Beijinho no rosto. Meu primeiro ato entrando pela primeira vez na antiga casa adaptada para o comércio foi mesmo esse, é incrível...mente difícil de explicar a minha. É. Eu sei. Beijinho no rosto da recepcionista. De quem não sei o nome. Que não entendeu nada. Beijinho no rosto de uma desconhecida prestando um serviço. Uma intimidade estalantemente forçada. Nesse lugar que todo mundo se conhece, chego eu tanto tempo de cidade nova depois, praticamente a mesma cara. E o mesmo nome e sobrenome. E, de nervoso, carco um beijinho no rosto da única pessoa que nunca tinha me visto mais gorda. Como se fosse comadre. Como se houvéssemos nos mordido na creche. Como se eu fizesse parte da família. Essas vergonhas eu passo no crédito. Me dói na hora e eu vou lembrando a prestação. Somam-se os juros da maquininha do constrangimento. Sei que as pernas me amolecerão só de lembrar depois. Como amolecem toda vez que ninguém ri de piada que eu faço pra quebrar o gelo. Agora, como sempre que acontece, num silêncio semi sorrido, eu vou ter que fingir demência e normalidade até amenizar pra mim. Eu, a beijoqueira natural. Que me basto. Que sou simpática. Desencanada. Comigo é assim mesmo, bobeou eu invado o balcão e beijo. Arghhhhhhh. Acho que tô com bafo. Odeio encostar em quem não quero ou respirar muito perto por isso. O alívio é que a moça sabe se defender do importuno. Me interrompe rápido. Podes sentar ali. Quero muito muito explicar tim tim por tim tim que foi sem querer eu me atrapalhei um pouco volta aqui esquece tudo eu vou sair e entrar de novo deleta essa cena que deu errado da próxima vez eu juro que não te beijo agora vai ser a chegada pra valer. Não tenho chance. Ela é mais nova. Mais nova que a última vez que estive no salão para o qual ela trabalha. Isso uns o quê... 15 anos atrás. Portanto, não me conhece. Portanto não entenderia a intimidade que eu acho que tenho com tudo e todos aqui, embora nunca tenha pisado rigorosamente aqui desde que ela trabalha aqui. Vou precisar me conformar. De novo. Pode sentar, ela já vai te atender. Sofá comprido de frente pro espelho horizontal. Muito baixo. Recém reencapado. Confortável. Mas muito baixo. Os meus joelhos ficam mais altos que o quadril. Não me vejo no reflexo. Talvez não seja o público alvo. Espero sem me ver fazendo hora. O meu horário era 8:15, uma outra desmarcou. Aí eu aceitei vir fim do dia. Atrasou um pouquinho, tá? Ela já vai te atender. Devia ter adivinhado e atrasado como sempre. Pelo menos trocaram o horário e não acordei cedo nem corri na estrada. Abro Instagram. Depois o Twitter. Vou alternando. Vai atrasar só mais uns minutinhos hihihi. Reparou? A pilha do relógio da beleza é sempre fraca. Uns minutinhos equivalem a quarenta. Zapeio o Insta. Foi ele que nos reuniu para eu estar aqui de novo. Não trouxe um livro. Que bom, porque ia parecer performance. A última coisa que eu quero é parecer performática voltando aqui. Quero passar batido. Me misturar nativa. Quero provar que sou de onde vim. Simprona. Não quero ó lá a otária metida a besta que agora paga de inteligente no sofá da espera o que ela veio fazer aqui que não fez lá onde ela mora. E neste contexto qual será a imagem que aquele beijinho da entrada transmitiu. E quem diabos pensa tanto quanto eu penso no que pensam sobre. E quem caralhos me implantou a maldita capacidade de parar de seguir as pessoas para esquecer os infortúnios vividos e, embutida, esta bendita aptidão para esquecer o fino dos motivos. Eu sei que vem depois um efeito de Prescrição. Decadência. Caducidade. Adoro esses nomes no juridiquês. Lembro que quando eu ficar velha vou ficar caduca e esquecer tudo com o tempo porque é de família e rio sozinha no sofazinho como se fosse bom esquecer todas as coisas só pra esquecer também algumas. Como eu disse, caduca. Deve ser isso que me fez voltar aqui como se nada fosse nada. O carro sujo de chuva e poeira ali na rua quase deserta depois da porta aberta por sorte me humaniza. Um pouco. Ao menos eu acho. Um carro sujo de chuva e poeira na frente de um salão sem placa no segundo bairro mais urbano desta Terra Mãe que Embalou o Meu Viver no interior onde nasci. Trocaram o calçamento por asfalto tem nem dois anos. Passo aqui na frente a cada um mês ou dois. Às vezes mais, porque não é caminho. Mas notei hoje que não reinstalaram a antiga placa depois da obra. Nem precisam. Todo mundo conhece a Tânia e as filhas. Elas descendem de larga linhagem de prestadoras de serviços de beleza no Salão da Tânia. Desde adolescentinhas. Desde que a sede era a outra, na sala da frente da casa delas. Desde aquela fatídica ocasião em que eu consegui um encaixe pra fazer prancha pra formatura do ensino médio mesmo marcando de última hora e acabei soltando que só tava ali porque o outro salão em que se fazia menos fofoca não tinha horário. Por quê? POR. QUÊ. Minha Nossa Senhora do Rosário, de Fátima, das Dores, de Guadalupe, de onde quer que seja que já tenha aparecido, me apareça agora só pra fazer desaparecer essa memória de mim a jato e eu não ir embora sem explicar nada. Gasto meu tempo no sofazinho sonhando com a cirurgia de redução de língua que um dia, tenho muita fé, farei de cobaia e de bom grado entregando o meu corpinho à ciência. De repente me voluntario pra um botox de atrofiar disparates antes que eu os despeje com a minha boquinha de disquete afora. De novo. Sei que a qualquer momento posso fazer de novo. Ainda tenho o dom. Minhas pernas amolecem como é praxe só de lembrar da gafe. Sorte que estou sentada. No sofazinho que deve ser aquele que ficava na outra sala da casa delas antes e o marido da Tânia vivia deitado, presunço eu. Nem tenho tempo de me autocensurar por mais esta ideia classe média burguesa que ascendeu de classe e Zofia desponta na porta da sala dela, a mais ampla e iluminada, de prestígio entre a família, a bem da frente, denunciando com zombaria a cliente com as sobrancelhas finas recém pigmentadas que sai junto com ela. Atrasou foi por causa dela, briga aqui com ela viu, ela chegou tarde, não sei o quê, não sei o que lá. Uma coisa nada passiva. Também nem tão agressiva. Deve ser uma cliente de sempre, ao contrário de mim. Sorrio amarela dizendo não tem problema eu tô com tempo hoje é sábado. Ela me chama pelo apelido que nunca errou pondo um L a mais desde que lhe expliquei por que é como é e me convida pra entrar. É a mesma Zofia de sempre. Só que está com o triplo de boca. O cabelo meio sujo, amarrado. Nada de maquiagem: os poros precipícios, as manchas destacadas. Bem ao contrário dos filtros que usa no perfil da estética. Lá ela não é Zofia, é @ZS_MakeupArtist. Faz muito mais que isso, todo mundo sabe. Zofia Silva maquia como ninguém, mas também micropigmenta, e limpa pele, e habla y habla. É da versão vida real que eu ainda me lembrava. Ainda é a mesma. Minha primeira amiga da quarta série depois de trocar de colégio. É um nome italiano, ela gabava na época. Não devia ser Sofia? Eu pensava. Uma vez cheguei a dizer. Não, ela respondeu. Não, na Itália é assim mesmo, você é que não sabe de nada. A boa e velha Zofia, que sempre sabia de tudo. Deito na cadeiraca de espremer e embelezar gente e ela me alcança a cobertinha. É uma espécie de cadeira mas também é uma maca, reclinada. Lembra um pouco as de dentista. Por causa da ring light bem em cima, que é boa pra selfie e pra fazer os antes e depois dos procedimentos pra postar e mostrar o trabalho. Eu odeio. Porque eu também julgo. Só não mais que quando não fazem de mim e nem perguntam se eu deixo, porque aí acho que sou das clientes que não deu o resultado esperado. Ou das mais feias, que não compensa mostrar nem pra espantar mosca. Mas, se perguntam, eu digo que não quero. Que tenho vergonha. A gente vai em salão de beleza é pra ninguém mais ver o antes. Mas ela, Zofia mesmo, sei que não vai nem perguntar e nem fazer. Ela me conhece. Quase me adivinha. Vai querer evitar o stress. Tudo isso eu penso no milissegundo em que ela me alcança a cobertinha. Não tenho frio algum. Nenhum. Zero. Tenho até medo de suar um pouco. Só que quem sou eu para rejeitar o cumprimento desta etapa do manual de conforto da cliente do ramo da beleza. Sim, sim, claro que sim, eu quero a cobertinha. Se disser não, pareço besta. Mais besta que a eu de 15 anos atrás insinuando elas serem o grupo de acesso do que havia de mais top no ramo da beleza do nosso município. Na época eu acho que não dizíamos top. Talvez show de bola. E ainda por cima eu chamei de fofoqueiras. Embora fossem. Como quase todo mundo ao nosso redor era, para ter assunto, só que no salão circulava mais gente. Testo ficar em silêncio um pouco só pra variar. Ver no que dá. Som ambiente que não vejo de onde vem mas é bem baixo: Engenheiros do Hawaii. Eu gosto. Ela também. Lembro que a gente já gostava antigamente. Temos idade pra dizer antigamente, Zofia e eu. Engenheiros sempre foi a zona mista do prazer culpado entre o meu Los Hermanos e o Pearl Jam dela, que eu gostava de imitar pra fazer raiva grunhindo um inglês nada com nada. Como, aliás, eles também fazem. Mas de Engenheiros eu lembro que a gente gostava. Ou ela lembrou disso ou ainda somos rigorosamente as mesmas que já fomos, distraídas. O que há de melhor, o que dá pra fazer, o que não dá pra evitar, etcetera. No que mudamos exatamente ainda não sei. Lá vem o terceiro produto esfoliante me derretendo as impurezas da cara. As luzes da sala apagadas e a porta aberta pra vir uns raios indiretos da fluorescente contígua e dar soninho. Relaxar. Nunca me entrego ao relaxamento em momentos assim, porque não sei desligar as vozes da cabeça. Ela quebra o silêncio pra se justificar. Tô reformando, ainda não comprei a luminária de luz quente, achei uma na Shopee mas tenho medo de ser muito vagabunda, ela diz. Eu entendo. As portas aqui tão sempre abertas e sei que estarão depois, mesmo com um abajur. É um entra e sai. Não espanta se vem uma com a colher de pau pra outra provar se algo tá bom de sal. Ou roendo qualquer coisa e oferecendo. Tampouco admira se entra a secretária dizendo pra não esquecer de trocar o horário daquela cliente chata que remarcou de novo pra quarta à tarde mas não vai poder porque ela é assim mesmo. Muita língua. Pouca cerimônia. Entre uma extensão de unha e outra, metade extensão da casa, metade extensão da rua. Eu ouço com as orelhas tampadas pela faixinha de cabelo com tecido de toalha bordada com um monograma no meio: ZS. Falta esperar a argila secar. A rosa é pra isso, a verde é pra aquilo. Temos tempo. É o ócio entre um ativo e outro. Essa meia hora que falta dá pra passar a vida a limpo como a pele. Atualizar o que o Insta não mostra. Se mostrar um pouco mais por trás das câmeras, e dos filtros, e das inflamações e rugas que agora despontam em nossos rostos. Zofia já é mãe. Casou bem nova e separou de um cara que eu achava lindo quando tinha 10, depois embarangou. Por falar nisso lá vem entrando o Daniel, que eu só conhecia de foto, bonito como o pai quando era novo, com uma camisa de time. Tem uns 15 anos. Tá um moço, hein. Apelo para esses clichês que funcionam. Tá um moço, hein. Tá um moço e quer usar o notebook pra jogar. Ela deixa. Dali então é que o Gessinger entoava os versos. Vamos ficar nós três na sala? À meia luz? Enquanto esse vaporizador que parece um pouco a minha passadeira de roupa a vapor e talvez seja mesmo só está enjambrado para cumprir outra função fica feito um canhão na direção da minha cara para abrir bem os poros e depois ela poder espremer? Isso não implica em pouco profissionalismo? Estou pagando. E daí. Eu não sou dessas que se incomoda com as coisas só porque está pagando. Não tenho bem certeza se devia mesmo me incomodar. Logo eu que já conhecia a dinâmica quando agendei o horário. Logo eu que dou beijinho no rosto da recepcionista. Relaxar eu já não ia mesmo. Ela aproveita pra dar uma saidinha da sala e me deixar sozinha com Daniel só uns 5 minutos, dessa vez não viraram quarenta, enquanto um novo produto age. Não sem antes ela me por um negócio pra hidratar a boca, que não é do pacote da limpeza, mas ela me faz, deixando claro, a título de cortesia. Ele me pergunta curioso sem desgrudar os olhos da tela há quanto tempo eu conheço a mãe dele e eu dou um grunhido para que entenda que não consigo responder. Vira pra trás e ri da minha situação de feia tampada por uma cobertinha enquanto o vapor quente continua saindo. É um adolescente dos melhorzinhos. Só diz: eu tinha esquecido que tem essa parte. Ficamos os dois rindo, eu mais modestamente porque estou com o troço de silicone cor de rosa trancando os movimentos da boca. Quando Zofia volta, pede pesquisa aí, Daniel, se a mãe pode fazer alta frequência em quem tem psoríase. Mãe, como escreve isso? Vai lá: P-S- pera, Daniel, me deu um branco. E eu ergo o silicone da boca que agora já deve ter me hidratado os lábios que chega e completo: o-r-í-a-s-e. Ele lê lento o primeiro resultado da IA da Google: sim, é possível fazer alta frequência em quem tem psori-á-se. E engata: mãe, tu teve lua de mel? Ela não acredita na pergunta e ri para o menino dizendo que se ele conhece o pai que tem, podia imaginar que não. E rimos juntas, porque eu também conheço o pai que ele tem. E me lembro que Zofia é canceriana e deve ter sofrido horrores com a separação. E, antes, com não ter lua de mel. E, antes, com ter engravidado do Daniel no susto. Eu não estava ao lado dela nestas fases, o tempo e a minha boca grande já tinham cumprido seus papéis, mas certas coisas que são sabidas uma vez não mudam mais. Ficam encravadas mais ou menos na mesma posição, como os astros no céu. E me pergunto se a curiosidade aleatória do Daniel significa que também será daqueles, como nós, capazes de dizer e fazer coisas dramáticas enquanto ouvimos Engenheiros do Hawaii. E de lembrar de algumas peculiaridades dos amigos antigos, que há muitos anos não víamos. E de voltar a seguir numa terça à tarde como quem não quer nada. E, depois, de marcar horário. E de vir. E de não ir embora na primeira vergonha que passar. E de saber ser frágil. E de pedir desculpa. E de resistir aos julgamentos. E de ter impresso nas certidões de renascimento uma qualquer coisa da procedência de origem que fica no DNA e nos documentos, desde a de nascimento. O procedimento acaba comigo toda vermelha. Desobstruída. Finalmente limpa. Foi pra isso que eu vim. Recebo as recomendações para os próximos dias e digo tchau, Zô, boa festa de aniversário do teu namorado novo que eu sei que é hoje por causa das declarações de mais cedo no Insta. Nela até tinha contexto, mas melhor pecar pela falta e eu não dou beijinho na despedida. A intimidade é um bichinho que vai e pode voltar, como os cravos no meu nariz. Tratar aqui.
umcentretantos
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Ataraxia
Papai Noel, eu quero uma
Por favor, só não me venha com Cruz,que eu não quero furar
nem pintar as paredesde preto para instalar nada a essa altura do campeonato
Lupa de distanciamento
Para ver o todo
Estando perto
ou dentro.
Desejo também um
Reco de boca
Isso mesmo, um zíper.
Fecho-éclair encaixando
Os dentes
Em silêncios
Antes de eu lançar absurdos no mundo
E cair uma arcada inteira de consequências
Eu, tão boca
aberta.
Papai Noel, ano passado eu pedi
Euforias com luzinhas que piscam e um
Encantamento elétrico e perene
com controle remoto.
Era caro, o senhor não trouxe,
Eu ainda quero,
Mas se não der de novo
Esse ano pode ser só um
Cantinho
(mas seguro e acessível)
De pensamento iluminado,
Analógico mesmo,
Em que breve eu volte a
pensar bem
No que eu já tenho
Quando desencantar, acelerar
ou
escurecer demais.
Papai Noel, eu quero
Um removedor de culpas
Uma âncora de devaneios flutuantes
Um par de boias com acento, das de braço, e
Um mistério portátil (daqueles mais simples)
Ah! Podem ser também
Duas passagens aéreas
De ir e voltar
Que me façam, simultaneamente,
Esquecer e lembrar
Que eu trabalho pra isso
Aí, para aproveitar a viagem,
Pode levar embora em seu trenó:
Esta máquina de remoer;
os Supositórios
digo, as Suposições
que por espécie de necessidade tenho enfiado
no meio das bandas
na tranquilidade amena
— nas quais penso tanto
Que me fazem menina mal criada
E não merecedora
Papai Noel, se tiver que escolher só três,
quero muito:
- Presente (desembrulhado)
- Não cansar de ser alegre
- Ter a quem pedir
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
A culpa é do Dan Brown?
Os novos agroglifos de Ipuaçu
E as marcas do deserto
no Peru
Assentam-me no juízo
um fascinante chapéu
de abas largas
de alumínio
e, nas mãos, uma CNH
pra mystery machine
do Scooby-Doo.
Cifras de César,
Runas
Arcanos
Toda ordem de símbolos
ocultos,
Moais, rituais
em códigos
— desvendados ou
ainda não
mas quase,
é só se dedicar
um pouco e
Descriptografar.
Já se passaram duas décadas desde A Lenda
do Tesouro Perdido
na Sessão da Tarde
e, muito misteriosamente,
ainda não confesso ser o meu
queridinho.
Fica descoberto:
Eu ainda sou a mesma
eufórica vibrando quando Nicolas
Cage tira
aquele par de óculos de trás
de um tijolo
ou, no fim, molha as pedras do Rushmore
a fim de encontrar
Cíbola.
Eu quero é ser dos que
Sabem.
Dos poucos que
Chegaram lá.
Cicada 3301,
a mariposa impressa no poste
batendo asa,
que avisa:
Não confie no óbvio e
busque o oculto.
Dos artefatos egípcios
ao chão sempre quadriculado
de segredos
das Lojas,
Persigo cem por cento
Envolta
a lama a ser limpa
de qualquer incógnita
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
Epifania
Acordei
Renascida
Sob a luz da ideia: Não quero te ter
Quero te ser.
Os hobbies e afins
Os tins, bens e tais
Tudo muito XY.
Não te sendo
hei de te atravessar
às vezes
Como um fantasma.
De um lado a outro assim
Transparentinha,
Fantasmagórica,
Sem sombra, com dúvida
Sem ter presença sentida
Através.
Daí sair sem alarde
Transpondo a matéria em-
bora impregnada
Da tua parte
mais glutinosa
— e, para mim, adesiva.
Tu meio rótulo
em frasco de plástico.
Eu nunca mais
inteiramente limpa.
Nunca mais compacta
Nunca mais lisa
Embora agora descoberta
Quando some o rastro
ainda é conhecido
o caminho.
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Chovia
Eu sei que chovia porque ouvia o barulho. Não era lágrima, era chuva. Não era água, era cansaço. Era a nuvem pesada em cima das nossas cabeças trovejando, trovejando. Uma leveza que nunca vinha inteira. Um sol e luz que não duravam. Somos solares, percebeu? Somos solares. Somos fruta das mais cítricas. Somos tropicais, mas pra que chovermos tanto? A tela escura e a chuva e esse tempo que não passa até chegar amanhã de manhã com alguma clareza. Cada pingo de água é uma vez que eu me senti ruim nos últimos tempos. Ruim quer dizer muito: amarga, grosseira, equivocada. Ruim também quer dizer pequena. Ruim quer dizer pior do que podia ter sido. Ou pior do que na imaginação. O que se pode fazer com essa chuva? Que cai. Toca fazendo barulho. Cai como as palavras mais duras caindo da boca sem retorno, nada podendo ser des-chovido. Essa chuva molha as reflexões que me recuso a fazer. Abatuma o bolo. Os ruídos e estalos. As manias. Desfaz as construções — todas de areia, barro e pó. Essa chuva desmancha os montes. Lava mais um dia pra fora do calendário de brisas amenas. Pesa o clima. Um fenômeno meteorológico que nenhum mortal, como nós, parece poder controlar. Chuva que não respeita mais previsões. Planos. Outro natal. As roupas no varal. Abri de novo a janela e não era impressão. Chovia. Abri um guarda-chuva e molhava, mesmo assim.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Cyclamen
Quem te ensinou a subtrair
Números negativos
Viu também chegar a conta
Do essencial do fim e só
por etapas
— que os detalhes sórdidos têm pontas
Sempre soltas e muito agudas —
Tornando-se
Despicienda
A verdade inteira
Tamanha a evidência
De que algo muito grave
Deu errado.
Quem deu-te a saber
a esperar a pressão
pra explodir
em provocações e lágrimas
De revanche e remorso
Ignorantes de todos os avisos
Prévios
Luminosos e sonoros
De que merecias mais
(e não cada vez menos)
Viu a vida virar
essa novela
Boa de acompanhar
sentado
acomodado
e olhando de fora
Ruim de ser
Protagonista
ciente, consciente
Até dos próprios deslizes
A vilã
A anti-heroína
Digo mesmo:
Uma persona
Com tantas
camadas
De moralidade ambígua e
mea culpa e
Desejo
de sair
por cima
além
Do que permitem
os tropos narrativos
terem as mocinhas
para que delas o público se compadeça
Em uníssono
Em unanimidades
burras
E clichês
Como querer
Merecer
Não ter
E enlouquecer
de coragem
De enlouquecer.
O último a sair
paga a conta e
apaga a chama
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Frau Valente
Clarice era Valente de casada
e abdicou da condição
sem deixar de ser
***
É redonda a cabeça do alfinete
em todo lugar do mapa
em que estive enquanto pensava
o que não devia
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