quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Frau Valente

Clarice era Valente de casada
e abdicou da condição
sem deixar de ser

***

É redonda a cabeça do alfinete
em todo lugar do mapa
em que estive enquanto pensava
o que não devia

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

PEMDAS

(Manhã eu
dou a ré da minha vaga
O vizinho do bloco D já saiu
Me dando ângulo e coragem
Na rua dos ipês
só tem dois carros
Baixo os vidros
Respiro a música
que posso ouvir bem alta
sem atrapalhar na condução

Todo dia de manhã
Eu dou Sorte
Acordo tarde
Atraso calma
e sem sanção
Posso de novo poupar em vez de correr
Caminho rápido
Conheço
Reponho
Desejo e prontamente
Realizo
Festejo
Um descanso, se quiser.

Manhã bem cedo eu dou vista à Sorte
Às vezes não a reconheço
Sigo-a perseguindo
o resto do dia
desviando dos latidos
do mundo
Só no final computo
Os fatores
Os resultados
Vislumbro
As Subtrações alheias
Faço um balanço
Como nos colegiados

O dia é sempre bom
quando pode começar
Com Sorte a consciência
máxima do privilégio
É dar e ver
Quem sabe até louvar a
Sorte tida

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Tome notas - sabor canela


Vestígio

Minha mãe costuma dizer
"Quem a gente é
vai conosco a qualquer parte."

— não cita autor e não duvido a 
canetada seja dela.
Minha mãe é serrana e
um pouco rapper.
Seu saber
conciso.
Sua voz
marcante.
Sua verdade
raiz.
O que se é
Com consistência
não desgruda mesmo fácil
ou por deslize
Do nosso pelo
Da nossa alma
A reputação é um destino
— que nos precede;
sucede
e acompanha.


***

Obrigada, Gladiador
por me deixar ser a Besta
às vezes


***

Tão difícil
surpreender
um ansioso


***

Saudades
Ciúmes e
Pêsames
São sempre um pouco plurais


***


Tear

Um nó em cada ponta
senão desfaz
o trabalho de tear.

(Re)aprendi o ponto
alto
Só pra fazer render
o fio
que une e conserta
buracos abertos

(Re)tecer é magia de
i
            x         a  

r
de novo inteiro
Valer um elo.


***

Desinvestir.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Girassol

Do pó viemos todos — tu retornaste antes.
Estar preso é como estar um pouco morto.
Estar preso é um interdito, é sentir frio, e sentir medo, e se sentir bem mais sozinho quão mais cheia for a cela, tanto que já não se é mais as coisas boas que foram sidas antes.
Estar preso é se sentir o Aquém-Homem. À margem dos Súperes.
E lá vem mandado ser cumprido, de novo, todo dia de manhã um pouco mais, e tu com o riso nervoso, de novo, foi como um susto, de novo. E eu sei que tu rias no momento exato, numa espécie de soluço mostrando os dentes. Os olhos arregalados. Aquele cabelo. O coração na boca. Tu sem as rédeas da situação implorando, em silêncio, uma misericórdia que a vida agora talvez pareça não ter te dado nunca, mas eu acho até que deu. E rindo. Rindo como quem Coringa: tu indo de Augusto a Tramp em um instante sem nunca ter tido meia aula de clown. Trocando as vestes ali, ao vivo, na frente do agente penitenciário. Ser palhaço tu sempre soubeste. Faltou eleger bem a modalidade. Viraste um pouco do que não queria parte da plateia. Viraste tua própria plateia quando houveste por bem converter a tua dor em riso. Dor mas não só: dor, vergonha, desleixo, desistência. Um jogo de imitação. E aí também foi tanto luto, e foi dilacerante, e foi a queda de um púlpito alto com a escova de cabelo imitando microfone, e depois riste mais um tanto, e o teu riso era tão falso, e o teu riso era sintético, e o teu riso era um pouco branco no canto do nariz, o teu riso era um estado da matéria granulado, o teu riso custando o peso da grama do ouro e tu pagando porque precisava, e nisso não pagando o que de fato precisava. Enquanto isso recolheste, como em concha, pra nos proteger de ti ou pra se proteger das nossas reprovações, que afinal isto tu sempre soubeste que te daríamos de mão beijada.
Mas o sangue amalgama os elementos heterogêneos. E agora funde essa água da chuva e o pó; do chão; por baixo do colchonete. O sangue chora a tua angústia escorrendo por entre as grades, desce sem freio a Serra Canoas, lubrifica uma compaixão toda nova que atravessa a BR. A mesma de quando nos fazes rir. E tudo que mordemos, embora seja nobre, tem o gosto de merenda de presídio. É o sabor insosso de saber que talvez nada mais te ponha na linha, ainda que o fim do teu desespero de hoje tenha preço.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Dália


Daí do lado de lá você se tornou onipotente? Pergunto porque às vezes queria ter pra quem rezar e fosse humilde. Alguém que já foi de verdade e encostei com os olhos, e as mãos, e os defeitos, mas na passagem de tempo e plano pudesse agora não apenas me ver, mas também saber e poder. Tudo. De preferência do céu, que é pra ter bom ângulo. Queria que você ainda fosse de carne e osso onde estiver, ainda que me seja invisível. Porque confio mais em nós, os imperfeitos, cujas imperfeições se sustentam em pé ajeitando-se entre as carnes e os ossos. Sou capaz de uma fé cega em quem pode falhar. Acho que só isso pode dar complacência. Empatia. E cancha. Embora também possa ferir. Sinto que ter vivido, e morrido, e falhado no intervalo, é mais confiável do que nunca ter sido visto. Talvez por isso se tenha inventado Jesus? Daí dá pra saber? Escuta: Jesus existiu mesmo? Dois mil e tantos anos atrás? Agora vaga por aí, junto com todos os outros? Está sentado? À direita? A história é só um exagero ou foi inteira inventada em nome do dogma? Me diz: quando se chega no Além, todo mundo que partiu está reunido em ciranda ou fileira nos campos verdejantes? Exatamente como faz crer a Igreja Católica? Tem rodízio de almas, como creem os espíritas? No céu também há tempos diferentes? Ciclos? Moitas? Feriados? Descansa-se? Diverte-se? Há uma enfermaria de aflitos pra quem chega? É cada um com a sua varinha de condão? Só os melhores? Queria que você sim. Não pra me resolver a vida, não, não, isso não. Eu já me acostumei que isso não. Nem ia ter graça. Só queria que você tivesse agora um poder, não, um poder também não, uma diversão, mas também não é isso que quero dizer. Queria que você tivesse uma justiça? Talvez uma influência. Sim, uma influência. Que transcendesse o exemplo. Algo como um voto de Minerva em resoluções importantes tomadas de assembleia para o lado de cá, como quem fica com que mágoa e como elas se dissolverão enquanto corre o inventário. Queria que, assim que chegou aí, você possa ter tido um tête-à-tête com Deus. Com o Seu Deus. Ou pelo menos que seja, já a essa altura, uma das próximas da fila a tê-lo. Melhor ainda: queria que você pudesse ser um pouco de Deus, agora que também não posso mais te ver. Que Ele existisse mesmo, de verdade e só pra te emprestar a mágica da Criação. Que você conhecesse e quem sabe interferisse um pouco agora no que nos virá depois do livre arbítrio. No que sentimos de mais revolto. Todas as explicações que nos faltam; as que sempre nos faltarão; do que sempre nos faltará — faltava mesmo a ti, a quem Deus era o pastor —; das explicações que abrem espaço para outras perguntas novas chegarem na medida em que a vida avança e os caminhos se modificam. Sempre definitivamente. E eu tenho tanta curiosidade. Queria ver como o mundo seria se pudéssemos mesmo ser inteiramente conduzidos pelos teus caprichos e crenças. Rio só de pensar: seríamos tão mais sovinas. Usaríamos até a última gota de pasta de dente e perfume. Mas isso eu já faço. Então vou dizer assim: queria que Deus te desse boca. Pra poder me responder nessas nossas conversas que eu ainda poderia e queria ter, se pudesse rezar, e rezaria pra ti, e saberia que sou ouvida ou lida. E, enfim, respondida. Queria que na sua dimensão você ainda tivesse olhos de enxergar e voz de acalantar, exatamente como teve antes. Dá-se às coisas o sentido que se quer, eu sei. Incluso para a morte. A morte é não saber. A morte faz falar com quem possivelmente não escuta. E torcer pra continuar chegando a mensagem. Para que saiba. Sinta. Veja. Possa. Fazer gestos, ações e acenos. Com as mãos, que são mesmo os instrumentos de fazer coisas.
Se eu soubesse que a beata virou mesmo um pouco Deus e agora tudo sabe, perguntaria de amanhã.
Enlaçaria os dedos pra te 
invocar e perguntar
se isso é normal.
Pediria paz
nessa inconstância
que é viver —
e um sinal.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Cativo [final]

Havia uma lua plantada
no centro do topo do céu limpo gelado
irradiando luz difusa da noite
sobre as nossas vidas
No começo
do fim
da semana
Enquanto eu ia pra casa
na sexta

Estive mentalmente sentada
no chão (que agora imita madeira
como criança construindo castelo
na areia
da praia
que a água salgada pode & há
de vir
Tomar

Com dois joelhos pro mesmo lado,
Pensando em
Nós —
oitenta e vinte
por cento sempre
Em construção,
Pensando:
Com que material
cimentarei
as bases de alguma fortaleza
que nos protegerá
por certo sempre
Das intempéries
Chegadas
em discos voadores
pra sacudir nossos quase mortos
mas muito vivos
e parvos
dilemas de dois
Tão ressuscitados quanto um Cristo
nos dias seguintes

Pensando:
Em que castelo; ou
Protegida por que fortaleza
Eu posso ser princesa
Se você me vê através
De todos os espelhos
em que não se reflete;
Desse domo de vidro fosco
atravessado por vultos;
em brumas
imbróglios
Em códigos
Feiuras
Onde já não se guardam mais nem
os segredos
sadios?

Você me vê?
Quero fugir
E me proteger
Dos conflitos que causo

Intransigente
Eu parto
pra briga
Eu travo
batalhas épicas
em nome de uma
Justiça
burra,
com as próprias mãos
e os próprios goles,
ilegitimamente
passiva.

Você, não.
Você não parte
Você fica
Você pivota
Você só entra
em guerra
por
Paz.

Me condenei,
Sou culpada:
De um cinismo
De amor
de
    -scrente
E agora quero voltar
a ser
inocente.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tome notas - sabor groselha

Palíndromo silábico

Quanto tempo
vale y leva
o insight


***

“Mas tinha tudo”
É que a felicidade alheia
nunca é vinculada
à vossa inteireza


***

Déficit primário

No fim das contas,
não sentir em dívida
pelas expectativas que criei
                                            nas pessoas


***

Out of my own league

Como é que eu faço pra alcançar
o sarrafo
que eu ergui


***

Quem dera fosse bem pavimentada
A estrada que dá
na última montanha-
horiz'onde se esvai

Subir fácil
Poupar esforços
Poder conter o sol com toda força
(e as duas mãos
A fim que o bom do dia
claro
nunca fosse embora


***

Desinvestir.