terça-feira, 17 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida bucólica


Também no campo acabam os domingos — como o pão de forma caseiro, em farelos fininhos sobre a mesa, sob os ecos da Copa Mundial de Clubes a tarde toda rolando, como bola, na TV.
Acaba, com cartela verde, o bingo de Santo Antônio ao anunciar o narrador, com suspense, depois de pedir rogai por nós: cinqueeentaaa eee ooooitooOo. É que se tem uma coisa que santo adora, é jogo.
Acabam as vendas das bandeirinhas e, depois, o leilão do bolo principal, com o consórcio de compadres que se querem saber prósperos dando um vistoso lance de setecentos e cinquenta reais fora o baile. 
Acaba o quentão, antes do fim da festa, porque a cozinheira que preparou (“eu vou bem! cada vez mais bonita, mais nova… e mais gorda!”) gargalha a autocrítica bem humorada nos avisando que não podia mesmo prever tanta gente caridosa fora do tempo da política. E, ainda assim, quando é hora de cantar a pedra treze, o globo misteriosamente cospe “doze mais um” — e uns setenta por cento da festa se acotovela cúmplice, com risinhos abafados, dizendo ou pensando que “treze aqui não se cria”. O ruim mesmo é que empresa grande também não.
Sei que estes bancos enfileirados sem encosto são tão duros quanto quase todas estas cabeças, tantas que reconheço e que me conhecem desde que nasci, e que não veem motivo nem tiveram qualquer circunstância de pensar muito diferente entre si ao longo da vida.
Sei que este líquido viscoso que está sendo despejado fumegando nas tigelas de buffet de restaurante a kilo, ao lado dos pratos com queijo ralado e cheiro verde cortado bem miudinho (que não porei no prato), terá o sabor conhecido — e um pouquinho gorduroso — de merenda de colégio em prato azul de plástico.
Sei, ainda assim, que estar aqui, cercada destas pessoas, tem o gosto confortável de regressar à casa.
Na qual minha mãe não dorme sem antes lavar os copos e as taças, nem sai do quarto de manhã sem antes arrumar a cama. A casa que tem sempre no fim de semana algo de molho ou batendo na máquina, outro algo que foi lavado antes balançando no varal, outro algo entregue ainda ontem pelo Mercado Livre, com o sol de sempre ali batendo na varanda e entrando pelas basculantes verticais da garagem. E se quando chego adquiriu-se um qualquer vício novo (como passar a ponta da língua no vãozinho entre os dentes de baixo), basta-me advertir-lhe com a seriedade que sempre usou comigo que, brevemente, concordará que sim, precisa parar com isso, mas para se convencer racionalmente vai forjar um pequeno aforismo que serve de lição para nós duas: “Meu cérebro tem que aprender a controlar a minha língua”. 
Casa na qual meu pai, que cozinha e teima muito melhor que nós todos juntos, mexe a panela em que frita com bastante banha de porco o queijinho com ovo que faz para me agradar de manhã bem cedo, enquanto repete com tom de sabedoria suas teses: de que o que está matando lentamente as pessoas, na verdade, são as verduras (com tanto agrotóxico, onde é que já se viu, o tomate se estiver meio verde se sente o veneno na boca); de que os ratos devem ser emboscados com doses de veneno lento, porque se comunicam de forma senciente; de que o aquecimento global, se for parar pra pensar, pode nem existir, porque desde que o mundo é mundo há enchentes, e este calorão, e os ciclos normais da natureza de tempos em tempos, e não sei quanto por cento, agora lhe falha a memória, de água que compõe a maioria do planeta, e por isso nem em cem mil anos daríamos conta de interferir nela inteira com o pouquinho de terra submersa que a humanidade habita.
Estas suas certezas, sempre tão enfáticas, ensinam-nos sobre o (seu) mundo, e por certo devem confortar-nos para não pensarmos mais a respeito, nem sofrermos, nem preocuparmo-nos, nem nunca mais cogitarmos não lhes dar netos por qualquer bobagem assemelhada (sem o embasamento lógico na coerência que alcançamos com nossos conhecimentos empíricos), imagino. São parecidas com o fato (por ele comprovado) de que o único negro que conhece é muito amigo seu e nunca sofreu preconceito de ninguém.
Os tempos mudam, é claro que mudam, muitas vezes até para melhor, mas a marcha da subida é tão lenta que quando algo muito fora da Curva da Banana acontece, espanta.
Especula-se, a título de novidade na praça, sobre histórias novas que, mesmo sendo novas, têm nome certo, sobrenome e toda a genealogia, como a da mulher que viciou no jogo do Tigrinho; as razões que levaram o marido de uma a implantar cabelos e agora parecer mais novo; e como estufa o peito empombado quando anda o marido daquela outra.
Não há, porém, novidades ou vácuos de poder na presidência do CPC da capela — que é uma baita vitrine para os jovens e aspirantes a vereadores, com ideias tão, tão antigas que parecem os mesmos desde os tempos áureos, quase imemoriais, nos quais o pavilhão, a rodoviária ou a pia da cozinha aqui de casa foram construídos, e ainda por cima com o mesmo exato tipo de tijolinhos à vista.
É quando meu pai se lembra de um outro amigo seu, que lhe disse um dia que se alguém for montado numa vaca à missa, no primeiro domingo todos reparam e comentam, no segundo menos, no terceiro ninguém mais nota e no quarto é normal mais gente ir.
Em parábola, todos os preconceitos perdem todo o seu sentido.
Quando envolve bicho, a coisa fica natural.
Ainda ontem minha afilhada mais nova se viu confusa sem saber se são “pipiu” ou “cocó” as galinhas que se empoleiram mediante saltos ornamentais acima do telhado de eternite do rancho, numa escalada ousadíssima até os lugares mais altos da árvore conexa, para fugirem de qualquer predador que venha pelo mato à noite.
Sim, as galinhas do meu pai sabem voar e se proteger. Quase como águias. Mas este fato, ao contrário de alguns avanços sociais e científicos tidos como absurdos porque subvertem o que lhe é conhecido, escapa muito ligeiro ao seu assombro — é diário, é quase trivial. Como a lagoa esverdeada, que sobe e desce com a chuva. Como o vizinho arando com o trator a terra, que logo é tempo de plantar.
Este recanto é a minha Macondo: sempre a mesma, o que tem de real tem de mágico.
São sempre épicas as histórias que lhe circundam.
São conhecidos os seus encantos, mas ainda mais seus espantos.
Foi dentro das cercas aramadas (e um pouco farpadas) destas fronteiras que começam na Bracatinga e se estendem até a Palhocinha que eu cresci, recusando com mau gênio a comer as cebolas que muito tentaram me servir. Foi aqui que temperei os princípios do meu espírito, respeitoso e anárquico, até engrossar o caldo de minha desobediência indolente, que discorda tanto e, ainda assim, tão pouco busca convencer aos meus de ideias novas — que pode bem ser que um homem de fora me tenha metido na cabeça, porque eu não fui criada assim, embora tenha sido criada para ser exata e rigorosamente assim. 
Por um tropeço no sufixo e da semântica, não me tornei submissa, mas subversiva aos usos e costumes desta simplicidade interiorana. Estes hábitos que agora, de visita, considero apaziguadoramente modestos. Com estes meus modos de criança que respeitava a catequista mesmo tendo certeza de que rezava Jolvei ao invés de Volvei naquela passagem da Salve Rainha Mãe de Misericórdia.
E, de repente, degredada filha de Eva, eu me pego querendo que o que conheço do meu lugar nunca acabe.
Para além dos meus silêncios ou convictas objeções, sei que aqui eu posso entrar, que eu sou de casa.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Tome notas - sabor abacaxi

Cuspir pra cima
É tiro e queda

***

Aos pobre-diabos
Que ignoram o que sabemos
A tranquilidade

***

Comprar disposição
para se produzir bem cedo
E não pifar as prestações
do modo soneca

***

Maldição

Zica vem em trinca
Pedi truco
Vieram 6


***

Argumento nenhum persuade
Um energúmeno
Lágrima alguma penetra
Um coração peludo

***

Desinvestir.

domingo, 8 de junho de 2025

Antiofídico

Uns meus passados se amarrotam
Em’squecimentos
Voluntários

O superpoder é primo distante
do dos flautistas que encantam serpentes

Cancelo o pensamento.
A convivência
Com o pensamento.
Ocorrendo de reaparecerem
uma ou outra testemunha
Torno a resetar
as provas,
Ignorando-as.

Furtiva e hábil,
Fecho os olhos e sopro
na poeira fina
das estradas onde andei
Forma-se espécie de nuvem rasteira
Daqui pra trás
Na qual os mais Traiçoeiros, e Peçonhentos, e Verdes, e Llenos de escamas, e Bem gelados, Animalescos, Ruins passados
Por mim treinados
Saem da posição de bote
Guardam suas presas e venenos
— com que já não me fazem morrer
de vergonha ou de medo
E entram de novo no cesto de vime
Donde, em sono fundo,
não hão de vir julgar
O que já fui
Ou com quem já estive

Sorte eu ter método:
Uns meus passados
São espetáculo
A que só assisto de costas

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Heartbnb

De Filó não sei a voz. Reconheci mais velha no sorriso de Mafalda, a mãe, aniversariando ao lado das hortênsias bem roxinhas com o colar de ouro, os brincos de pérolas, os vincos na pele do rosto de quem criou como podia os sete filhos que lhe fazem companhia em quadradinhos recortados de outras fotos emoldurados num rolo de filme no quadro antigo do corredor. Foi boa a mãe. Sei só pelo poema emocionado atribuído a Rui Barbosa entremeando as carinhas deles sete. Em cursiva estilizada no fim: Mafalda. 80 anos. Sorrio: "Igual à de Quino, mas acho que veio antes".
De Filó não decorei o nome. Conheço o vulgo. Comi o pão fresquinho, dei dois goles na sua cerveja, sentei no sofá grande com um remendinho impecável, admirei o trilho coloridíssimo da mesa (um qualquer coisa de arte peruana). A sala parecendo maior por conta do espelho gigante, paraíso de leonina. As cores dos móveis ornando com a beleza do tapete. O friozinho que se sente manhã cedo abrindo a brisa da sacada, São Joaquim toda com o céu azul, azul bem lindo, dá vontade de morar em dia assim e contemplar. O móvel há gerações na família, os vinhos da noite passada, em que comemos a margherita com as mãos, o aquecedor ligado e as gurias sentadas no chão. Eu espiando de canto de olho o troféu do Baile da Neve e pensando como é e quando que a mulher ganhou este troféu e num baile e com neve. Quase que me esqueço que no início tive que fazer força para esquecer das sete saias da cantiga.
De Filó, é claro, Filó de quem não sei mais que suas imagens paradas e a gentileza em movimento via WhatsApp. Filó primeiro na foto de host-perfil com a camisa do Lakers e o mar de fundo, sorrindo de óculos escuros. Depois Filó nas taças bonitas com pois não tão petits cravadas a laser no cristal para dançar com o tinto. Filó no sétimo andar do Imperatore inteiro. Filó em cada porta-retrato. No zelo de informar o secador de cabelo, nas poucas gavetas cadeadas com pertences que imaginei modestos. Filó homenageada com acróstico de múltiplas qualidades a cada uma das quatro letras pelos adolescentes do esporte na parede do escritório. Filó no tampo vermelho de vidro do fogão combinando com a cor da chaleira elétrica. E, por falar em cor, Filó nos cinzas-claro cuidadosamente harmônicos dos jogos de cama. O lençol térmico, não esqueçam, meninas, de usar o lençol térmico.
E finalmente os sorrisos de Talita, uma doce lembrança. As fotos antigas e muito joviais de Talita de frente para Mafalda, Talita solo, Talita acompanhada dos amigos e da família, também com a gêmea de quem não soubemos o nome, Talita pequenina e mais moça, fazendo pose, e crismando, e levando um trote mas sem idade para que seja da faculdade, na virada dos anos 2000, com o olhar concentrado da dança contemporânea. A vida finda da Talita se pronunciando atrás da saudade da Filó, que exala de cada foto da montagem atrás daquele vidro, não se sabe como, mas claramente muito prematura.
De Filó não sei a voz. Mas conheci a casa. Por isso o sorriso, insistente. Por isso o espírito, aventureiro e esportista. Um pouco da bondade. As homenagens. As camas quentes. E uma partezinha de seu coração. Conheci o buraco no peito, que não parece lhe ter endurecido. Deve ser porque há de haver para sempre, do que não passa breve — como a gentileza da Filó — uma doce lembrança.
De Filó não sei a voz, mas talvez saiba um pouco do que de principal possa haver pra saber sobre alguém.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Alcautraz [final]


Bem-vindos ao derradeiro tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça.
É sorte grande termos hoje estes ares de cerimônia, microfone e caixas de som, que assim as explicações ficam um pouco mais altas do que o barulho de obra. Novos presos, novas celas. Outras vazias, reformadas. Quanto maiores os Medos, maiores os muros. Quanto menor a segurança, maior o risco de que os meliantes segregados aqui se rebelem e alcancem a superfície, levando com eles para cima sabe-se lá que ordem de feiura, tragédias e reviravoltas.
Porque todos aqui acreditamos na máxima de que é melhor prevenir do que reencarcerar, gostaríamos de agradecer com profundíssima sinceridade aos nossos patrocinadores, que com generosidade nos proveem escavamentos, grades, pedras, cimento, as paredes grossas que segregam o que fica no alto dos marginalizados que ficam aqui embaixo deste empreendimento. Não nos esqueçamos, porém, que o que está na superfície e quem se encontra neste patamar têm ligação indissociável — e juntos moldam, com acentuada complexidade, a beleza da propriedade em sua inteireza. São peças contrastantes do jogo, inconfundivelmente diversas, opostas até, mas como aquelas do xadrez em que pretas e brancas valsam em casas brancas e pretas, cada uma em seu turno, cada uma a seu modo. Um balé torto, mas sincronizado. Uma casa para cá, duas celas para lá. Assim o farão continuamente, sabedoras de que suas luzes não pareceriam tão claras sem suas sombras, e suas sombras nunca teriam significado não fosse a chance de em um mau dia chegarem à luz, desprevenidas. Aqui, nestas masmorras, tenta-se guardá-las (ou recuperá-las) até o dia do xeque-mate final.
Sei que não é bem novo o conceito de criminalizar e penalizar o que se quer tentar reprimir, mas mesmo assim (ou talvez por isso) nossa atuação neste estabelecimento despertou, por anos, o interesse da comunidade, que pouco entendia dos critérios para nossas prisões e o bom funcionamento da casa. Então, nesta noite solene, gostaríamos de agradecer à gerência por tudo que este projeto de visitação proporcionou — ou, se quisermos usar da modéstia, tudo o que pode ter proporcionado — ao público que se dispôs a cada tour. Esta era uma tentativa grosseira e inicial de colaborar na mera classificação dos presos, e terminou por ser uma chance ímpar de elaborarmos um estudo, uma análise, um tratado (mezzo empírico, mezzo foucaultiano) do que importa para que o Caustelo permaneça de pé e operante; de tudo, tudo o que importa dos portões para dentro de quem tanto se vigia quanto se pune.
Nossos intentos de ressocialização falham muitas vezes — sabemos. As saídas de sete dias trazem-nos mais dores de cabeça do que proveitos. Alguns dos presos permanecerão neste subsolo perpetuamente, à espreita ou adormecidos, porque jamais ninguém estará preparado a pleno para lidar com eles. Outros se evadirão quando menos esperarmos. Uns poucos, refeitos de todo, irão embora em definitivo, o tapete vermelho estendido, porque já não oferecem perigo. Todos eles que daqui saírem, entretanto, darão meia volta, forçados a regressar pelo umbral da porta por onde entraram.
E é desta noção tão clara que emana a importância desta noite — na qual, em instantes, teremos a oportunidade de conhecer onde fica a última das celas, o pior preso deste vasto corredor, o fim da linha de nossas curiosas expedições.
Já lhes foi informado que diariamente chegam aqui novos Traumas, Ojerizas e Paranoias, e também novos Medos, alguns parentes dos antigos, outros de facção rival. E é verdade. Temos consciência, todavia, de que os novatos pouco ou nada interessam aos visitantes. Por mais que enfeitemos suas histórias para dar-lhes pompa e circunstância em contornos de ficção, sabemos que os recém-chegados pouco chamam às vossas atenções, porque há neles o frescor pueril de menores infratores. Quase uma graça se suporem malvados.
Foram sempre os presos das profundezas, de maior periculosidade, os que inspiraram maior atenção, respeito e parcimônia, os que exerceram maior fascínio aos estranhos e, por que não admitir, à Administração. Ganham cartas, documentários, séries, admiradores até. Seus crimes causam-nos maior comoção. E é assim também, ou principalmente, com aquele escondido por esta cortina que agora removeremos.

Rufem os tambores!

Ruja o leão alado entalhado em metal acima do portão principal do Caustelo!

Senhoras e senhores, eis aqui

o Não Vivido.

É só em tom circense que consigo anunciar este perigo gigante, delirante, sem rosto, incerto, assustador.
É isso mesmo que estão vendo: dele só se conhece o formato desta porta grossa, maciça, fechada, ao que se sabe sempre emperrada, pela qual ninguém deste corredor jamais conseguiu ver através nem conseguirá sair. É a ignorância completa sobre seu real conteúdo que o fabrica e consagra o maior Medo de todos. O medo imaginário, o medo imaginado.
Teme-se que algum dia alguma ventania de lá para cá possa abrir esta porta de golpe, sem ruído, sem aviso, dali saindo sorrateiras: qualquer sorte de lamentações; as piores cobras-lagartos, híbridos; ou um susto, um visgo, uma neve, uma febre, um abismo, a contaminação letal.
Mesmo assim, é tamanho o encanto que envelopa o tema que ninguém jamais ousou cadear esta entrada ou saída, o que implicaria algemar-lhe. Cultivamos neste preso todos nós, guias destas visitas, qualquer espécie de fé, uma esperança de salvação (sabe-se lá do quê), um deslumbramento. E, acima de tudo, um desejo de ver de perto o seu teor — desconhecido de horóscopos, do tarot, dos búzios e das bolas de cristal —, de modo que ninguém da segurança jamais teve a coragem e o desprendimento necessários para acrescer a esta porta tão grossa uma proteção adicional.
O Não Vivido é tão vasto que, diz-se, pode existir em forma de conjuntos (profissões, relações, conjunturas). Ele se acomoda na maior das celas atrás desta porta que podemos ver daqui. É um salão que, segundo a lenda, estende-se por milhas infinitas de comprimento e profundidade, avançando para baixo e para os lados, chegando a especular-se se ele quem forma a base de toda a construção (que poderia, assim, ser oca, não fosse as coisas dele se apinharem todas, compactadas, quase em vácuo, porque são tantas, tantas).
O Não Vivido é um acumulador. Guarda, por praxe, os formatos dos talheres de restaurantes chiques, que jamais se soube usar. Guarda uma foto adolescente abraçada no Mickey, o aparelho ortodôntico nos dentes, bem ao lado dos sonhos de ir pra Disney, que jamais se teve na infância. Guarda um piercing. Uma ou várias tatuagens. O Não Vivido contém até mesmo os rascunhos dos planos embrionários de um intercâmbio em outro idioma. Guarda pronúncias. A grinalda fincada num véu bem branquinho sob a abóbada ilustrada de uma Igreja Católica. Um jantar para pedir a mão à família. A justa causa de uma rescisão ao dizer umas verdades. Um pet com mais de dez anos de idade que deu pelos nas roupas, vida e doçura à casa e ensinou a não temer as mordidas. Um show lotado da Marília Mendonça no auge da carreira. O Não Vivido esconde os perdões tempranos que só vieram tarde ou ainda nem chegaram.
O Não Vivido é tão, mas tão poderoso que, segundo se sabe, pode inverter a lógica do tempo linear: nele estão retidas todas as ramificações, todas as possibilidades deixadas para trás em cada escolha, todos os sins de cada não, todas as imprudências e desvarios, todos os conselhos seguidos e não seguidos. O futuro inteiro mas, também, cada variação do passado.
O Não Vivido assusta mais do que qualquer fantasma, porque nega as verdades mais absolutas, como se nunca tivessem sido. Este preso é o mistério que há em cada possibilidade. E é só dispondo-se a olvidá-lo — soterrando sua existência junto com tudo que pode estar contido para além desta porta — que se pode encerrar esta grande noite, para seguirmos passeando leves pelo Caustelo.
Escauda acima, senhores.
Peço o favor de que desocupem estes assentos improvisados de expectativas onde se sentaram.
Esqueçamos, tanto quanto possível, as misérias e agruras deste Caulabouço.
É só à luz da superfície, neste baile promovido no dia de hoje para celebrar as conciliações e dinâmicas exigidas para o bom funcionamento da mansão da minha caubeça, que poderemos desfrutar felizes, em trajes de gala, enquanto a banda toca.
O último a sair, apague a luz.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Desautomação

Quem disse que as máquinas
logo fariam tudo
mentiu.

Experimenta não limpar o filtro.
Experimenta não comprar mais nuvem.
Testa aí não ampliar os giga.
Desrespeitar a potência
O ciclo
A voltagem
O manual
Ou não atualizar o sistema 
operacional
mas nem tanto
Se não respeitar à fórmula
Experimenta conversar com ela
Num idioma que ainda esteja aprendendo
Tenta tirar pra amiga
Sem chutar ou chacoalhar
Quando precisa
Experimenta não saber a senha
Ou esquecer de botar gasolina
Não obedecer ao algoritmo
Ou a algo
Ou ao ritmo
Que só sabe tocar zero e um
Pede a ela aí pra ver
Um chá, se chega na xícara
preferida
Se sabe mesmo passar o café
Só frasezinha pronta com travessão
Ou qualquer coisa de íntimo

Um dia hei de perder a memória
Esquecer os programas
E onde ficam os botões de ligar;
De dar enter
Um dia, com
                      tudo automatizado
As máquinas sentirão mais que eu
O que já sabem
+
Até lá queria experimentar
Não depender delas pra nada

Pensando bem, faz melhor:
Experimenta tirar da tomada.

domingo, 25 de maio de 2025

Cativo [13]

É no estômago que roncam as promessas de normalidade e paz da vida a dois. Não olhar mais a taça quebrada na pedra dura da pia, dessa vez foi de champanhe, da outra agora só tem duas. Cuida com esses cacos, passa uma água no que sobrou, tudo bem usar um guardanapo sim mas eu não faria assim, ouve só como grita a máquina de lavar que não escoa nem seca mais nada apitando “E21”, tenho te dito há semanas, sim, tem que chamar o encanador, tem - sujeito indefinido, tem é ninguém, alguém tem, tenho eu então, ah, sim, deve ser porque eu sou ansiosa. Ou resolutiva. Ou lavo a roupa, e não a louça. Ou tenho mais que uma calça jeans que presta, e em todas elas os bolsos cheios de empatia com o teu minimalismo distraído. Tenho aqui o contato, é do mesmo careiro da outra vez, eu só queria resolver logo, se soubesse que ia te irritar tanto não tinha agendado pra segunda, só o que me faltava é ter que vir recebê-lo, chama você de golpista e na cara dele de preferência, dá o teu show mas não pra mim, faz um pouco aí a linha macho man, esquece um pouco a educação mas não comigo, não, não é tédio o que eu estou sentindo, que eu não sou como aquela minha tia, é vontade de resolver tudo e logo e deixar funcional. Se reparar um pouco, quando eu dou pra procrastinar sou pior. Já devias ter aprendido que eu odeio absolutamente tudo o que só funciona no jeitinho. Pensei agora que relacionamento só funciona no jeitinho. Então vamos dizer que odeio quase tudo. Aqui eu fico. Não jogo fora. Não troco. Se chamo ajuda é pra consertar. Deve ter algo que preste pra salvar aqui. Senta pra meditar sobre isso nessa tampa do vaso que quebrou há três meses e agora enxuga o cheiro dos nossos mijos, de repente eu desparafuso e enfio ela num saco, que aí é ir comprar no dia ou cagar com a bunda direto na louça. Aposto que não vais querer. E ainda assim tenho muito claro que não estou louca. Não sou metódica. É isso ou usar o banheiro da visita, o que por motivos desconhecidos sei que também não vais querer. É isso ou ignorar outro dia as pequenezas que consomem o dia e, se não cuidar, o preenchem. É assim uma vida sem grandes questões atuais pra destrinchar. Fora as latentes. As mais ou menos antigas, agora e sempre mal resolvidas. As que voltam violentas na cara em pleno dia tal do mês tal do ano tal deitados na cama de manhã me chamando de hipócrita depois da visita ir embora só de ver de perto qualquer parente de segundo grau. E eu nos pergunto se é isso um relacionamento: às vezes engolir um pedaço seco de “apesar de” na esperança de depois ter molho. Verde, tártaro. Pimenta ou vinagrete? Pimenta. Sentir o canto da língua arder como as palavras de mais cedo, que não voltam mais para dentro da boca como agora esta comida entra. Esqueceram de tirar o alho do arroz. E se os dias andassem de dois em dois? Quem sabe o tempo passasse mais rápido. E se a honra fosse finalmente vingada num canto da festa, e se as goteiras de apartamento (eu que nem sabia que em prédio ia telha pra quebrar) pingassem também em cima das cabeças deles, na casa que eles ainda não compartilham, talvez nunca o façam, certos eles, coitados deles, e se de repente o piso deles também estufasse todo num anúncio estralado de estouro no meio da madrugada, e se ficasse o barulho fofo do oco entre o cimento e a cerâmica sem saber se foi na construção ou no assentar sem folga dos cantos e das fugas mas agora já venceu a garantia quanto é que vai custar o vinílico. E se o primeiro pensamento da manhã ao pisar no chão fosse sempre esse oco, esses cantos, essas iminências de quebra, esses erros e adiamentos, essas providências e fugas, amor? Quão incomodados ficaríamos até a barriga nos lembrar de novo que essa energia que gastamos há pouco em discussão interminável precisa vir de algum lugar. Vamos almoçar um peixe? À noite pedir um South ou inventar uma sopa, como a que revigora com cuidado e nutrientes os moribundos - como vez ou outra parece ficar o amor. Depois de comer melhora.