terça-feira, 27 de maio de 2025

Desautomação

Quem disse que as máquinas
logo fariam tudo
mentiu.

Experimenta não limpar o filtro.
Experimenta não comprar mais nuvem.
Testa aí não ampliar os giga.
Desrespeitar a potência
O ciclo
A voltagem
O manual
Ou não atualizar o sistema 
operacional
mas nem tanto
Se não respeitar à fórmula
Experimenta conversar com ela
Num idioma que ainda esteja aprendendo
Tenta tirar pra amiga
Sem chutar ou chacoalhar
Quando precisa
Experimenta não saber a senha
Ou esquecer de botar gasolina
Não obedecer ao algoritmo
Ou a algo
Ou ao ritmo
Que só sabe tocar zero e um
Pede a ela aí pra ver
Um chá, se chega na xícara
preferida
Se sabe mesmo passar o café
Só frasezinha pronta com travessão
Ou qualquer coisa de íntimo

Um dia hei de perder a memória
Esquecer os programas
E onde ficam os botões de ligar;
De dar enter
Um dia, com
                      tudo automatizado
As máquinas sentirão mais que eu
O que já sabem
+
Até lá queria experimentar
Não depender delas pra nada

Pensando bem, faz melhor:
Experimenta tirar da tomada.

domingo, 25 de maio de 2025

Cativo [13]

É no estômago que roncam as promessas de normalidade e paz da vida a dois. Não olhar mais a taça quebrada na pedra dura da pia, dessa vez foi de champanhe, da outra agora só tem duas. Cuida com esses cacos, passa uma água no que sobrou, tudo bem usar um guardanapo sim mas eu não faria assim, ouve só como grita a máquina de lavar que não escoa nem seca mais nada apitando “E21”, tenho te dito há semanas, sim, tem que chamar o encanador, tem - sujeito indefinido, tem é ninguém, alguém tem, tenho eu então, ah, sim, deve ser porque eu sou ansiosa. Ou resolutiva. Ou lavo a roupa, e não a louça. Ou tenho mais que uma calça jeans que presta, e em todas elas os bolsos cheios de empatia com o teu minimalismo distraído. Tenho aqui o contato, é do mesmo careiro da outra vez, eu só queria resolver logo, se soubesse que ia te irritar tanto não tinha agendado pra segunda, só o que me faltava é ter que vir recebê-lo, chama você de golpista e na cara dele de preferência, dá o teu show mas não pra mim, faz um pouco aí a linha macho man, esquece um pouco a educação mas não comigo, não, não é tédio o que eu estou sentindo, que eu não sou como aquela minha tia, é vontade de resolver tudo e logo e deixar funcional. Se reparar um pouco, quando eu dou pra procrastinar sou pior. Já devias ter aprendido que eu odeio absolutamente tudo o que só funciona no jeitinho. Pensei agora que relacionamento só funciona no jeitinho. Então vamos dizer que odeio quase tudo. Aqui eu fico. Não jogo fora. Não troco. Se chamo ajuda é pra consertar. Deve ter algo que preste pra salvar aqui. Senta pra meditar sobre isso nessa tampa do vaso que quebrou há três meses e agora enxuga o cheiro dos nossos mijos, de repente eu desparafuso e enfio ela num saco, que aí é ir comprar no dia ou cagar com a bunda direto na louça. Aposto que não vais querer. E ainda assim tenho muito claro que não estou louca. Não sou metódica. É isso ou usar o banheiro da visita, o que por motivos desconhecidos sei que também não vais querer. É isso ou ignorar outro dia as pequenezas que consomem o dia e, se não cuidar, o preenchem. É assim uma vida sem grandes questões atuais pra destrinchar. Fora as latentes. As mais ou menos antigas, agora e sempre mal resolvidas. As que voltam violentas na cara em pleno dia tal do mês tal do ano tal deitados na cama de manhã me chamando de hipócrita depois da visita ir embora só de ver de perto qualquer parente de segundo grau. E eu nos pergunto se é isso um relacionamento: às vezes engolir um pedaço seco de “apesar de” na esperança de depois ter molho. Verde, tártaro. Pimenta ou vinagrete? Pimenta. Sentir o canto da língua arder como as palavras de mais cedo, que não voltam mais para dentro da boca como agora esta comida entra. Esqueceram de tirar o alho do arroz. E se os dias andassem de dois em dois? Quem sabe o tempo passasse mais rápido. E se a honra fosse finalmente vingada num canto da festa, e se as goteiras de apartamento (eu que nem sabia que em prédio ia telha pra quebrar) pingassem também em cima das cabeças deles, na casa que eles ainda não compartilham, talvez nunca o façam, certos eles, coitados deles, e se de repente o piso deles também estufasse todo num anúncio estralado de estouro no meio da madrugada, e se ficasse o barulho fofo do oco entre o cimento e a cerâmica sem saber se foi na construção ou no assentar sem folga dos cantos e das fugas mas agora já venceu a garantia quanto é que vai custar o vinílico. E se o primeiro pensamento da manhã ao pisar no chão fosse sempre esse oco, esses cantos, essas iminências de quebra, esses erros e adiamentos, essas providências e fugas, amor? Quão incomodados ficaríamos até a barriga nos lembrar de novo que essa energia que gastamos há pouco em discussão interminável precisa vir de algum lugar. Vamos almoçar um peixe? À noite pedir um South ou inventar uma sopa, como a que revigora com cuidado e nutrientes os moribundos - como vez ou outra parece ficar o amor. Depois de comer melhora.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Buscar o balde

Quem inventou as horas
deu-nos a inventar a gestão do tempo
Noção de obrigação
Procrastinação
E o controle dos im-
pulsos, que tic-tacam.

Foram as horas que engenharam a moral
E esse lance de ser pontual

Ponteiro menor, perpendicular
Número em número
Marca o’clock
Apontando
Em ponto
ou traço
A raiz quadrada
dos começos
Das entradas
E compromissos
Mentais

Pouco ócio
Muito cálcio
Pra aguentar a dor nos ossos
de quebrar
o tempo em fatias
E sobre elas ser responsável
Por chegar
E sair
O atrasar
De repente
É caso de não pensar em
Sentir-se devendo
À etiqueta da agenda alheia

O tempo-rei de Gil avança
— e não se compra o Rei,
como à terra dos feudos
Ou a uma carta de baralho.
Incorruptível,
Só sabe andar pra frente
Sem olhar pros lados.

O tempo é um sol
que gira em curva no céu:
metade até chegar a pino
fazendo alarde
e soar um sino
Outra metade em queda
pra chegar à noite
que lhe põe de novo um fim, zera a contagem
De buscar o balde.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Trend alert

Se a boca não tivesse lábios
Acharíamos bonito ou feio
ter os dentes bronzeados
- penso, enquanto uns cliques me tele-transportam
do guarda-roupa abarrotado
aqui de casa
diretamente à pilha
de poliéster do Atacama
que se vê do espaço.
Já foi tendência
Voltará a ser um dia
Hoje é lixo
Lixo puro que não decompõe
- penso, enquanto o diabo veste a Prada
que não foi comprada em brechó
E a alfaiataria da Renner
E a Shein
vez ou outra
Exceto quando não está
A inventar rapidamente a moda
Produzida pra gente vestir e calçar
E consumir
a moda até
Derreter 
a moda até
Gastar a moda
Usando
a moda até
ano que vem no máximo
Quando a descartará
pra nova moda vir
- penso, no dia em que Virgínia
(e Pepes morrem!)
vestindo moletom
no Instagram
na CPI
As vitrines da avenida
estão bem cheias
Das peças que não precisamos
Combinando com outras
Das quais precisaremos
Depois das primeiras
- penso, com um laço em forma de flor atado ao corpo marcando a cintura
bochechas cheias de blush
camisa e botões
saia de cetim
os pés içados
massacrados
por salto 9
disse um dia Vivier
- penso, “bonito assim”.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Mão francesa

É o que me atravessa de ti que me sustenta em pé
O que se inclina em minha direção me firma
Feito mão francesa

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Salve Jactar

Na semente da minha árvore genealógica
houve um escravo
Deixou de ser cativo
Germinou
E fez nós todos:
Bravios, fortes e bravos
Rebeldes
de doer
terrivelmente
Insubordinados.

Aquele escravo arredio vagueia
Ancestral
Em espírito
Em cada folha tempestuosa
De sobrancelhas grossas.

No tronco, abraça a fúria resistente
de não se dobrar
Por pouco
ainda carrega
Dores tão tão antigas
Das quais a memória
da pele, há muito parda,
dos piores açoites
Nunca se esqueceu

Nossas mulheres
De largos quadris
E cinturas bem finas
Jactam-se ébrias em brios
De serem fortes
Muito mais que os homens
— os seus primeiros,
que não prestavam,
já se foram —
Tanto quanto as que vieram antes,
E infelizmente também
já se foram
De maneiras outras
Pelas quais lamentamos
demasiado.

Feito o que se pode
com o que se tinha
Na neblina da primeira hora da manhã
Rezam a metade de um terço com fé
feito papagaio:
Iluminai-me!
Iluminai-me,
Ó Pai bem forte,
Ensina-me a
não precisar tanto
A plena liberdade.
Rezam enquanto o germe
ainda brota
Nos corações
quando aflitos
Enquanto descansa
Combalido dos combates
olhando
de baixo
da terra
da árvore frondosa
Travado nas rodas
de uma cadeira
Orgulhosíssimo

Assustados com o que não soubemos
Como ele, ex-
Cravo um amor por qualquer poder
Pra sermos vistos, amados
Considerados
Mais votados.
Como ele, odiamos para sempre:
perder;
preguiça;
a escassez;
a ingratidão;
mesquinharia;
devedores contumazes;
não sermos donos
nem de nós mesmo
alforriados;
quem nos tem ofendido; a
mesma cobra
mesmo
que nunca mais nos pique;
quem tratou os dentes cedo
e com bom plano de saúde; ou
que suficientemente
— para nos fazer esquecer do passado
não nos
Acatem
Adivinhem,
Amem.

Incondicionalmente.
Como, enterrada em propósito,
hostil não soube
a semente.

O sangue vale mais que a reza.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Achismos

Acho engraçado alguém achar que psicóloga brinca de marionete. Não sei se minhas articulações e falanges nasceram atrofiadas e rígidas demais para encaixar nos fios, mas me parece mesmo impossível que mesmo vulnerável qualquer delas fosse capaz de me conduzir exatamente como quisesse na base do conselho. Deliro de ser i-ma-ni-pu-lá-vel.

Acho perigoso olhar muito pra cima ou muito para baixo nos degraus sociais. Me dá um torcicolo do cão ficar julgando o quão mais eu poderia fazer tendo um pouco mais desde o princípio e há um abismo muito do lado do meu pé, no qual tenho vertigem de cair e nunca mais levantar, ao pensar que nenhuma das minhas dores é legítima a depender do quanto doa mais o básico, na maioria. Podia fazer uma moral da história falando em validação das dores e em olhar para frente, mas não era — não era mesmo — sobre isso que eu queria falar.

Acho presunçoso para um caralho escrever sem ler muito. Ainda que pra mim escrever seja apenas um procedimento padrão de profilaxia, como é a punheta para os homens. Passando dos 30 descobri que posso desagradar livremente escrevendo textos com palavras de gente grande chula como “caralho” e “punheta” — a palavra crua, a palavra nua, a boca suja da palavra decadente dos becos, como ela me ocorre na cabeça em pensamento — e simplesmente seguir minha vida. Não vou elaborar.

Acho que likes, corações e palmas direcionam muito o conteúdo. Um algoritmo um quê de mental: algo como sentir que precisa muito de algo depois de ver muitas vezes o anúncio. Ainda assim, sigo adepta do contador de visitas. Por isso não usei a palavra view: pode-se ser entusiasta do alcance e não refém da aprovação. Dar aos outros o direito de acesso e o de discordância, simultaneamente. Até lidar com isso.

Acho as respostas da inteligência artificial com base nos textos enlatados por normas meia-boca que o mecanismo de pesquisa fez bons redatores terem que escrever por anos só para rankear bem nos resultados um produto produto produto. Vídeos? Só de até um minuto e meio, que ninguém aguenta mais. E eu meio que não aguento mais viver na época em que ninguém aguenta mais.

Acho que se digo coisas como “ainda estou decidindo se sou racista ao ler mentalmente a primeira pessoa de um autor negro com a voz do Mano Brown” e recebo de volta um silêncio, este é um silêncio elegante que diz bastante. Emendado com um “Não gostei de Kundera, achei chatíssimo”, então? Vish. Diz tudo. Será que eu também achei chato? Será que eu posso? Que um dia me darei o direito? Tenho a impressão de que, ao contrário da comida, seria uma heresia dizer que não gosto de algo sem primeiro experimentar tudo. Entender tudo. Todas as obras, contexto e nuances. Sim, eu me dei uma tarefa impossível, como adivinhou? Como se eu vivesse em constante processo etnográfico dos meus próprios hábitos e gostos, mas ainda estivesse na fase da coleta de dados, sem tecer juízo de valor. Ao mesmo tempo, a vida é tão curta. Deve ser libertador, sim, deve ser libertador ler só mulher, saber fazer mais silêncio (e eles ainda assim dizerem coisas) e ter por pilar da existência se dar o direito de ser desagradada.

Acho que um dia eu chego lá.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

As serei

sonhei com sua senhora sorrindo
redondamente grávida
                            enganada também
banhada às águas dulcíssimas do equívoco
no escuro prestes a parir
cópia de si
ou Ana ou Vitória ou
outra filha da
santa
sabe-se lá das escolhas dessas moças de hoje em dia
em serem santas
podendo ser tudo
escolhem justo
chás revelação
olhar de candura
vestidinhos soltos de florzinha em tom pastel com lastex
barato
sainhas rodadas pra baixo do joelho
caras
como você
afundados em papéis
bem definidos
subindo montanhas
de isolamento racional
e a vozinha dela mansa
ela toda mansinha
lentificada e meiga
nenhum pelo fora do lugar
nenhuma falta de juízo
nenhum excesso de passado
que possa contar

e se jamais as serei
é que eu me fiz primeiro eu
pergunte a Cássia
à voz rasgada
dos cheques e pileques
meu carro
de ir embora
e tudo o mais

não que minha mesa não seja posta
às vezes
não que eu tenha visto bem onde deu
o onde vai dar
nem que eu possa, dando fé, atestar
se é mesmo boa sorte
o azar
de eu ser das outras, que só caladas são poetas
de eu ser das outras, que sentem
muito de dentro
ainda o assomo
de retaliar
nem que seja
com um poeminha raiz
que
        eles não dizem o que a gente diz
        eles não tocam bem onde lateja
        eles não fazem o que a gente faz
        se danem eu e
        é'ssa mania
de não me deixar em paz