quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Cativo [final]

Havia uma lua plantada
no centro do topo do céu limpo gelado
irradiando luz difusa da noite
sobre as nossas vidas
No começo
do fim
da semana
Enquanto eu ia pra casa
na sexta

Estive mentalmente sentada
no chão (que agora imita madeira
como criança construindo castelo
na areia
da praia
que a água salgada pode & há
de vir
Tomar

Com dois joelhos pro mesmo lado,
Pensando em
Nós —
oitenta e vinte
por cento sempre
Em construção,
Pensando:
Com que material
cimentarei
as bases de alguma fortaleza
que nos protegerá
por certo sempre
Das intempéries
Chegadas
em discos voadores
pra sacudir nossos quase mortos
mas muito vivos
e parvos
dilemas de dois
Tão ressuscitados quanto um Cristo
nos dias seguintes

Pensando:
Em que castelo; ou
Protegida por que fortaleza
Eu posso ser princesa
Se você me vê através
De todos os espelhos
em que não se reflete;
Desse domo de vidro fosco
atravessado por vultos;
em brumas
imbróglios
Em códigos
Feiuras
Onde já não se guardam mais nem
os segredos
sadios?

Você me vê?
Quero fugir
E me proteger
Dos conflitos que causo

Intransigente
Eu parto
pra briga
Eu travo
batalhas épicas
em nome de uma
Justiça
burra,
com as próprias mãos
e os próprios goles,
ilegitimamente
passiva.

Você, não.
Você não parte
Você fica
Você pivota
Você só entra
em guerra
por
Paz.

Me condenei,
Sou culpada:
De um cinismo
De amor
de
    -scrente
E agora quero voltar
a ser
inocente.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tome notas - sabor groselha

Palíndromo silábico

Quanto tempo
vale y leva
o insight


***

“Mas tinha tudo”
É que a felicidade alheia
nunca é vinculada
à vossa inteireza


***

Déficit primário

No fim das contas,
não sentir em dívida
pelas expectativas que criei
                                            nas pessoas


***

Out of my own league

Como é que eu faço pra alcançar
o sarrafo
que eu ergui


***

Quem dera fosse bem pavimentada
A estrada que dá
na última montanha-
horiz'onde se esvai

Subir fácil
Poupar esforços
Poder conter o sol com toda força
(e as duas mãos
A fim que o bom do dia
claro
nunca fosse embora


***

Desinvestir.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Marta-Viva

Marta quer sentir que vive.
Quer viver mais
do que trabalhar,
mas sem não tem la plata
pra 
comer e morar.

Porque aprendeu
a palavra
C a p i t a l i s m o
A des-
culpa não lhe sai da boca:
Ora o mundo gira à base
dos suores,
especialmente aqueles
escorridos pelas têmporas
de quem para tudo socializar
é a única perfeita solução;
Ora encuca com aqueles outros
a quem o trabalho
é máxima da vida,
e fecham o nariz,
e trabalham, e trabalham,
E prosperam
em ignorar
um Desconforto que vive ali
todo mês
sem honrar o aluguel
Só não tem nome.

Em ambos se reconhece
Visto que alterna entre
workaholic e O sentir
que vamos todos morrer
Bem loguinho e de fadiga.

Só mesmo não se identifica
Co'aqueles terceiros
A quem o Desconforto de um século
tardio como o C a p i t a l i s m o
também vive ali
A atormentar, como pulga, saltando em coceiras
Que resolvem arranhando chamar
C o m u n i s t a s
de vagabundos 
que
não querem mesmo trabalhar
Ainda que,
bem conversadinho,
Trabalhar seja uma coisa que
Pouquíssima
gente
queira
realmente.

Não é bem

questão

de

Querer
Querer mesmo,
Marta só quer
Sentir que vive. 
Ontem comprou três picolés gourmet
inflacionados
que valeram — a pena;
      um prazer culpado;
e  a hora extra da terça;
derretendo na boca um gosto de
água e
fruta congelada
e merecimento.
Esteve vivíssima.

Outro dia se pegou bem viva
Porque o xampú
tinha 
        acabado e dinheiro de sobra
Pra comprar outro bem bom
De pronto,
Um só,
Que é pra não acumular nos armários.
Fazendo com pouco uma espuma, dia a dia,
De limpar
a vida acontecendo
Os ciclos acabando
E as unhas vem crescendo
Meio tortas, por dentro das meias
Por dentro das botas.

Marta não quer sentir que morre
Um pouco a cada dia
E, para tanto,
Vezenquando hiper-
valoriza
Um cafezinho,
Um xampú,
Um dia de sol,
Três picolés,
Um básico perrengue.
Aprende um pouco por dia a lidar
Com tantos Desconfortos
Inconsistências
E hipocrisias
Quanto tem qualquer um
E outros até maiores.

O trabalho empurra Marta
                                          para a frente
do                                                               P
                                                                    r
                                                                    e
                                                                    c
                                                                    i
                                                                    p
                                                                    í
                                                                    c
                                                                    i
                                                                    o
em que vira Morta
caso se jogue sem cuidado e ressalva,
E meio-dia estende a rede
Que não lhe deixa
falhar
empobrecer
diminuir
esborrachar ou
morrer.

Mas Marta não quer só viver.
Quer sentir que vive.
Para desopilar,
Marta-Viva 
é bem capaz
De assistir a um filme cabeça
De fazer um poema de amor
De inventar um jeito de viver
— avant la lettre —
Que inaugure o gênero
Marta-Viva

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Eco [final]


A vida real é o melhor feitiço pra desconhecer. O tempo, sabedor de todos os caminhos depois do fim, o tempo, sabedor de caminhos quaisquer do durante. É o cotidiano quem gasta e pui a tessitura do inventado. Digo mais: o amarelo daquele semáforo tem cores de "Fulva" e o dúbio do sinal me faz recair em "Grafomania". Sim, Laura, um narrador pedante bem dentro da minha cabeça ainda faz isso o tempo inteiro. E com as maiúsculas estilizadas na cursiva, ainda por cima. Pior: pratico o vocabulário arcaico só pra reter a acepção de palavras novas.
Não te endereço mais, porém, a maioria das minhas divagações. Estas frases toscas que acabei de escrever, como as das aulas de novo idioma pra impressionar professor, são especiais só porque gastam de um jeito rústico e de propósito as duas primeiras palavras que, quando aprendi o que queriam dizer, guardei anotadas num bloco, por hábito e pretensão, para um dia escrevê-las pra ti, sem as aspas, mostrando que as sabia bem.
Mas já não podia.
Retive-as até hoje mais cedo, no íntimo, como se guarda a um segredo, junto com a imagem mental e iluminada que seus significados me acendem, com o barulho das buzinas do trânsito escoando lento aqui na minha frente e tudo.
Eu fiz sem fim de vezes este mesmo trajeto, às vezes mais longo que o necessário, muito atento, só pra ter chance de assisti-la à distância, agitando bagulhos dentro da bolsa imensa até encontrar o molho de chaves pra entrar em casa, toda a vida apressada. Eu percorri sem fim de vezes, com a imaginação e com a esperança, esta mesma cena — na qual eu sempre a revia magicamente naquele lugar mais provável.
Mesmo depois de saber que já tinha até mudado de endereço. E de estado civil. Mesmo depois de saber que ao se afastar de alguém, desconhece-se esse alguém e seus percursos, porque não se acompanha mais de perto as mudanças de endereço, de estado ou de ideia. Mesmo depois de saber que às vezes se desconhece alguém mesmo estando bem perto. Mesmo depois de saber que, se for parar pra filosofar, a gente nunca pode confiar que sabe verdadeiramente alguém.
Parei sem fim de vezes nesse semáforo com o amarelo fulva. Poderia ter seguido — mas era como se, mesmo bem viva e caminhando por outra freguesia, a Laura ainda pudesse vagar, com todas as penas de sua alma atormentada, ainda o mesmo e velho e conhecido fantasma, na versão que construí e pela qual me apaixonei, só pra que eu pudesse revê-la. Repetindo-se, idêntica, imaginada, onipresente, ou pelo menos em todos os lugares em que eu sei/imagino que ela já esteve. Como um eco. Um eco alimentado. Fabricado. Invocado, com afinco (três descargas e um espelho, como a Maria Sangrenta dos banheiros de colégio). Um eco — por isso mesmo, unilateral. Amiúde. Um eco zunido. Ensurdecedor de outras vozes, mais reais e melodiosas.
Ressoam em mim as memórias das todas ocasiões em que, vendo um carro minimamente parecido com o dela, com o coração ainda disparado, eu esticava o pescoço para conferir a placa. E nunca eram os mesmos sete dígitos de que só lembrávamos no estacionamento depois de fazer piada sobre o que significavam as letras, em livres associações, na forma de micro poemas bem humorados. Nunca saía pelo visor da calculadora do meu para-brisa o resultado certo na prova real da matemática nova que um dia inventamos para tentar decorar algarismos numéricos. Muito provavelmente, em alguma altura de todos aqueles anos, ela também já houvesse trocado de carro, inclusive, e o que eu perseguia era apenas a propagação do ruído que eu mesmo emitia no universo. Já disse e vou dizer de novo: um eco.
Porque nunca era ela saindo do banco ao lado da farmácia. Mexendo no cabelo, de costas. Ou cruzando a faixa de pedestre carregando sacolas enquanto ajeitava os óculos. Nunca era ela de xadrez. Nem de vestido. Nem mesmo de azul. Nunca era ela de mãos dadas com outro cara de estatura semelhante à minha passeando pelo shopping. Ponto turístico qualquer. Nunca, nunca mesmo, era ela. Era sempre uma sósia. Uma dublê de sobrancelhas. Um arquétipo. Uma minha projeção no horizonte inalcançável, etereamente intocado, mesmo a passo corrido.
Por tanto tempo qualquer símbolo que remetesse à Laura, quero dizer, que remetesse à ideia que conservei da Laura, foi pra mim como um ídolo!
Por tanto tempo qualquer mínimo sinal que me lembrasse dela e do que senti com ela foi arte sacra da minha devoção por suas heresias e por seus milagres até então insuspeitados!
Agora eu custo a acreditar que toda a fé já se esvaiu. Que demorei tanto pra aprender a lição que a Laura deixou ensinada quando seguiu a própria vida. Ignorei a lição, tangenciei a lição, escamoteei a lição, mesmo tão vívida e clara, o quanto pude.
E agora a tenho bem sabida.
Parado aqui, escrevendo, deste lado de cá dos sinais fulvos que se acendem e se apagam pela cidade, alternando-se, eu consigo perceber que namorei por mais tempo àquela vontade de reaparecer de surpresa, certo de que provocaria nela um abalo sísmico e sísifo capaz de nos reunir, ou quem sabe todos os Ford Fiestas do trânsito, do que a ela mesma, em pessoa, carne osso defeito e dilemas, para além das letras que se articulam sem parar em construções bonitas do meu vocabulário.
Hoje me dei conta, parado aqui, neste mesmo local em que conjurei os desejos mais infames de, pelo menos, revê-la, ter finalmente dessensibilizado para tudo — até para o uso sem pudor nem jeito das palavras bem novas que eu tinha guardadas na gaveta, como presentes, com bilhetes. Fulva. Grafomania. 
Agora sou a pantomima de uma cobra que nada precisa dizer para que a gente se dê conta, assistindo, de que ela mesma percebeu que abocanhou é o próprio rabo, que doeu, puta que pariu como doeu, e basta que tenha doído tanto para que, num gesto de iluminação divina, tremenda, num belo instante, recobre o tino e se cuspa. Depois me estico em outra direção. Para ainda mais longe do fim, ou do dano de mim.
O tempo, sabedor de todos os caminhos, banalizou os nossos absurdos. Ensinou-me que ao Santo Deus de Coincidências não se faz promessas, porque não aceita chantagens nem precauções. A vida nunca se cozinha em slow burn: a vida às vezes passa do ponto, noutras se come crua. Já passou muito da hora de eu tirar a Laura da geladeira (e descartá-la, mesmo sem tê-la preparado), mofada como ingrediente velho, para dar aos porcos, que tudo devoram e reciclam, para depois fazer virar torresmos novos. Ela não merece mais nem metáforas melhores.
Hoje constatei ter removido o último obstáculo — distante — no qual a reflexão das ondas de som batia e me voltava. Hoje parei naquele mesmo semáforo e esqueci um pouco o que queria dizer Fulva, embora bem me lembre o que sempre quis dizer Grafomania.
Excomunguei um beijo de adeus e misericórdia na testa do busto de marfim que um dia esculpi em tributo para Santa Laura na praça de armas do meu imaginário antes de destroçá-lo inteiro, com violência, às tacadas, transformando-a em poeira fina, diminuta. Que bem no fim eu sempre soube que precisaria varrer de mim se me quisesse curar dos acufenos. E ainda que, em agonia, eu tantas vezes não pude suportar a constatação de que devo amar pelo que tenho e não porque imagino, com esse moai de Laura já desfeito, o que sobra pra adorar é o que existe ao redor, empoeirado. O que sobra pra adorar é o que existe ao redor. O que sobra pra adorar é o que existe.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

30 de novembro

Uma vidente me disse
e eu lembro do dia
que eu era ajudada
por sua energia

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida urbana

As vagas de garagem de um prédio antigo são para sempre do tamanho dos carros que circulavam no ano e local em que foi construído. O porteiro pode virar perito em dar pitaco de manobra, vem de frente até aqui, agora distorce tudo e vai endireitando, mas as colunas largas da estrutura se pronunciam duríssimas sustentando sete, dez ou talvez doze andares inteiros ou mais, uns quatro apartamentos cada. Por isso não há meio de magicamente alargar os espaços. Sempre se sabe que é este o defeito, imutável, das moradas verticais dos grandes centros. E haja manobra com o assistente de estacionamento apitando muito nos sensores da frente e de trás até enfiar uma SUV “robusta” (como anunciaram de boca cheia na publicidade off-road, mas mal e mal ‘guenta a 470 esburacada no trecho sem duplicar) na vaga milimetricamente planejada — para um Celta, no máximo. Quando muito uma Brasília. 
Se bem que eu nunca vi um Celta com direção hidráulica ou câmera de ré.
Então talvez não me caiba (a mim, que entendo mal o tráfego de seis pistas que só vão pela Visconde de Guarapuava, por qualquer razão hoje divididas de três em três por canteiro) praguejar contra os avanços da engenharia automotiva. Ou os retrocessos da solidez da engenharia. Nem contra outras modernidades mui urbanas: tratar pet por descendente; viver de ser digital e influente; aleitamento materno de filho com muito dente. E eu assinto que, realmente, só vivendo pra saber, mas até que se prove o contrário eu tenho uma única vida e talvez nessa, nessa aqui, pra concordar, concordar mesmo, não vá dar tempo. Então só observo. E comento.
A cada ida eu me convenço mais que os jeitos de viver vêm das experiências. Do timing dessas experiências. Do que se pôde fazer com elas e quando. E eu até posso crer que as possibilidades asfálticas de uma metrópole são tantas mais mas a liberdade, a liberdade mesmo, a de ir e vir, não consegue ultrapassar um parque belíssimo ou outro, não consegue se sobrepor às agruras apertadas da mobilidade urbana que já foi referência e hoje sucumbiu ao Uber, nem ao drible dos mendigos aninhados vadiando nas marquises, ou dos pombos dando rasantes pela calçada dos camelôs. E, finalmente, não consegue se sobrepor às solidões submergidas pelo pesado da falta de conexões reais e mais histórias compartilhadas. Há uma falta de encontrar conhecido nos hiper mercados. Há uma mentalidade a que chamarei shopping center: tudo é prático de comprar, mas não se sabe mais se é dia.
Somos produto do nosso tempo. De cada arranjo de circunstâncias. A mudança de um fatorzinho que seja da equação muda, sim, os resultados. Que se dirá dos grandes fatores. Ter teatro, feira livre, Guairão, museu, Leminski, choro na praça. O advento das mini-saias. Mas é preciso aprender a fazer balizas. E não é porque podiam ir que foram. Menos ainda de mini-saias. Basta-nos ter sempre para nem querer, às vezes. E não é porque havia passe livre pra cultura que se tornaram cultos (alguns sim). Nem é porque descobriram antes o que era um Cosmopolitan que se tenham tornado (e entornado) cosmopolitas (alguns, sim).
Na vitrola deles tocava o que lançava de mais fresco na cena. A versão acústica daquele show internacional (que puderam ver ao vivo) na mídia física recém chegada, parecendo que revogava as anteriores. Sei que este multi-player de fita cassete e CD foi substituído antes por um DVD e agora está aí pra bonito. Antes, muito antes que o Pioneer pirata véio de guerra que só apareceu lá em casa depois das primeiras expedições profissionais do meu pai ao Paraguai mais pro fim dos anos 2000. Na cidade grande tudo chega antes — e tudo se move antes, ainda que pro fim da fila.
Estas paredes de prédios altos construídos há tanto tempo contam a quem está fora a história dos habitantes de dentro das casas. Dos donos das casas. E, sobretudo, das famílias dos moradores das casas. Os altos andares contam de onde se veio e o que se vê da janela é a densidade de uma legião de estranhos. E placas. Não as rachaduras, mas as cores e texturas. Arquiteturas. Cômodos labirintos. O nome da rua, decorado e tradicional, que já constava do mapa físico. Perto de que outro prédio. Bairro cercano de um estádio, e não do outro. O centro cívico. O clube de ir nadar e casar. As distâncias longínquas das sedes campestres. Os elevadores e escadas rolantes, que aprenderam a usar desde novos. Os móveis planejados. Tudo bem antigo. Tudo bem datado. Como se o direito ao acesso fosse um carbono de contar idades da cidade em ritmo diverso, sempre um novo número. Já está a contar um carbono trezentos mil.
Já que ter história é mais import, digo, imponente do que ter dinheiro, em molduras enormes devem estar e permanecer orgulhosas as fotos em preto e branco das construções que rendem, passivamente passadas de pai para filhos (que reivindicam, esbravejam e digladiam por seus quinhões e alugueres) desde o avô, o bisavô, tataravô. Eles sabem de cor a cor do concreto desde um tempo em que, que a gente saiba, era tudo mato. Eles quase não viram mato. Nem os pais. Nem os filhos. Não são herdeiros de quem viu. O que eles foram é funcionários da Caixa Econômica. Professores de idiomas. Sucessores de Gutenberg. Por isso aposentaram cedo. Tudo isso se vê no pé direito alto. Os cinco ou seis pregos finos e tortos que costumam segurar corajosamente os quadros que escolhi a dedo na promoção para a sala lá de casa que o digam: as paredes dizem mesmo, e dizem muito, sobre quem mora.
Se eu fosse uma traça, a minha mega-sena seria encontrar um prédio com nome e sobrenome quatrocentão num bairro nobre de um lugar bem úmido e frio e viver para sempre roendo até o caroço das páginas amarelas de clássicos em inglês ou português do império. Começaria de trás pra frente. As capas duras de couro enfileiradas com títulos dourados? Seriam por mim roídas com determinação. Só pra ver se o devorar das letras de decoração sem pausa, há tantas gerações na família, dá barato ou só cansaço.
As vagas de garagem são moldadas para sempre do tamanho da época e lugar em que foram construídas. Talvez as cabeças também.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Cadernos de anotar a vida bucólica


Também no campo acabam os domingos — como o pão de forma caseiro, em farelos fininhos sobre a mesa, sob os ecos da Copa Mundial de Clubes a tarde toda rolando, como bola, na TV.
Acaba, com cartela verde, o bingo de Santo Antônio ao anunciar o narrador, com suspense, depois de pedir rogai por nós: cinqueeentaaa eee ooooitooOo. É que se tem uma coisa que santo adora, é jogo.
Acabam as vendas das bandeirinhas e, depois, o leilão do bolo principal, com o consórcio de compadres que se querem saber prósperos dando um vistoso lance de setecentos e cinquenta reais fora o baile. 
Acaba o quentão, antes do fim da festa, porque a cozinheira que preparou (“eu vou bem! cada vez mais bonita, mais nova… e mais gorda!”) gargalha a autocrítica bem humorada nos avisando que não podia mesmo prever tanta gente caridosa fora do tempo da política. E, ainda assim, quando é hora de cantar a pedra treze, o globo misteriosamente cospe “doze mais um” — e uns setenta por cento da festa se acotovela cúmplice, com risinhos abafados, dizendo ou pensando que “treze aqui não se cria”. O ruim mesmo é que empresa grande também não.
Sei que estes bancos enfileirados sem encosto são tão duros quanto quase todas estas cabeças, tantas que reconheço e que me conhecem desde que nasci, e que não veem motivo nem tiveram qualquer circunstância de pensar muito diferente entre si ao longo da vida.
Sei que este líquido viscoso que está sendo despejado fumegando nas tigelas de buffet de restaurante a kilo, ao lado dos pratos com queijo ralado e cheiro verde cortado bem miudinho (que não porei no prato), terá o sabor conhecido — e um pouquinho gorduroso — de merenda de colégio em prato azul de plástico.
Sei, ainda assim, que estar aqui, cercada destas pessoas, tem o gosto confortável de regressar à casa.
Na qual minha mãe não dorme sem antes lavar os copos e as taças, nem sai do quarto de manhã sem antes arrumar a cama. A casa que tem sempre no fim de semana algo de molho ou batendo na máquina, outro algo que foi lavado antes balançando no varal, outro algo entregue ainda ontem pelo Mercado Livre, com o sol de sempre ali batendo na varanda e entrando pelas basculantes verticais da garagem. E se quando chego adquiriu-se um qualquer vício novo (como passar a ponta da língua no vãozinho entre os dentes de baixo), basta-me advertir-lhe com a seriedade que sempre usou comigo que, brevemente, concordará que sim, precisa parar com isso, mas para se convencer racionalmente vai forjar um pequeno aforismo que serve de lição para nós duas: “Meu cérebro tem que aprender a controlar a minha língua”. 
Casa na qual meu pai, que cozinha e teima muito melhor que nós todos juntos, mexe a panela em que frita com bastante banha de porco o queijinho com ovo que faz para me agradar de manhã bem cedo, enquanto repete com tom de sabedoria suas teses: de que o que está matando lentamente as pessoas, na verdade, são as verduras (com tanto agrotóxico, onde é que já se viu, o tomate se estiver meio verde se sente o veneno na boca); de que os ratos devem ser emboscados com doses de veneno lento, porque se comunicam de forma senciente; de que o aquecimento global, se for parar pra pensar, pode nem existir, porque desde que o mundo é mundo há enchentes, e este calorão, e os ciclos normais da natureza de tempos em tempos, e não sei quanto por cento, agora lhe falha a memória, de água que compõe a maioria do planeta, e por isso nem em cem mil anos daríamos conta de interferir nela inteira com o pouquinho de terra submersa que a humanidade habita.
Estas suas certezas, sempre tão enfáticas, ensinam-nos sobre o (seu) mundo, e por certo devem confortar-nos para não pensarmos mais a respeito, nem sofrermos, nem preocuparmo-nos, nem nunca mais cogitarmos não lhes dar netos por qualquer bobagem assemelhada (sem o embasamento lógico na coerência que alcançamos com nossos conhecimentos empíricos), imagino. São parecidas com o fato (por ele comprovado) de que o único negro que conhece é muito amigo seu e nunca sofreu preconceito de ninguém.
Os tempos mudam, é claro que mudam, muitas vezes até para melhor, mas a marcha da subida é tão lenta que quando algo muito fora da Curva da Banana acontece, espanta.
Especula-se, a título de novidade na praça, sobre histórias novas que, mesmo sendo novas, têm nome certo, sobrenome e toda a genealogia, como a da mulher que viciou no jogo do Tigrinho; as razões que levaram o marido de uma a implantar cabelos e agora parecer mais novo; e como estufa o peito empombado quando anda o marido daquela outra.
Não há, porém, novidades ou vácuos de poder na presidência do CPC da capela — que é uma baita vitrine para os jovens e aspirantes a vereadores, com ideias tão, tão antigas que parecem os mesmos desde os tempos áureos, quase imemoriais, nos quais o pavilhão, a rodoviária ou a pia da cozinha aqui de casa foram construídos, e ainda por cima com o mesmo exato tipo de tijolinhos à vista.
É quando meu pai se lembra de um outro amigo seu, que lhe disse um dia que se alguém for montado numa vaca à missa, no primeiro domingo todos reparam e comentam, no segundo menos, no terceiro ninguém mais nota e no quarto é normal mais gente ir.
Em parábola, todos os preconceitos perdem todo o seu sentido.
Quando envolve bicho, a coisa fica natural.
Ainda ontem minha afilhada mais nova se viu confusa sem saber se são “pipiu” ou “cocó” as galinhas que se empoleiram mediante saltos ornamentais acima do telhado de eternite do rancho, numa escalada ousadíssima até os lugares mais altos da árvore conexa, para fugirem de qualquer predador que venha pelo mato à noite.
Sim, as galinhas do meu pai sabem voar e se proteger. Quase como águias. Mas este fato, ao contrário de alguns avanços sociais e científicos tidos como absurdos porque subvertem o que lhe é conhecido, escapa muito ligeiro ao seu assombro — é diário, é quase trivial. Como a lagoa esverdeada, que sobe e desce com a chuva. Como o vizinho arando com o trator a terra, que logo é tempo de plantar.
Este recanto é a minha Macondo: sempre a mesma, o que tem de real tem de mágico.
São sempre épicas as histórias que lhe circundam.
São conhecidos os seus encantos, mas ainda mais seus espantos.
Foi dentro das cercas aramadas (e um pouco farpadas) destas fronteiras que começam na Bracatinga e se estendem até a Palhocinha que eu cresci, recusando com mau gênio a comer as cebolas que muito tentaram me servir. Foi aqui que temperei os princípios do meu espírito, respeitoso e anárquico, até engrossar o caldo de minha desobediência indolente, que discorda tanto e, ainda assim, tão pouco busca convencer aos meus de ideias novas — que pode bem ser que um homem de fora me tenha metido na cabeça, porque eu não fui criada assim, embora tenha sido criada para ser exata e rigorosamente assim. 
Por um tropeço no sufixo e da semântica, não me tornei submissa, mas subversiva aos usos e costumes desta simplicidade interiorana. Estes hábitos que agora, de visita, considero apaziguadoramente modestos. Com estes meus modos de criança que respeitava a catequista mesmo tendo certeza de que rezava Jolvei ao invés de Volvei naquela passagem da Salve Rainha Mãe de Misericórdia.
E, de repente, degredada filha de Eva, eu me pego querendo que o que conheço do meu lugar nunca acabe.
Para além dos meus silêncios ou convictas objeções, sei que aqui eu posso entrar, que eu sou de casa.