segunda-feira, 23 de março de 2020

Quarentena

Tem um bicho lá fora. Gigante. E mesmo quando cada pessoa adormece, ele vive. Até três dias em superfícies metálicas. Nas notas de dinheiro. Por fora das luvas e máscaras. Dentro dos pulmões.
Eu gostaria de pertencer àquele grupo otimista e eleito para espalhar sublimação. Dos que escrevem ou republicam só mensagens motivacionais nestes tempos. Mensagens novas ou antigas passadas adiante, com uma demão de verniz. Vi coisa linda por aí. Brilhando encorajamento. Mas não estou conseguindo me distrair por completo. Meus pensamentos não são tão puros. Tenho oscilado bastante neste sentido. Até as mensagens mais bonitas que me tocam não me deixam esquecer essa dorzinha de garganta, um nó que vem não sei de onde. Que piora um pouco quando penso no que ainda vamos viver nos próximos meses. Porque tem um bicho lá fora. Sem tamanho. Invisível, menor que uma célula. Capaz de reavivar depressão, ansiedade, as piores teorias conspiratórias de todas. E muito medo também. Capaz de fazer morrer por muitos minutos no dia aquela parte da gente que consegue sentir o sol na pele e reacender pra animar uns aos outros. Pra cuidar uns dos outros. É muito mais difícil se distrair sem poder abraçar quem a gente ama. Sem poder rir o tempo todo, porque rolando o feed inevitavelmente esbarraremos nas estatísticas e projeções. Ou ficaremos ansiosos por elas. E fica ainda mais difícil sem ligar a TV. Sabendo que a novela vai ser suspensa. E os contratos de trabalho, também. Quanto desespero esse bicho trouxe, quanta fome ele pode trazer. Por que é que não nos contam tudo? Por que é que não nos contam as coisas mais devagar? Então quer dizer que o bicho entrou pelas frestas da nossa humanidade? Falhamos ou mostraremos só agora o nosso melhor? Que forte e assustador se dar conta de que cada um está reagindo o melhor que pode e que, no mais das vezes, não tem bastado. Não o tempo todo. Há sempre filhos longe dos pais, há sempre a beira da morte, há sempre a desigualdade de quem pode e quem não pode comprar álcool gel. Há sempre gente do alto escalão negociando com as vidas da gente. Pensando primeiro no lucro. Mas esse bicho nos joga todas estas verdades no colo de uma vez só. E faz com que tenhamos que lidar com elas. Dentro de casa. Dentro do peito. Tudo de uma vez. Ele não permite esquecê-las por um dia inteiro, quiçá sair pela porta afora para tomar um ar. Até no ar ele está. A gente abre as cortinas e, por trás das nossas janelas, existe uma ameaça tremenda. Eu só espero que todos estes sentimentos que nos põem alerta também acelerem nossos mecanismos de defesa. E se não pudermos sair ilesos, que haja conforto ao lembrar que sairemos um pouco mais imunes.

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