Recordo de quando a porta se abriu - ambos tínhamos as chaves. Éramos um para cada lado do batente - nos olhando longamente. Tu tinhas, altivo, uma mochila vazia nas costas. Eu tinha o rosto, a roupa, os cabelos e o corpo, mas sobretudo o rosto, envolto em uma gosma espessa translúcida que escorria lenta de cima para baixo de mim, como na cena que fez de Carrie a estranha. O visgo me avançava da raiz à ponta dos cabelos, das ancas até os pés descalços tocando o chão, das sobrancelhas para a parte alta da maçã do rosto, encobrindo tudo com a forma de estalactites recém formadas. Tudo em mim grudava e dava asco. Tinha cheiro de umidade, noite, absurdo, veneno branco e gelado, canto de parede e bolor.
Eram os resquícios de uma intensa chuva de sapos
ocorrida do lado de dentro.
E nós ali, parados numa manhã seguinte - como se a porta fosse um portal e quem ousasse atravessar pudesse se esfarelar, moer ou ser abduzido. Tu vinhas de fora. Muito de fora do meu redemoinho, ainda fresco da rua, ares de aurora, normalidade, retidão, banho tomado. Foi também tomado da surpresa de me ver naquele estado. Quis saber se eu conseguia enxergar. Te disse: quase não.
E tu deixando de acreditar, como é que pode uma coisa dessas. Ali nasceram mil perguntas insistentes. Sempre as mesmas, a serem feitas de jeitos novos, às quais me custa responder. Sinto que preciso soprar algo em voz baixa e mansa para fora, mas me falta ânimo. Meus lábios semicerrados de não se deixar intoxicar por este caldo gelatinoso que escorre abundante.
A ponto de só conseguir dizer: quase não.
E então o vulto dos teus opositores se estendendo na minha direção. A porta, um portal atravessado afinal, pondo à prova uma evolução inteira para tentares me limpar com as pontas dos dedos os dois olhos ao mesmo tempo, direita para a esquerda, esquerda para a direita.
- E agora? Agora tu enxergas de novo?
E te fiz que sim, assentindo com a cabeça para nos mirarmos com intensa e pesada demora. Limpo e suja, real e real, inédito. Prometi não dizer mais “necessário”.
Suspeitei que este visgo e este asco se regenerariam de tempos em tempos, impacientes, de dentro para fora de mim. Depois de dentro de ti para fora de mim. Por fim de dentro de ti para dentro de mim.
Sim, esta também sou eu. Sou feita também desta seiva lisa e pegajosa que parece transpirada diretamente dos meus recônditos - e às vezes se acumula e se avoluma numa camada grossa que vai me circulando para formar um conjunto de mim, que também sou eu. Toca que vais sentir que eu penso, insistente: será que um dia saberei te fazer gostar de navegar sem espanto no fel e no mel disto tudo - que também sou eu, e eu também não entendo?