quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Magnólia

Recordo de quando a porta se abriu - ambos tínhamos as chaves. Éramos um para cada lado do batente - nos olhando longamente. Tu tinhas, altivo, uma mochila vazia nas costas. Eu tinha o rosto, a roupa, os cabelos e o corpo, mas sobretudo o rosto, envolto em uma gosma espessa translúcida que escorria lenta de cima para baixo de mim, como na cena que fez de Carrie a estranha. O visgo me avançava da raiz à ponta dos cabelos, das ancas até os pés descalços tocando o chão, das sobrancelhas para a parte alta da maçã do rosto, encobrindo tudo com a forma de estalactites recém formadas. Tudo em mim grudava e dava asco. Tinha cheiro de umidade, noite, absurdo, veneno branco e gelado, canto de parede e bolor.
Eram os resquícios de uma intensa chuva de sapos
ocorrida do lado de dentro.
E nós ali, parados numa manhã seguinte - como se a porta fosse um portal e quem ousasse atravessar pudesse se esfarelar, moer ou ser abduzido. Tu vinhas de fora. Muito de fora do meu redemoinho, ainda fresco da rua, ares de aurora, normalidade, retidão, banho tomado. Foi também tomado da surpresa de me ver naquele estado. Quis saber se eu conseguia enxergar. Te disse: quase não.
E tu deixando de acreditar, como é que pode uma coisa dessas. Ali nasceram mil perguntas insistentes. Sempre as mesmas, a serem feitas de jeitos novos, às quais me custa responder. Sinto que preciso soprar algo em voz baixa e mansa para fora, mas me falta ânimo. Meus lábios semicerrados de não se deixar intoxicar por este caldo gelatinoso que escorre abundante.
A ponto de só conseguir dizer: quase não. E então o vulto dos teus opositores se estendendo na minha direção. A porta, um portal atravessado afinal, pondo à prova uma evolução inteira para tentares me limpar com as pontas dos dedos os dois olhos ao mesmo tempo, direita para a esquerda, esquerda para a direita.
- E agora? Agora tu enxergas de novo?
E te fiz que sim, assentindo com a cabeça para nos mirarmos com intensa e pesada demora. Limpo e suja, real e real, inédito. Prometi não dizer mais “necessário”.
Suspeitei que este visgo e este asco se regenerariam de tempos em tempos, impacientes, de dentro para fora de mim. Depois de dentro de ti para fora de mim. Por fim de dentro de ti para dentro de mim.
Sim, esta também sou eu. Sou feita também desta seiva lisa e pegajosa que parece transpirada diretamente dos meus recônditos - e às vezes se acumula e se avoluma numa camada grossa que vai me circulando para formar um conjunto de mim, que também sou eu. Toca que vais sentir que eu penso, insistente: será que um dia saberei te fazer gostar de navegar sem espanto no fel e no mel disto tudo - que também sou eu, e eu também não entendo?

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Je ne sais quoi

Baixa o dedo do meio
E vê se ergue esse tom de voz
pra falar comigo

Com quem você sabe que está falando?
Se estou prestes a morder
de tanta raiva
de vontade
de nem ficar perto
E também não estar
-hiper-re-agindo-

Ao final agradecer
Imensamente 
Os incentivos
Daquela premonição antiga

Minha língua é marcada
de tanto ficar dentro da boca

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Eco [32]

Do fundo de algum lugar desta noite clara de lua cheia sirena o alarme de um carro, inconveniente e impossível de ignorar, como se houvesse um bicho pequeno e esquivo ativando o sensor de movimento a cada dois minutos. 
Desperto, eu me dou conta de que esqueci duas verdades não ditas bem no teu arco do cupido, Laura. Eu as contorno com fantasia lembrando que ainda estarão lá pela manhã, depois do banho, quando rascunhares as bordas da tua boca de dizer coisas inimaginadas com lápis e batom.
Tenho medo de morrer porque tenho medo de nunca mais poder me perder apontando o inferno ou o céu da tua boca com o indicador tocando naquela parte demasiado macia e granulosa onde começam os teus lábios, tu inteira mucosa, epitelial, conjuntiva como uma oração para me receber. Temo nunca mais poder afundar estes mesmos dedos na tua carne tentando alcançar a derme enquanto me dou conta de que aqui, recostado nestes travesseiros te intuindo dormir, pareço um pouco com um inseto de verão. Circundando hipnotizado, atraído pelo irresistível, quase cego, quase zonzo, tua luz artificial que brilha diuturna no meu imaginário, basta um interruptor (embutido, escondido, acionado - pelo alarme deste carro).

Alcautraz [5]

Bem-vindos ao consagrado e às vezes revelador, outras não muito, tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Com as narinas ainda impregnadas pelo cheiro do Trânsito (há, aliás, quem diga que o mau cheiro em si tem ficha criminal suficiente para que também fosse trancafiado neste ambiente imundo, se lhe fosse possível aprisionar com estas mesmas grades), alcançamos os aposentos de outra figura bastante célebre desta instituição prisional.
Recolhido em flagrante em meados de 2015 com algemas feitas de papel, aos gritos hollywoodianos de protesto meritíssimo, impende destacar que está aí o Advogar Para Parente. Em que pese Advogar Para Parente fizesse parte de uma quadrilha amplamente conhecida, lamentavelmente não foi toda caupturada à época: era composta por ele, Advogar No Interior, Advogar Num Grande Escritório, Advogar No Fim do Ano, Advogar Em Massa Querendo Qualidade de Boutique e o chefe do bando, Advogar Por Si Só. Todos estes absolvidos, porque subornaram a juíza da causa, hoje transitam livremente como se fossem imprescindíveis à manutenção da ordem e indispensáveis à administração da justiça. Sobrou para o Advogar Para Parente, o que tinha mais escrúpulos, constrangido por seus princípios básicos de nunca dizer não e ser sempre o mais solícito que conseguia, declarar-se culpado e cumprir as condenas de todos somadas, todas juntas. Prisão perpétua. Seu celular ainda toca com mensagens de pedidos de ajuda - sim, ele tem um celular, mas a administração finge que não sabe e ainda lhe concede visitas íntimas pelo menos um final de semana por mês, e em todo feriado religioso. Sendo muito eloquente, naturalmente obteve êxito e foi agraciado com muitos admiradores. Romarias insurgentes entoam à frente do Caustelo o bordão da claque, uma reflexão social profunda, atemporal e perene, da qual nem a prisão lhe privou: "Como está o meu processo? Como está o meu processo? Como está o meu processo?". Advogar Para Parente ouve esta espécie de toada de apoio dos populares entrando pelas frestas e sorri amarelo no canto de sua cela. Encolhido, ele acredita que merece. Do temor reverencial de servir aos menos favorecidos ele veio, à família ele inevitavelmente retorna, em looping.
Quase na mesma época, imbuída a gerência da intenção de dar tratamento igual aos polos diametralmente opostos, ocorreu o encaurceramento dO Suposto Saber: um anjo decaído que integra a facção rival do Advogar Para Parente. Isento, neutro e, ao que se sabe, com superpoderes terapêuticos hipnóticos e viciantes, O Suposto Saber finge ser indispensável para todo adulto perturbado até que se consolidem, dia a dia, muitas novas pirâmides de seu esquema. Sussurra teorias junguianas sem citar a fonte. Ouve muito, pergunta amenidades e profundidades enquanto oferece um copo de água e uma caixa de lenços, comporta-se até que bem aqui no Caulabouço. Apropria-se das melhores fofocas, do conhecimento comum (dito em que tom de voz?), da filosofia e dos livros de psicanálise, como uma esponja. Depois, ao que se sabe, pode regurgitar uma gosma verde e letal que gruda na cabeça da vítima, e que precede um golpe mortal como katanas que sua facção apelidou de corte lacaniano. Tomem cuidado. Estudos já realizados revelam que, com olhar inquisidor, ele pode cruzar as pernas como uma senhora de meia-idade com os cabelos recém pintados, o seu colar de pérolas, a roupa toda combinando, um relógio que só mostra as horas para si mesmo e um espelho cognitivo-comportamental apontado para quem chega. O Suposto Saber é uma Medusa ao contrário: olhá-lo despetrifica. O simples contato com O Suposto Saber pode acelerar os pensamentos, reposicionar o que era tido como certo, conduzir aos insights mais geniais - daí a sensação de dependência.
A ponto de esquecermos que, quando a visita acaba, lá longe, das portas deste lugar para fora, é necessário obrar como quem esquece que há tantas jaulas neste subsolo, as ocupadas e as outras, ainda disponíveis a preencher.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Patadas


Sem chegar é que se descobre
Que a volta pode ser mais longa que a ida.
Sim, penso comigo, pode até ter sobrado
uma gota
- não, gota não -
um grão seco
de areia
de fé
permanecida
embaixo das patas
que ainda cruzam este deserto 
sempre tão quente
e inexpugnável
da razão
Para pedir: reze em dobro
por nós.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Flamengos 6:12

No estatuto da minha vida
Há um primeiro artigo que diz
TUDO É PERMITIDO
Tudo posso poder
Na letra miúda escrito:
só que querer é dificílimo

O espaço de querer
E o ímpeto
Undívago
Antes até de arcar com a consequência
Plena de coragem

Dificílimo

E então depois de querer agarrar-se no querer
Para que não escape
Para que dure e valha
a iniciativa da escolha

E depois não ocorra de só querer
outra coisa
Vaga e etérea
Que não a tida.

Durar no querer

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Too cheap

Quem vê solar
O alto claro deste teto
Às vezes se retrai
Com as seis antenas e patas
Finíssimas
Pronunciadas por detrás
Do registro do chuveiro
Manhã e semana passada

Essa barata agora mora aí?
Ela se guarda em carapuça de metal
Por trás de sua carapaça habitual?
Como se enfia sem sair, afinal?

Ela não quer saber
Se quitei à vista
Ou financiei com juros
Essa barata não quer nem saber
A quem pertence a TV
Como serão as escrituras
Quanto eu queria acumular antes dos 30
Ou quantos mil milhões
ainda me falta 
pra largar tudo e ir morar num sítio
viver de renda.
Essa barata vulgar
Não está nem aí
Mesmo estando muito aí
Para a hora da manhã;
A fatura do cartão;
Ou o que custa caro
Só quer saber
De fingir que sai e volta
Pelo cano
Fazendo-me inverter
A lógica e o prumo
De todo banho