quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Dália


Daí do lado de lá você se tornou onipotente? Pergunto porque às vezes queria ter pra quem rezar e fosse humilde. Alguém que já foi de verdade e encostei com os olhos, e as mãos, e os defeitos, mas na passagem de tempo e plano pudesse agora não apenas me ver, mas também saber e poder. Tudo. De preferência do céu, que é pra ter bom ângulo. Queria que você ainda fosse de carne e osso onde estiver, ainda que me seja invisível. Porque confio mais em nós, os imperfeitos, cujas imperfeições se sustentam em pé ajeitando-se entre as carnes e os ossos. Sou capaz de uma fé cega em quem pode falhar. Acho que só isso pode dar complacência. Empatia. E cancha. Embora também possa ferir. Sinto que ter vivido, e morrido, e falhado no intervalo, é mais confiável do que nunca ter sido visto. Talvez por isso se tenha inventado Jesus? Daí dá pra saber? Escuta: Jesus existiu mesmo? Dois mil e tantos anos atrás? Agora vaga por aí, junto com todos os outros? Está sentado? À direita? A história é só um exagero ou foi inteira inventada em nome do dogma? Me diz: quando se chega no Além, todo mundo que partiu está reunido em ciranda ou fileira nos campos verdejantes? Exatamente como faz crer a Igreja Católica? Tem rodízio de almas, como creem os espíritas? No céu também há tempos diferentes? Ciclos? Moitas? Feriados? Descansa-se? Diverte-se? Há uma enfermaria de aflitos pra quem chega? É cada um com a sua varinha de condão? Só os melhores? Queria que você sim. Não pra me resolver a vida, não, não, isso não. Eu já me acostumei que isso não. Nem ia ter graça. Só queria que você tivesse agora um poder, não, um poder também não, uma diversão, mas também não é isso que quero dizer. Queria que você tivesse uma justiça? Talvez uma influência. Sim, uma influência. Que transcendesse o exemplo. Algo como um voto de Minerva em resoluções importantes tomadas de assembleia para o lado de cá, como quem fica com que mágoa e como elas se dissolverão enquanto corre o inventário. Queria que, assim que chegou aí, você possa ter tido um tête-à-tête com Deus. Com o Seu Deus. Ou pelo menos que seja, já a essa altura, uma das próximas da fila a tê-lo. Melhor ainda: queria que você pudesse ser um pouco de Deus, agora que também não posso mais te ver. Que Ele existisse mesmo, de verdade e só pra te emprestar a mágica da Criação. Que você conhecesse e quem sabe interferisse um pouco agora no que nos virá depois do livre arbítrio. No que sentimos de mais revolto. Todas as explicações que nos faltam; as que sempre nos faltarão; do que sempre nos faltará — faltava mesmo a ti, a quem Deus era o pastor —; das explicações que abrem espaço para outras perguntas novas chegarem na medida em que a vida avança e os caminhos se modificam. Sempre definitivamente. E eu tenho tanta curiosidade. Queria ver como o mundo seria se pudéssemos mesmo ser inteiramente conduzidos pelos teus caprichos e crenças. Rio só de pensar: seríamos tão mais sovinas. Usaríamos até a última gota de pasta de dente e perfume. Mas isso eu já faço. Então vou dizer assim: queria que Deus te desse boca. Pra poder me responder nessas nossas conversas que eu ainda poderia e queria ter, se pudesse rezar, e rezaria pra ti, e saberia que sou ouvida ou lida. E, enfim, respondida. Queria que na sua dimensão você ainda tivesse olhos de enxergar e voz de acalantar, exatamente como teve antes. Dá-se às coisas o sentido que se quer, eu sei. Incluso para a morte. A morte é não saber. A morte faz falar com quem possivelmente não escuta. E torcer pra continuar chegando a mensagem. Para que saiba. Sinta. Veja. Possa. Fazer gestos, ações e acenos. Com as mãos, que são mesmo os instrumentos de fazer coisas.
Se eu soubesse que a beata virou mesmo um pouco Deus e agora tudo sabe, perguntaria de amanhã.
Enlaçaria os dedos pra te 
invocar e perguntar
se isso é normal.
Pediria paz
nessa inconstância
que é viver —
e um sinal.