segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Eco [15]

Eu tenho um amigo que virou crente. Depois de beber vodka comigo até de manhã algumas vezes e dar uns amassos dentro do carro da mãe dele no pátio do ginásio de esportes, Laura. Dá pra acreditar? Bom, eu não virei. E por muito tempo eu não entendi como aquilo tinha acontecido com ele, mas isso não vem ao caso. Já não importa. Eu só quero falar que isso consome tempo e neurônios da minha vida que eu acho que não são consumidos da vida dele. Em todos os setores. Quando a matéria é relacionamento, então, nem se fala. Porque eu cresci dizendo que não queria casar e ter filhos. Eu disse isso pra ele, aos 19, e ele riu. Cresci ouvindo as pessoas me mandando bater na boca, que Deus podia castigar. Ouvindo as pessoas dizerem que com o tempo passava. Porque, é claro, aos 19 dizer isso é uma excentricidade, depois é que complica. O mito do amor romântico foi-se embora pra mim faz um tempão. Eu nem sei dizer quando. Talvez aos 11. E desde que eu amadureci e descobri que podia, efetivamente, não casar e não ter filhos, a contragosto das batidas na boca que eu não dei, isto ganhou o peso de uma escolha. Uma escolha toda minha. Uma escolha que ainda passa pelas lentes com as quais as outras pessoas me enxergam. Uma escolha que atravessa os ponteiros do relógio biológico feminino, Laura. Uma escolha que se revela também uma espécie de poder. Só que este poder veio, como era natural que viesse, carregado de uma série de consequências. Não querer ou mesmo não ter como preceito primordial o que as pessoas esperam que você queira pode ser desesperador. Dá uma sensação de desajuste que eu nunca tive. E as pessoas esperavam que eu quisesse namorar, casar e ter filhos. Eu tenho várias amigos que querem casar e ter filhos desde sempre. Eu tenho amigos que já casaram. Eu nem ao menos posso dizer com segurança que nunca vou casar e que nunca vou ter filhos, mas ser uma pessoa que tem coragem de dizer que isto não é um sonho em voz alta ainda me faz um bicho estranho. Talvez sempre fará. Para ser franco, ser um bicho estranho repele muita gente legal. E também atrai outros bichos estranhos, que nem sempre sabem o que querem da vida. É isto. É este o ponto. Ser alguém com muitas possibilidades atrai outras pessoas com muitas possibilidades, quase nunca compatíveis, porque parece prova de múltipla escolha sem resposta certa. A gente fica somando e subtraindo sem saber onde vai dar. Dado o desafio de se encontrar, que pode levar uma vida inteira, é como se a pessoa estando liberta do que lhe impuseram fosse liberta para andar atrás do próprio rabo. Estamos todos nós, os que provavelmente não querem casar, ocupados demais descobrindo o que há em cada porta da esperança do Silvio Santos para além daquele formato cristão de ser feliz. E é por isso que eu acho que a vida do meu amigo que virou crente é um pouco mais tranquila do que a minha agora: toda mulher crente que ele conheceu crente quer casar. Pelo menos o formato de relacionamento que eles procuram é uma unanimidade. Sobra tempo pra surpreender em coisas como o corte de cabelo e a profissão, por exemplo. Eu, não. Eu tenho um deserto inteiro para atravessar, Laura. Eu preciso descobrir o que eu quero e, só depois, achar quem queira igual. É muito trabalho! Depois que você tira a prioridade do casamento do pódio hors concours, a pista se abre em tantas raias! Minha nossa! Dá um medo. Às vezes o desespero é tanto que dá vontade de entrar em qualquer porta e ficar ali paradinho. Mas é uma delícia. Mas às vezes tudo o que você quer é colocar a prioridade dos outros pra você lá no topo de volta, na caixa, quietinha. Ajeitar com o pé. Com os dois pés, fazendo força contra a parede. Chamar alguém pra ajudar. Não cabe mais. Para confabular a frase de efeito perfeita, depois que um horizonte se abre, ele não fica mais estreito na vertical. O meu maior desafio enquanto pessoa que descobriu que pode mesmo não casar por não querer, mas acha meio triste viver sozinho pra sempre, é encontrar alguém que saiba que pode não ser feliz pra sempre e já tenha encontrado a medida certa entre o desespero e a porralouquice, pra me ensinar. Mas como eu também não creio que alguém mereça este fardo que seria o tal do ensinamento, fica assim. Eu meio zonzo e inquieto, num desconforto ímpar. Eles meio vagantes. Estando ali, de olho em tudo ao redor. Nasci cansado. Eu fico esperando que alguém finalmente me anteceda. Eu só quero alguém se for para descobrir comigo genuinamente o que eu quero, Laura, sem ninguém dizer que era só isso que eu devia querer.

Talvez mais valha virar crente.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Para viver um pequeno amor

Antonio me esqueceu da gramática. Quando dei por mim ele já estava impregnado na memória e no idioma da cidade, enquanto eu ainda crescia os olhos sorridente com um encantamento inédito por cada ruazinha estreita e por cada sobrado florido. Foi assim que o contexto me deu o Antonio, com aquela camisa branca de sábado e não me olhando, definitivamente não me olhando num canto do bar, enquanto eu ria da minha capacidade de engendrar romances impossíveis.
As circunstâncias colidiram o meu caminho no de Antonio, presenteando-o com uma mulher que eu não lembrava que podia ser e, ao mesmo tempo, secretamente sentia falta de ser. Passeando deslumbrada de chapéu panamá pelas praças de um tempo antigo. Dançando salsa despreocupada a milhares de quilômetros de casa. Desafogada da rotina e da pressão de ser quem eu me acostumei.
O Antonio me descobriu uma mulher de vacaciones e cheia de vida. Nova e livre. Ele me desobrigou daquela necessidade ultrapassada de parecer moderna. Agora eu não estava à frente e não estava atrás: agora eu estava ali. Há muito calor e nenhum compromisso com a vanguarda no terceiro mundo acima da linha do Equador. E foi lá que Antonio me surpreendeu a retórica. Quando dei por mim olhava pra trás, coqueteando descaradamente para ter certeza de que ele me seguiria. E todo dia o Antonio ia desaprendendo os meus títulos acadêmicos e méritos, para aprender coisas mais importantes e interessantes sobre mim. Coisas que eu ignorava. Coisas que eu também não sabia. Deve ter sido assim que Antonio desapareceu a minha pretensa erudição: quando ele não se importou com os meus verbos mal conjugados e com as minhas frases pela metade mas, ao contrário, achou aquilo estranho e excêntrico. Una bonita casualidad. Enquanto repetia não ter nada a perder, o Antonio reinventou o significado de ganhar. Porque o Antonio me ganhou por uns dias. Tornou-se mais uma possibilidade onde eu pretendia que tudo fosse descrédito.
Eu levei a alma pra passear naquele destino sonhado e o Antonio ofereceu o braço e o peito tatuados para me fazer companhia. Agora, de volta à casa, eu me pergunto se o dialeto do Antonio comporta a palavra expectativa, porque isso me assustaria. Mas para viver um pequeno amor não é necessária a renúncia e o cansaço que exigem os grandes. Só é preciso estar distraído o suficiente.
Antonio me deu a impressão de que somente homens fugazes como ele serão capazes de me acompanhar, cambiante, nesta fase da vida, embora dizer isso em voz alta seja proporcionalmente emocionante e assustador. Se qualquer amor tiver de ser pequeno para que eu continue gigante, que seja. Mas que continue a arder de tempos em tempos, como o mistério da identificação com um estrangeiro, já que em alguma medida somos todos. Que a gente se reencontre pelos caminhos que seguir, sobretudo com a melhor versão do que deseja ser. E sempre com o assombro da primeira vez.
A inspiração é o melhor legado de un pasajero de vida a otro.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Eco [14]

A primeira vez em que eu fui abandonado mudou a minha vida decisivamente. A primeira vez em que me senti insuficiente, também. A sensação de rejeição nunca mais deixou de penar sobre a minha cabeça como um fantasma desalmado. Embora eu tenha tido milhares de bons e leves momentos depois, o inferno sempre vinha. Com aquele desespero próprio do abandono eu descobri o que era taquicardia, insônia e estômago embrulhado mesmo com a dieta em dia.
Nunca mais parei de me cobrar a perfeição como se ela fosse tangível. E sofri tanto, tanto, toda vez que percebi que falharia e machucaria quem eu só queria amar. Porque eu criei uma casca, um escudo, uma resistência. Não por mal, nem sempre eu tomaria dois litros de água por dia, escovaria os dentes antes de dormir e cumprimentaria o porteiro. Nem sempre eu seria uma boa pessoa. Eu não amaria direito e macio e em paz de forma perene. Aliás, quase nunca. Esta não era uma qualidade que eu poderia oferecer. Essa medida do quanto eu era falível me vinha com um medo de que ela me cortasse da vida em definitivo. Depois de me rejeitarem primeiro, nunca mais deixei de amar narciso, acreditando que só daria certo com um espelho. Com defeitos que eu já conhecesse em mim. Nunca encontrei uma pessoa-espelho. Fiquei sendo o fiscal das minhas fraquezas. E as projetava maiores do que poderiam ser, como quem prova uma roupa nova e, apesar de achar linda, mira duas vezes e não gosta do caimento nos ombros. Quem sabe em outro corpo o amor cairia bem.
Depois daquela primeira vez foi sempre como se eu fosse uma criança que dependesse de estar agarrado no seio de sua mãe para manter-se vivo. Para manter-se a salvo de sua própria miséria individual e solitária. Sendo o seio da mãe o ser amado e eu a face infantil da dependência. Que precisasse espernear para ter atenção, e que espernearia, de qualquer modo, mesmo que não precisasse. Atenção exclusiva, exclusivíssima, me jura e me prova, amor, pula daquele prédio, amor, põe aqui este cabresto, amor, senão já não me deixava mais seguro que chega, amor. Impus minhas vontades como soberanas. Ou me foi dado um cetro para que governasse aquele relacionamento? Dei muito show, que é pra ter certeza do público. Que mal imenso e injusto o abandono fez comigo. E com a Laura. Ora, ora, que grosseria abominável da vida um amor daquele acabar.
A primeira vez em que eu amei com unhas e dentes potencializou muitíssimo a sensação de abandono, porque ela vinha acompanhada da perda de uma energia vital. Com um choro soluçante de quem conhece bem a fórmula para ser acalmado, mas não está sendo. Precisa agora parar, sozinho. Secar sozinho as próprias lágrimas com o desejo de que alguém as sorvesse com a classe e delicadeza do chá das cinco. Como se não fosse esforço nenhum fazer a digestão de cacos de porcelana salgada.
A Laura foi a razão da minha ruína. Cortou minhas vísceras por dentro, enquanto eu fazia cara de paisagem para tentar engoli-la plenamente. Quando a perdi, perdi também minha integridade como homem e indivíduo. Perdi meu propósito mais imediato. Eu quis tanto não ter adormecido agarrado em sua camiseta manchada de desodorante. Quis gozar de boa saúde e não ter o corpo inteiro denunciando em coceira a falta que ela me fazia. Ajoelhar suplicando perdão por já ter sido abandonado um dia. E por ter medo. Por não conseguir deixar para lá. Por me fazer de vítima quando o abusivo era eu. Por me sentir deficiente. Por não oferecer a ela a compreensão de que ela precisava. Por ela esbanjar tudo que me faltava, e vice-versa. Mas nenhuma súplica apagaria nada. Porque o perdão, um sábio me disse um dia, não é amnésia. O desespero da Laura diante da vida continuaria sempre medindo forças com o meu. Que era tanto, depois do primeiro abandono. E só queríamos deitar em nossos travesseiros e dormir de novo tranquilos como antes de nos encontrarmos e abandonarmos. Mas nunca mais.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eco [13]

Confesso que em alguns momentos eu pensei que houvesse aprendido, pelo amor, a amar a Laura de um jeito livre. A compreender que ela poderia beijar duas centenas de bocas, deitar-se com mais de uma dúzia de corpos, ou quem sabe um belo dia se apaixonar por outra pessoa e, ainda assim, no íntimo eu seria para ela tudo aquilo ou mais que ela havia sido para mim.
Em outros, pela dor, pensei que houvesse aprendido que o nosso amor não passava de um daqueles furos que conhecidos distantes, como fontes anônimas, dariam a jornalistas e escritores para a produção de biografias impróprias e não-autorizadas, quando alguém é acometido pela fama (para enriquecer a monotonia da minha vida, se o famoso fosse eu, ou para exagerar nos detalhes sórdidos da vida excêntrica que ela sempre levou, se a famosa fosse ela).

Mas não aprendi nada sobre nós. Decisivamente, ao menos, nada.
Queria que fosse linear, mas eu aprendo e desaprendo coisinhas miúdas todos os dias.

Devaneio insistente essas coisas porque, sabemos, sobram sempre muito mais perguntas do que respostas absolutas quando algo assim acaba. Escrevo, mesmo sabendo que nunca chegarei a uma conclusão definitiva, porque escrever me ajuda a especular o motivo para que ela tenha me deixado, ou expiar os bodes, ou simplesmente investigar as reais razões da nossa ruína.
Às vezes eu sinto e sentia que poderíamos ter insistido, noutras acreditava e acredito que estávamos perdendo tempo. O fato de que foi ela quem teve um ímpeto para consumar a decisão pela segunda opção foi um completo acaso, mas ele traz consigo um peso enorme para o ajuste das coisas nos atos seguintes deste teatro de superação pós-término: sendo eu a vítima, ela o algoz. Ela a bandida e eu o mocinho.
Para aliviar a consciência, Laura deve ter se convencido de que éramos incompatíveis. E nós éramos? Eu não sei se nós éramos. E ela também nunca mais vai saber, apenas lutar para se convencer disso, quando as perguntas que sobraram ao nosso respeito lhe pegarem desprevenida no meio do dia - se é que pegarão. A incompatibilidade é uma desculpa tão, tão, tão genérica e boa para evitar o enfrentamento dessas minúcias e mudanças todas que nós exigíamos na vida um do outro, que ela passa, impunemente, como uma grande verdade.
Teríamos nos amado para sempre, se eu fosse outro? Eu não fui outro. Quanto me custaria ser outro? Ela teria ficado, se eu estivesse mais disposto? Eu não estive mais disposto. A desistência se confunde um pouquinho com a covardia. A Laura desistiu. E tudo bem, ninguém pode culpá-la. Eu também fui presenteado com uma covardia ímpar para lutar contra os nãos que me deram e eu achei que mereci.
Sabia que a Laura seguiria em frente antes de mim. Digo, envolver-se romanticamente com outra pessoa. Eu só não sei se eu tinha essa certeza porque a considero carente e fraca, sangue frio e forte, carente e forte, sangue frio e fraca, ou carente e sangue frio. E, de novo, fosse como fosse, quem poderia culpá-la? A alma humana é cheia dessas complexidades e combinações inusitadas.
Eu só não cairia de novo na armadilha de demonstrar que achava que tinha perdido a corrida a que nos propusemos em direções opostas depois do fim. Porque eu tinha, é claro que eu tinha, mas ela não precisava saber. Quando a gente se dá conta, passou tempo suficiente para que não faça sentido dizer palavras cruéis advogando em defesa das nossas misérias. Mais tarde, não faz sentido exigir que a vida dê o troco ad eternum a alguém que nos feriu.

Laura e eu nunca seremos famosos. Ninguém se lembrará de nós. A opinião pública nunca será incitada a tomar partido, para decidir quem tinha razão. Nunca mais haverá gesto doce que restaure nela a fé na minha humanidade. E vice-versa. Os mistérios e chaves de como aquele relacionamento poderia ter funcionado continuarão sendo soterrados por montanhas de esquecimento, de minha parte lavados por rios de uma apatia forjada a muito custo.
A ferrugem do que jamais diremos em voz alta outra vez corroerá nossa última chance. O ácido do desencontro dissipará nossos ossos, até que nada nos sustente. Até que seja indolor. E nossas línguas, até que não seja mais dita nenhuma palavra a respeito. E nossa vontade de amar de novo, de um jeito honesto e novo.

Até que amemos outra vez.

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde.