domingo, 21 de janeiro de 2018

Eco [14]

A primeira vez em que eu fui abandonado mudou a minha vida decisivamente. A primeira vez em que me senti insuficiente, também. A sensação de rejeição nunca mais deixou de penar sobre a minha cabeça como um fantasma desalmado. Embora eu tenha tido milhares de bons e leves momentos depois, o inferno sempre vinha. Com aquele desespero próprio do abandono eu descobri o que era taquicardia, insônia e estômago embrulhado mesmo com a dieta em dia.
Nunca mais parei de me cobrar a perfeição como se ela fosse tangível. E sofri tanto, tanto, toda vez que percebi que falharia e machucaria quem eu só queria amar. Porque eu criei uma casca, um escudo, uma resistência. Não por mal, nem sempre eu tomaria dois litros de água por dia, escovaria os dentes antes de dormir e cumprimentaria o porteiro. Nem sempre eu seria uma boa pessoa. Eu não amaria direito e macio e em paz de forma perene. Aliás, quase nunca. Esta não era uma qualidade que eu poderia oferecer. Essa medida do quanto eu era falível me vinha com um medo de que ela me cortasse da vida em definitivo. Depois de me rejeitarem primeiro, nunca mais deixei de amar narciso, acreditando que só daria certo com um espelho. Com defeitos que eu já conhecesse em mim. Nunca encontrei uma pessoa-espelho. Fiquei sendo o fiscal das minhas fraquezas. E as projetava maiores do que poderiam ser, como quem prova uma roupa nova e, apesar de achar linda, mira duas vezes e não gosta do caimento nos ombros. Quem sabe em outro corpo o amor cairia bem.
Depois daquela primeira vez foi sempre como se eu fosse uma criança que dependesse de estar agarrado no seio de sua mãe para manter-se vivo. Para manter-se a salvo de sua própria miséria individual e solitária. Sendo o seio da mãe o ser amado e eu a face infantil da dependência. Que precisasse espernear para ter atenção, e que espernearia, de qualquer modo, mesmo que não precisasse. Atenção exclusiva, exclusivíssima, me jura e me prova, amor, pula daquele prédio, amor, põe aqui este cabresto, amor, senão já não me deixava mais seguro que chega, amor. Impus minhas vontades como soberanas. Ou me foi dado um cetro para que governasse aquele relacionamento? Dei muito show, que é pra ter certeza do público. Que mal imenso e injusto o abandono fez comigo. E com a Laura. Ora, ora, que grosseria abominável da vida um amor daquele acabar.
A primeira vez em que eu amei com unhas e dentes potencializou muitíssimo a sensação de abandono, porque ela vinha acompanhada da perda de uma energia vital. Com um choro soluçante de quem conhece bem a fórmula para ser acalmado, mas não está sendo. Precisa agora parar, sozinho. Secar sozinho as próprias lágrimas com o desejo de que alguém as sorvesse com a classe e delicadeza do chá das cinco. Como se não fosse esforço nenhum fazer a digestão de cacos de porcelana salgada.
A Laura foi a razão da minha ruína. Cortou minhas vísceras por dentro, enquanto eu fazia cara de paisagem para tentar engoli-la plenamente. Quando a perdi, perdi também minha integridade como homem e indivíduo. Perdi meu propósito mais imediato. Eu quis tanto não ter adormecido agarrado em sua camiseta manchada de desodorante. Quis gozar de boa saúde e não ter o corpo inteiro denunciando em coceira a falta que ela me fazia. Ajoelhar suplicando perdão por já ter sido abandonado um dia. E por ter medo. Por não conseguir deixar para lá. Por me fazer de vítima quando o abusivo era eu. Por me sentir deficiente. Por não oferecer a ela a compreensão de que ela precisava. Por ela esbanjar tudo que me faltava, e vice-versa. Mas nenhuma súplica apagaria nada. Porque o perdão, um sábio me disse um dia, não é amnésia. O desespero da Laura diante da vida continuaria sempre medindo forças com o meu. Que era tanto, depois do primeiro abandono. E só queríamos deitar em nossos travesseiros e dormir de novo tranquilos como antes de nos encontrarmos e abandonarmos. Mas nunca mais.

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