quinta-feira, 5 de março de 2020

Eco [16]

Desistir de você foi a causa de grande parte dos meus progressos na vida e o motivo de quase todas as minhas derrotas. Digo: você. Sem referências cruzadas ou meias palavras dessa vez. Porque você nunca vai saber. Das vezes que eu quis cortar o cabelo. Trocar de emprego. Emagrecer. Coisas mesmo impensáveis. Coisas incompreensíveis como o barulho que os vizinhos do apartamento de cima estão fazendo agora e não consigo identificar o que tanto arrastam ou onde estão batendo. Tenho, também eu, alguma dificuldade em descobrir onde você me bate. Se é no dedo do pé ou na consciência. Se é na boca do estômago. Acho agora que é no baço, aquele órgão que descobri outro dia que ajuda na imunidade da gente. Ou no apêndice? Vesícula? Pra que zelar pelo que não serve pra quase nada? Temo que nunca saberei. E que sempre sucumbirei à comparação da ideia que me ficou marcada de você na memória, como uma musa inspiradora dessas que os grandes artistas tinham. Tenho pra mim muito claro que nenhuma musa é, na prática, tão incrível assim quanto a ideia que conservamos dela. Mas se eu nem sei onde ainda me bate, não posso dizer o mesmo sobre onde ainda me dói. É uma dor mansinha, mas mnemônica. Associada a dores mais simples e acessíveis. Que só emerge quando estou incrivelmente só com essa sensação de não pertencer. Que faz lembrar que, apesar de agora ser muito depois, nunca mais eu viverei antes de você.

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