sexta-feira, 25 de abril de 2025

Essas coisas acontecem

Fantasiei muito com o dia em que eu bateria o carro. Essas coisas acontecem, o trânsito é implacável, meu pai é motorista, fui criada pra morrer de medo. Há na rua loucos de todos os tipos, aqueles que saem do Mosquito bêbados domingo à noite pela BR em vez de irem embora por dentro, os que fazem jornadas de mil e uma horas na boleia de um caminhão ou de um ônibus de linha e sentem sono, daqueles que acabaram de fazer a carteira e ainda não praticaram que chega, dos que andam a duzentos por hora achando que são por isso mais ou muito machos. E os piores de todos: ciclistas em cima da pista.
Esta racionalidade sobre quem posso encontrar na estrada, que sempre me pôs muito atenta, nunca impediu de enfurecer. Eu tenho ímpetos de buzinância. Algum chapeleiro entra sem dar seta, para no meio da pista ou resolve ultrapassar em faixa dupla e eu xingo alto, altíssimo, até a décima terceira geração. Xingo de CORNO (o meu preferido), de BARBEIRO (ué?), pergunto até POR QUE NÃO FICOU EM CASA EM VEZ DE SAIR COM ESTA MERDA DE UNO MILLE BOLA DE MASSA COM O FAROL QUEIMADO POR AÍ (a consciência de classe presa no porta-malas), ou apelo ao clássico: só podia mesmo ser um filho DA PUTA de um ALEMÃO BURRO desses (a misoginia de sempre, mas com aquela pitada de xenofobia do bem). Falo sempre com os vidros fechados. Batendo as mãos vigorosamente no volante ou balançando no ar. Só não buzino como eu quero de medo de levar tiro, que ultimamente nunca se sabe. Mas brava, na versão motorizada, eu fico muito. Transformada.
Em minha defesa, é quase tudo medo. O medo velho, enraizado e alastrado, de não ser sempre a motorista do ano. O medo de ser lenta (ou não ser safa?). O medo de bater e manchar minha CNH com um incidente grave, quem sabe até, deusmelivre, uma indenizatória que custe dez anos e dure meio milhão além da apólice.
Por essas e outras sinto que era mesmo preciso que eu tivesse alguma estrutura emocional para o dia em que acontecesse. Então eu fui me preparando pouco em pouco. Fantasiei muito, de pouco em pouco. Às vezes, desviando de colisões por um fio, depois de muito ralhar, eu pensava: não foi hoje, vai ser na próxima. A ideia continuava ali, com seu poder da (dis)(a)tração. Talvez, de tanto pensar em como me comportar no momento, eu pudesse repelir a possibilidade — ou pelo menos me comportar bem, sem dizer tudo que eu digo de vidros fechados seguindo viagem.
No meu delírio imaginativo de antecipação e controle, seria assim: eu respiraria fundo e desceria do carro paciente, para não arrumar encrenca. Acalmaria o cara, que estaria mais nervoso que eu, porque é sempre um cara, é sempre bronco, os caras nunca costumam saber lidar direito com nada, quem dirá com as emoções imprevistas — menos ainda as que envolvam carros, esta extensão com rodas e lataria de seus paus e bolas. Finíssima e equilibrada, de scarpin e bem vestida, com a voz baixa, eu diria: não tem problema. O senhor só foi um pouquinho desatento. Esse cruzamento é mesmo mal sinalizado. Meu carro é preto, talvez o senhor não tenha visto. Teve que parar para não atropelar o menino? Acontece. Não tem seguro? Não tem problema, posso acionar o meu. Vamos fazer assim, vou anotar o seu número e voltamos a conversar quando meu corretor responder. Quer que eu faça o b.o.?
Nem nas fantasias mais aleatórias que sou capaz de engendrar imaginei que estaria no trevo da minha cidade natal, justo o mais perigoso de todos, sobre o qual fui repetidamente alertada por mais vezes na vida para ter sempre a atenção redobrada. O meu perigoso portal para o mundo além da BR. Também não alcancei, em imaginação, o fato de que estaria na carona do meu próprio carro. Tampouco que instantes antes Rodrigo e eu nos digladiaríamos tão feiamente com uma pequena aranha descida por uma teia, um pulo mortal ou um voo (essa certamente sabia voar) desde o vão do teto solar fechado. A aranha pulou nele, depois pulou em mim, ficou pairando um pouco no ar, agitei os braços gritando como para espantar urso, aí pulou de novo nele, agora nas costas. Fica parado. De repente eu mato com esta pasta cheia de documentos do inventário da vó Cecília, que tal.
Tamanha a imprevisão das rápidas circunstâncias do destino, as fantasias que eu sempre alimentei não me precaveram sobre ele distraidamente soltar o pé do freio do Cruze no instante em que lhes agredi com a pasta, e então colidir de leve na traseira de uma EcoSport branca que puxava a fila em que éramos os segundos, esperando para cruzar a BR. Como não tenho tesão em me sentir culpada e gosto de me ver — mesmo nas ideias mais longínquas e hipóteses remotas — tendo sempre a razão, nisso, nisso mesmo que aconteceu, eu sinto que mesmo fantasiando muito eu jamais pensaria.
Também não fui capaz de prever dona Rosa. Descendo da EcoSport com suas panturrilhas grossas, envoltas em seu vestido florido de liganete. As sobrancelhas tatuadas, muito pretas e retas, como num desenho animado. A irmã, mais idosa ainda que ela, descendo demorada da carona de bengala, bem devagar, para nos avisar que se ela estava fotografando todos os (poucos) danos e a minha placa tantas vezes, certificando-se de que o celular captou tudo na tela contra o sol, mas sem me responder uma só palavra, não é que ela seja mal educada ou esteja furiosa, como estaria qualquer cara. É que ela é meio surda. Tem que falar bem alto com ela. 
A senhora ME DESCULPE, dona Rosa. FOI UMA ARANHA. EU SEI, dona Rosa, SE CONTAR NINGUÉM ACREDITA. Não, carros como os nossos não morrem. Foi batida. Culpa nossa. Ah, já bateu várias vezes nos últimos tempos, dona Rosa? DESSA VEZ A SENHORA NÃO TEVE CULPA. Da última vez lhe deram o cano? FIQUE TRANQUILA, dona Rosa. Mas será que não foi por causa dessas suas mensagens temporárias do WhatsApp, que fizeram sumir a que o cidadão lhe enviou, assim como sumirão completamente todas as minhas amanhã de manhã? O quê!? Perdeu o marido essa semana, dona Rosa? NÃO ACREDITO! Era ele que dirigia e resolvia as coisas pra senhora? Tá sem cabeça, dona Rosa? Eu imagino. Eu SINTO MUITO, viu? QUE BOM QUE NÃO FOI NADA GRAVE. Tá aqui o meu telefone, sim, sim, deixa que eu salvo no seu, e esse é o endereço DO ESCRITÓRIO ONDE EU TRABALHO. Sim, eu trabalho lá, na mesma cidade que a senhora. Qualquer coisa pode me PROCURAR PESSOALMENTE, viu? TERÇA EU TE CHAMO DE NOVO pra garantir.

"Eu falo sempre por áudio mas você tem que escrever, minha filha. Senão, eu não escuto".

Acredita, dona Rosa, que eu sempre digo que escrevo melhor do que falo? Até prefiro. Não vai compensar acionar o seguro. Contra terceiro não tem franquia, mas aí vai demorar. Tem muita burocracia. Pode escolher a chapeação que a gente paga. Sim, pode esperar seu filho chegar pra ir orçar. Depois me avisa. Sinto muito pela sua perda. Sim, o meu carro também vai precisar de conserto. Não se preocupa, também foi pouquinho. Não vou precisar trocar o farol. Obrigada pela paciência. Não, a senhora não teve culpa. De verdade. Não precisa se desculpar nem dizer que velho é assim mesmo. Eu também faço muito isso de antecipar as coisas, dona Rosa, mas não deixo de me surpreender quando acontecem. A senhora também? Seus métodos preocupativos também não lhe garantem nada? Sua diarista também nunca entende o seu esquema tático da organização das roupas nas prateleiras do armário quando vai guardar passadas? A senhora também já se cansou de fazer coisas grandiosas, com um padrão de exigência altíssimo, e agora quer fazer as coisas pequenosas com atenção nas pessoas e mais gentileza? Dona Rosa, eu sou tão adulta, mas tão adulta já, que ao meio-dia eu vou correr em casa lavar uma maquinada de roupa. Tenho usado camiseta de malha embaixo de blazer. Talvez seja de tênis que eu vou descer na próxima. Mas vou ser mansa como a senhora foi. A vida é cheia de mistérios assim.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Princesa Narcisa

A princesa
no alto da torre
Penteava os cabelos
Enfrentando a um grande
Espelho
Enquant… Oh!
espera.
Ser salva!? Por
Alguém que
Arrombe a porta
Afoito e forte
Aos pontapés e lhe
Alcance
enfim mas só
Após subir
quase ao nível de
Platibanda!?

Penteava os cabelos curtos, na altura dos ombros, como
Para estimular que crescessem
e lhe desembaraçassem
a fuga
e então um dia,
Como em outra estória famosa,
Finalmente
Lançá-los-ia
Trançados
Pela janela pequena
Para fazê-los de escad…
Até que ouviu seu nome:
— Narcisa! — Narcisa!
Umas seis vezes seguidas.
Foi o tempo de um espanto,
e de novo: — Narcisa!

Alguém lhe chama
pelo nome
pela janela ao
pé da torre e não se ouvem
passos.

“Como assim, quer que eu desça!?
E os perigos de ser tão
acessível e
aberta
na travessia
o Corredor-reflexo
dando pra ver
até o caroço
do medo
da queda
mais um tanto
de medo
de ir ao raso
e lá ficar
Não era alguém que subiria me salvar!?”

E ouve outra vez
— Narcisa!
E além do mais
Como abrirá a porta
com esta chave qu…
espera.
Estava
Espetada
na fechadura
do lado de dentro
Esse tempo todo!?

Toma coragem e caminha
Flexionando os calcanhares
Degraus abaixo,
Em direção
Ao nível mais elementar e
Ao longe
Ouve ecoar:
— Narcis… Aaaaah!
‘té me dói o quadril
de tanto correr
pra chegar!
O Príncipe lhe diz, e apressa:
— Desce, princesa atrasada
Espero há cinco e nem
um minuto mais
Se te ocorre mesmo ser salva,
Desce ligeira daí
e experimenta
Ser finalmente feliz
Aqui,
Realizando um
plano horizontal
Onde nos
perderemos
Outras centenas de
vezes de
vista e mesmo assim
voltaremos ao
Encontro
Se formos mais 
a nossa procura
E ao espelho
menos, Narcisa.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Trepadeira

Me vem vivo o momento em que nos entreolhamos, todos sentados no bar, a música acabada, as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos pela metade em cima da mesa. Foi um pouco antes de te dizermos, entrecortando o silêncio constrangedor: nós não sabemos. Ninguém quer começar a responder à tua pergunta e é porque nós não sabemos. É isso mesmo que você ouviu. Desculpe, nós não sabemos. Não sabemos exatamente quais são nossos planos de longo prazo. Lamento desapontar, estamos tão perdidas quanto você, mas cada um a seu modo, e refém (não-refém) de nossas crianças interiores e suas próprias circunstâncias — inventadas ou não, marcando-nos como elas nos marcaram.
De minha parte sempre foi assim, tu sabes. Eu não faço planos longos, a faculdade foi o último deles e sinto que não fui eu quem a sonhei pra mim. Desde então todos os planos me vêm em lampejo e de sobressalto. Até as viagens, entende? Nunca as sonhei tão de véspera para que, fazendo-as, houvesse um único e grande sonho se realizando. Houve satisfação em todas elas, é claro que houve, houve um ar fresco entrando pelos pulmões que me ensinou um punhado de coisas sobre independência e eliminar fronteiras, mas nunca houve a impressão de que aquela era uma meta importante se cumprindo. De minha parte, eu vou vivendo. Vendo no que vai dar. Remoendo — às vezes demais, com todas aquelas teorias mirabolantes que os meus vinte centavos de TCC bem feitinha e psicanálise selvagem me proporcionaram. Falando tanto, tanto. Fazendo muito pouco silêncio. Tu és igual.
Meu maior sonho, me ocorre agora, não exige tanto planejamento, só obstinação, porque é o de preservar o encantamento com as coisas boas mais pequenas e com aquelas que antes pareciam impossíveis e agora são realizáveis. É isso e saber dizer não. São coisas que eu também desejo pra ti, do fundo do meu coração, como se faz com os melhores amigos. Quanto a mim, também facilita muito nunca ter tido a ambição de morar fora: facilita me esconder sob o manto da filha única zelosa e diligente que não o faz só por isso.
Não é só por isso. Sabemos. Era sobre isso que tu querias a resposta, certo? Sobre nossas intenções de desbravar o mundo, já que ele é tão imenso? Sobre por que ainda sentimos que cabemos neste lugar minúsculo, se somos garotas grandes e tão parecidas contigo? Se sentimos algum pertencimento permanecendo aqui?
Pera, eu me sinto no Show do Milhão, só que sem os universitários. E sem as cartas. E sem a ligação para a família. Para ser franca, até sem as quatro ou cinco alternativas para eleger para chutar uma das duas mais prováveis. A vida do adulto não tem quatro ou cinco respostas, amigo. Ela tem sempre mil e uma possibilidades e suas borboletas, com efeitos que vêm muito logo depois das escolhas.
A minha resposta, então, tem de ser assim: discursiva. Deve ser um pouco mais completa. Deve passar pelo fato de que qualquer lugar do mundo vai me exigir o esforço de caber. Caber em mim. Eu sou uma casa tão confortável. Às vezes tão espaçosa. Noutras, como tu também te sentes, eu sou tão apertada que me esforço para que a ansiedade não faça vazarem partes feias de mim pelas janelas do meu corpo afora, para que não machuquem os outros.
Dessa loucura eu sei que conheces bem, o que muito provavelmente é o que fez com que sejamos tão próximos com esta América e este Brasil com S de distâncias. É isso e os sincericídios de não precisar medir as palavras porque o carinho e o afeto se pressupõem, adiantando-se, precipitados, sob o impacto de qualquer verdade dita na lata. "No fim do dia" (ou das tantas horas de voo e escalas até chegar), mesmo sendo dois chatos completos iguaizinhos à mãe da nossa amiga, nós somos mais nós. Ainda é meu o teu primeiro abraço de chegada em casa. É minha, sem precisar pedir, a tua primeira foto do carrossel logo depois das madrinhas. A gente sabe sem precisar dar corda para competições com teus outros amores.
Me perdi em divagações. Vou tentar recapitular a pergunta. Para quem sabe dar uma resposta melhor.
Eu vou ser sempre grata pelo teu olhar generoso e de admiração com os meus compromissos em ser dez com três estrelinhas, mas nem isso é pra mim exatamente um sonho ou uma realização. É antes um riscado traçado. Guardadas as diferenças entre as nossas realidades, é como se nós nunca tivéssemos tido outra opção que não suar muito para fazer a vida mudar, se quiséssemos apenas não repetir tudo. Tu sabes. Talvez um dia eu vire de volta para a estrada da mediocridade e entenda que somos todos iguais, todos especiais, todos tremendamente substituíveis. Que estamos todos no mesmo barco. Sinto que estou cada vez mais perto disso. Já sinto que é hora de remar só com a ponta para não morrer (ou endoidar) afogada de tanto tentar me definir pelo meu trabalho, mas sei que pra ti os anos de workaholic ainda me dão crédito para esta guinada. Viemos de tão perto que isso é sentido nos poros.
Alguns de nós têm vidas mais interessantes, porque se abrem mais. Tu és mais titular desse time do que eu (pega aí essa referência de futebol mesmo sem entender nada). Tu és mais desse time dos vorazes por viver abertos do que eu, mas estou aqui, no banco da reserva, te aplaudindo em nome do espírito de equipe. Te aplaudo enquanto os outros se enclausuram na mesmice do que os "outros outros" vão pensar. E eu os entendo. Não respeito, trabalho para não imitar, mas entendo, porque o interior geográfico modifica o interior da gente.
Só não mais que a sua amizade me modificou. Te juro, conviver contigo mudou tudo. Tenho isso muito claro, vou escrever em seguida para ficar marcado em brasa nessas páginas eletrônicas: sem ti, as coisas para mim seriam muito diferentes. As cercas de preconceito teriam ficado trancadas sem permitir a minha própria saída. A empatia não teria ido até o capítulo dois. Meus medos se acanharam todos diante da tua coragem.
Deve ser por isso que o teu grande sonho sempre foi chegar na maior metrópole do maior lugar do planeta que conhecemos e aí abrir bem as asas. Depois fechá-las para refletir um pouco sobre compromisso em relacionamentos ou riquezas além da conta em certas coberturas de Ipanema. O pacote da vida vem com todas as renúncias e engessamentos sim, meu amor. Várias delas, vários deles. Mas sinto (e torço que às vezes venhas a sentir também) que a gente cresce nos desafios da convivência a dois, nos pontos de contato, nas faíscas, na determinação em ter com um outro eleito para ser nosso quem sabe o mesmo respeito incondicional e dedicação gigante que nutrimos pelos amigos. Sim, vamos ter que antes dissolver as expectativas. Não dá pra ganhar todas.
Essa procura por sentido e por respostas, que eu sei que só estás sentindo por já ter sentido muito e um pouco de tudo, olhando daqui, do meu lugar de tua amiga 30+, parece fundamental para o processo de amadurecimento. Esta busca é tudo com o que podemos nos comprometer até que o sentido da vida mude outra vez. A experimentação de tanto mundo, de tanto sexo, de tantas liberdades e de tantas desigualdades sociais nos últimos tempos nunca mais vai deixar de existir para ti. Espreme bem o que sobrou desse caldo de frutas tropicais e faz um suco de aprendizado à tua maneira, como foi sempre até aqui. Bebo contigo, problematizo contigo, saio mais forte contigo.
As crianças do João e Maria acabaram de sair barulhentas para o pátio aqui na frente do escritório. Minhas janelas estão todas abertas e entrou por elas o pensamento de que nós dois seremos sempre um pouco como estas crianças. Ansiosos pela hora do recreio, para dar uns berros, soltar os bichos, ser mais nós mesmos. Neste intervalo, também cresceremos. Eventualmente, depois, voltaremos de novo para a casinha, onde haverá alguma ordem. E sempre, sempre, bons amigos. Capazes de nos provar que, só por sermos de verdade, mesmo um pouco perdidos, oscilantes e tão inquietos, nunca estaremos sós neste mundo. Voltaremos de tempos em tempos: a enlouquecer, mas também ao abraço no mercado da chegada, às comemorações na Lagoa do teu aniversário, a estarmos todos sentados no bar, a música acabada (depois de você tirar a regata e o segurança mandar pôr de novo), as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos — meio cheios — em cima da mesa. Nós também meio cheios das nossas perguntas que o mundo ainda não respondeu. Juntos, mesmo sem entender tudo.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Zeitgeist

Sou uma Lila às avessas, você sabe: eu quero escrever para durar além de mim e não passar batido. Voltar e ler a captura de um momento exato em que tudo pareceu mais leve porque você estava. Você
que já me enxergava antes de eu estar totalmente a descoberto. Você que desvia de todos os caminhos da presunção e admira a poesia concreta. Contida não em palavras e sim nas escolhas, nas certezas, nas constâncias, nos gestos. Nosso amor é esse livro que escolhemos ler antes dos outros apesar de todas as bibliotecas que por isso permanecerão intocadas. Amar você me orienta. Arrisco em dizer que me orienta até mais quando é difícil. Porque talvez a maior lição da minha vida seja aprender a persistir
no acerto
até quando ele me desconforta. E você é um acerto dos grandes. Um equilíbrio de doçura e dureza, mas sobretudo de disponibilidade e cuidado com o que é frágil de mim. Se minha boca adormece, meu coração palpita ou minha náusea embrulha, num gesto íntimo você me desculpa pelo trabalho que eu dou ao trocarmos a direção me dizendo: Ana, a ansiedade é um zeitgeist.
E sei que porque eu caminho contigo às vezes sinto essa impressão de que estou a salvo. Que só divergimos no superficial e que concordamos no fundamental. E isso é tão raro, amor. Atravessar a vida com essa certeza é de uma raridade raríssima, pleonástica, superlativa, e você me empresta ela um pouco mais a cada vez que fazemos o caminho de volta para os braços um do outro depois das dúvidas e dos problemas que até então não tínhamos.
Você me alcança com palavras que nunca tinham tocado antes: diz “progressivo”; “psicodélico”; “experimental”; e eu me alegro de pensar no quanto ainda tenho para ser descoberto, e me dá também uma vaidade alegre imaginar as coisas que te alcancei e apresentei primeiro, por menores que sejam, e aí esta outra coisa a que se pode chamar um encontro ganha contornos de mistério em como por que é que eu encostei no pendrive de um cabeludo tímido na frente do bar e perguntei: o que é isso? E ri ainda sem saber ali que depois nossas vidas seriam entrelaçadas tão significativamente.
Você me toca. Ser tocada por ti me comove. Te enxergar inteiro é um exercício que vai durar pra mim. Como durarão também estas declarações de amor: um retrato fiel do que a gente é capaz de fazer enquanto o mundo lá fora pode nos torcer, caótico, e estar prestes a explodir em calor, guerra ou crenças mirabolantes. Tendo a difícil paciência mansa de se amar com insistência, se encaixar até caber, entregar tudo, curar onde dói.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Coca Zero


A diarista dizendo que ela quer sim frequentar o colégio por nove anos seguidos na próxima encarnação porque nessa não deu
A caixa do supermercado curiosa com os produtos que lhe chegam para bipar
O ranho que escorre do nariz mesmo chorando bonito
O ciclo da água, os rios voadores e o funcionamento da bomba biótica (pifando
A Linha do Equador batizada antes do país pois é um Circulus aequator diei et noctis
O órgão de uma pessoa que vive dentro de outra quando transplantado
A mulher que revira a Bíblia até encontrar um nome próprio exótico para dar ao filho sem saber pronunciá-lo
O filho no colégio, indignado, virando um cientista ateu
A vinheta da Globo que há muito nos avisa que o futuro já começou
Esta madeira frágil que pregamos na entrada da toca do coelho de Alice

Um saber que vira hábito
O hábito que vira costume
O costume que vira terça-feira
As terças-feiras que são sempre as mesmas
Poderiam bem não ser
E ter outro gosto

Não escrevo mais para saber onde vai dar, senão para dar em algo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Mestre mandou

Há dois dias eu tomo um copo d'água em jejum porque me mandaram. A água de tacada só me repugna como se o estômago lutasse contra. Vez ou outra eu sei que a água da manhã vai ser a água que sobrou da noite quando não acordei nenhuma vez com a garganta seca de respirar pela boca. Uma água-ambiente, com a energia dos meus pesadelos e tudo. Eu acho até que sempre tive sede quando acordo mas jamais me ocorreria — sem que mandassem, agora me mandaram — despejar 200ml de nada em líquido em jejum pra dentro só pra lubrificar as engrenagens do fígado ou do intestino, preparando terreno.
Só depois uma receita: ou a que finge ser pão de queijo, ou dois ovos em qualquer textura já que são ricos em proteínas (mas sem o tempero pronto cheio de glutamato, hein?). E pão agora só se for aquele com o nome que parece saído de uma missa católica, que o outro é quase um pecado capital. E chia. Gergelim eu me recuso, que eu não sou passarinho pra comer alpiste, então a loja de produtos naturais pela primeira vez me ouviu dizer meio tímida: e chia, tens? Sim, quero chia e chá de cavalinha. Também aquele novo do Harry Potter: Chia & a espinheira santa. Quanto de chia? Ah, muita chia, querida. Chia de balde. Chia no crédito. Chia parcelada em vezes. Chiar tá liberado, para a sorte das panelas de pressão.
Na hora de me servir pro almoço eu volto, meio envergonhada e meio prudente, a abrir a pasta de documentos onde estão as folhas timbradas, carimbadas e rubricadas com todas as minuciosas recomendações de quem paguei pra que acreditasse em mim e nos meus progressos e, por que não dizer, na minha mudança radical à base de fiscalização. Vou conferir quanto era mesmo que eu devia comer de carboidrato, quais folhas verdes seguirei negligenciando porque não fui ao mercado ou acho o gosto muito amargo (só não mais que esse café necessariamente preto porque leite vegetal está pela hora da morte) e qual é mesmo, afinal, o tamanho de uma colher-de-servir? Deve ser essa, eu não tenho outra aqui em casa.
Fim da tarde a maçã na temperatura de geladeira acompanha as o-le-a-gi-no-sas. Parece nome de infecção de IST, percebe? Mas é só um punhado de castanhas mistas que se rompem num crec crec entre os dentes com a pecha de gordura boa no meio do dia. Creio eu que se potencializam. Os ovinhos de codorna eu gosto mais, mas ainda não tentei porque passá-los em água corrente antes de por na boca parece um ultraje a todas as tradições milenares da conserva. Fora o cheiro de lancheira.
A tal versão Orgulho da Nutri, fadada a não durar pra ninguém desde que o mundo é mundo, porque o que dura mesmo é o costume, talvez me ensine pelo menos a ser naturalmente(?!) um pouco mais obediente. A fazer o certo mesmo querendo fazer errado. A temer a mão firme das calorias da tabela nutricional pesando sobre a minha cabeça, apertando o resto do corpo e as recentes dobras de IMC 30+, se fizer a conta da bioimpedância. Disciplina? Agora só se for cozida só no sal ou grelhada com um fiozinho de nada de azeite de oliva. Ou polvilhada com um pouco de farelo integral, que é pra dar uma variada.
Como então eu poderia contar à moça magra tão sorridente e tão saudável do outro lado da mesa a minha verdade suprema do sugar high? Esporádicos cookies de nutella fazem mais por mim que muita gente do meu cotidiano. Às vezes o açúcar deles me desencadeia um mini episódio de mania que dura minutos. Minutos pleníssimos de significado. Olhando daqui talvez ela só finja que não sabe, para ficar bem na personagem, mas eu vou fingir que acredito no exemplo e assim seguimos o nosso ciclo de repetir a falsidade até que se torne verdadeira.
Ensaiei um elogio para os miúdos que já têm isso por hábito desde que nasceram mas ficou muito pesado no ar o fato de que lá em casa a base de todas as refeições, todas mesmo, não era um terço de hortaliça (a que sou negada), e sim nata. Sempre foi nata. Nata de potinho. Uns dois potinhos por semana. O slogan do cheff, pintado à mão na cerâmica dos pratos fartos de friturinhas em óleo de soja, dizia (e ainda diz): Taca-lhe Graxa. No subtexto, arredondado: "a gastrite depois a gente vê".
O exercício de ter que segurar fixas as pelotas dos olhos ao ouvir o adjetivo "integrativa" na mesma frase que as palavras "desinflamação do corpo" deve ser um ritual de entrada nesta missão atroz a que me submeti fundindo a crença em um pouco mais de saúde com o poder avassalador — e mendigo, miserável, sofredor, um coitado invisível — do novo hábito.
Afinal de contas que argumentos científicos eu tenho contra o fato de que somos os únicos animais que bebem leite depois de adultos e ainda nem é da nossa própria mãe, e ainda nem é da nossa própria espécie, e além disso os bezerros foram fabricados com umas bactérias para digerir e nós somos fabricados sem, etcetera? Nenhum, nenhum mesmo. Eu só tenho o apreço pelos derivados e um sonho.
Quer dizer, agora tenho também o inferno que eu fui buscar com as próprias pernas naquele consultório: a obrigação de me provar que se eu quiser mudar, eu posso. Vou ter que apagar o Taca-lhe Graxa da louça toda sabe-se lá com que produto químico e pintar no lugar: Foco no plano.
Hoje já foi um litro e meio.
Carrego a garrafa como o alcoólico anônimo carregaria uma medalha que diz: e já faz dois dias.
Entrarei no carro para fazer roncar o motor silencioso no caminho para a academia sem roncar mais, em borborigmos, aquele estômago de capivara raivosa que eu tinha antes. O Mick Jagger — com sua dieta excêntrica de famoso — me embalará, compadecido e meio sexy, repetindo muitas vezes, no timbre carregado de solidariedade: Old Habits Die Hard.