terça-feira, 30 de novembro de 2021
Eco [22]
terça-feira, 26 de outubro de 2021
Um pé no atraso
Eu tenho um pé no atraso. Descobri depois de muito refletir tentando entender de onde vem essa minha sensação de inveja e ódio com a modernidade que eu vejo nos outros. Não significa dizer que eu não seja também muito moderna, por outro lado, até porque me sobra um outro pé. Nem é que eu não saiba idealizar um futuro onde seremos todos livres para usar franjas curtíssimas e cabelos coloridos, ou piercings, ou drogas, ou camisetas largas como roupas de domingo. Talvez viremos veganos todos de uma vez. Quem sabe publiquemos fotos de biquíni o inverno todo. Tudo muito sem tabu. Ou até adiramos à abertura dos nossos relacionamentos num grande evento universal para louvar a liberdade - sempre ela, o signo mor da modernidade. Mas o problema é que eu ainda tenho um pé no atraso. Sempre que lembro disso me dói um pouco a panturrilha, de tanto esforço para tocar menos no chão.
Não é que eu me envergonhe. Não é só sobre de onde eu vim, também. É que eu sou um pouco má. Um pouco retrógrada por natureza. Eu diria "retrô", mas isso é coisa de gente full moderna. Do tipo das que misturam português e inglês na mesma frase.
Às vezes me vejo assim mesquinha e careta e aí vou logo sabendo que estou atrasada. Que falta sempre dar um passo seguinte no caminho da modernidade. E que ele talvez nunca chegue. Outras vezes eu me sinto muito moderna mas me sinto tomada de uma necessidade de me atrasar para entrar no compasso ao redor. E aí volto a ponta do pé para a zona confortável do atraso. Porque às vezes ter um pé no atraso não é sobre a gente escolher pisar com ele em algum lugar, mas ter que pisar em algum lugar. Eu tenho um pé no atraso e talvez isso explique o meu fascínio com quem aprendeu a desafiar a gravidade. As coisas que são assim desde que o mundo é mundo impõem uma certa resistência gravitacional para contê-las.
Seja como for, eu tenho um pé no atraso. É bom que esteja dito. Só quando os modernos de hoje estiverem fazendo o caminho de volta é que a moderna serei eu.
sexta-feira, 30 de julho de 2021
Variantes
terça-feira, 20 de julho de 2021
Alegoria
quinta-feira, 15 de julho de 2021
Posta-restante
Ainda há o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil. Uma sensação antiga: poodle raivoso atrás da porta. Ossos contra ossos. O beijo do Klimt. Chão de taco. Grandes rodoviárias. Pequenos silêncios que devolvem o controle. Mentiras deslavadas. São imprevistos proibidos feito zonas radioativas. Porque evocam uma melancolia subterrânea como se o passado ficasse umas quatro camadas debaixo dos pés. Volto para juntar os farelos como quem desce um túnel com uma escada em espiral até o que é profundo. Quero estar de volta nesse ar escasso e úmido. O mesmo das covas, das cavidades e das alcovas. Quero me lembrar do que fazia ficar depois de tanto insistir para não esquecer do que fez partir. No dia a dia aquela coisa quase me escapa. Quando volto para ela, oca como agora, amaldiçoo ter gasto as minhas energias mais frescas e vivas naquele período. Depois amaldiçoo a coisa ter ficado oca. Sem recheio ou substância. Sem um vestígio sequer que não o vazio protegido por uma redoma, e que se esfarela de vez em quando. Ainda me espanta que haja o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil, como um gatilho. E as partículas voando soltas. Minúsculas. Quânticas. Vivas. Tendo que ser recolhidas de novo. Ainda me espanta que tanta coisa aqui passou e aquela coisa oca fica.
quarta-feira, 28 de abril de 2021
No que pensa quem não fala
segunda-feira, 15 de março de 2021
Escrevo para não morrer
Escrevo para não morrer. Desde que tenho lembrança, escrevo para que as palavras não me afoguem ou sufoquem e eu seja capaz de respirar alguma normalidade depois de por o amargo pra fora através da escrita. Escrever virou uma parte importante da minha profissão e, talvez por coincidência, eu também escrevo as dores dos outros para sobreviver. Para que sobrevivam. Eu me concentro escrevendo porque é assim que comunico melhor ao mundo todas as coisas, inclusive as mais íntimas. Inclusive minha vontade de viver. Escrevo para me manter viva. E porque nunca me senti preparada para lidar com a morte. Tanto a ponto de evitar funerais para evitar a certeza de que a vida acaba, quer tenhamos feito nossa parte para melhorar o mundo ou não, e para evitar o sofrimento que a ideia da morte me causa. Mas mesmo assim tenho me sentido triste (eu diria deprimida até, não fosse a falta de diagnóstico) num nível muito mais profundo do que consigo dizer em voz alta. E me sinto triste, especialmente, porque tenho evitado dizer como me sinto. Com medo de quem pensa diferente de mim hostilizar o modo e as razões pelas quais eu me sinto como eu me sinto. Como inclusive já aconteceu, várias vezes. Eu fui me calando e agora é como se ouvisse muito altos os gritos do absurdo para que minha voz pudesse se opor a eles. Ao meu redor é como se a pluralidade parecesse ser cada vez menos tolerada. Gradualmente. Sem que ninguém que pense diferente de mim se dê conta. E aos poucos muita gente que pensa como eu também se cala: para não ser condutor de ódio e se confundir com o que gostaria de combater, imagino eu. Para evitar o conflito. Para - na pior das hipóteses - não ser perseguido agora ou mais tarde, quando as pessoas perderem de vez o pudor de institucionalizar a morte como a melhor saída para o que é diferente. Se é que já não perderam. Hoje é segunda-feira. Escrevo só porque ainda posso. Porque o medo e o pavor que eu sinto não parecem nada com liberdade. Para não morrer sufocada. E mesmo assim eu morro, todo dia um pouco, quando me calo. Todo dia eu morro, por sentença de morte assinada por mim mesma, ao fechar os olhos numa espécie de conivência que eu nunca quis ter. Todo dia eu morro caminhando para o que é extremo sem querer, acotovelada por quem se sente livre - sabe-se lá até quando.