sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Epifania

Acordei
Renascida
Sob a luz da ideia: Não quero te ter
Quero te ser.
Os hobbies e afins
Os tins, bens e tais
Tudo muito XY.

Não te sendo
hei de te atravessar
às vezes
Como um fantasma.
De um lado a outro assim
Transparentinha,
Fantasmagórica,
Sem sombra, com dúvida
Sem ter presença sentida
Através.

Daí sair sem alarde
Transpondo a matéria em-
bora impregnada
Da tua parte
mais glutinosa
— e, para mim, adesiva.
Tu meio rótulo
em frasco de plástico.
Eu nunca mais
inteiramente limpa.
Nunca mais compacta
Nunca mais lisa
Embora agora descoberta

Quando some o rastro
ainda é conhecido
o caminho.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Chovia

Eu sei que chovia porque ouvia o barulho. Não era lágrima, era chuva. Não era água, era cansaço. Era a nuvem pesada em cima das nossas cabeças trovejando, trovejando. Uma leveza que nunca vinha inteira. Um sol e luz que não duravam. Somos solares, percebeu? Somos solares. Somos fruta das mais cítricas. Somos tropicais, mas pra que chovermos tanto? A tela escura e a chuva e esse tempo que não passa até chegar amanhã de manhã com alguma clareza. Cada pingo de água é uma vez que eu me senti ruim nos últimos tempos. Ruim quer dizer muito: amarga, grosseira, equivocada. Ruim também quer dizer pequena. Ruim quer dizer pior do que podia ter sido. Ou pior do que na imaginação. O que se pode fazer com essa chuva? Que cai. Toca fazendo barulho. Cai como as palavras mais duras caindo da boca sem retorno, nada podendo ser des-chovido. Essa chuva molha as reflexões que me recuso a fazer. Abatuma o bolo. Os ruídos e estalos. As manias. Desfaz as construções — todas de areia, barro e pó. Essa chuva desmancha os montes. Lava mais um dia pra fora do calendário de brisas amenas. Pesa o clima. Um fenômeno meteorológico que nenhum mortal, como nós, parece poder controlar. Chuva que não respeita mais previsões. Planos. Outro natal. As roupas no varal. Abri de novo a janela e não era impressão. Chovia. Abri um guarda-chuva e molhava, mesmo assim.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Cyclamen


Quem te ensinou a subtrair
Números negativos
Viu também chegar a conta
Do essencial do fim e só
por etapas
— que os detalhes sórdidos têm pontas
Sempre soltas e muito agudas —
Tornando-se
Despicienda
A verdade inteira
Tamanha a evidência
De que algo muito grave
Deu errado.

Quem deu-te a saber 
a esperar a pressão
pra explodir
em provocações e lágrimas
De revanche e remorso
Ignorantes de todos os avisos
Prévios
Luminosos e sonoros
De que merecias mais
(e não cada vez menos)
Viu a vida virar
essa novela
Boa de acompanhar
sentado
acomodado
e olhando de fora
Ruim de ser
Protagonista
ciente, consciente
Até dos próprios deslizes
A vilã
A anti-heroína
Digo mesmo:
Uma persona
Com tantas
camadas 
De moralidade ambígua e
mea culpa e
Desejo
de sair
por cima
além
Do que permitem 
os tropos narrativos
terem as mocinhas
para que delas o público se compadeça
Em uníssono
Em unanimidades
burras
E clichês
Como querer
Merecer
Não ter
E enlouquecer
de coragem
De enlouquecer.

O último a sair
paga a conta e
apaga a chama

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Frau Valente

Clarice era Valente de casada
e abdicou da condição
sem deixar de ser

***

É redonda a cabeça do alfinete
em todo lugar do mapa
em que estive enquanto pensava
o que não devia