Em câmera
rápida.

Solto a cavalaria
Na bandeira hasteada:
O dedo aponta
em gatilho
Um ricochete.

Só o tambor conta seis demoras
na boiada
dada
Pra não sair (mais
Como culpada
E até quando menos
- deveria?
Estou sempre armada