quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Escovar os dentes

Já faz um tempo que eu tenho sentido um gosto azedo no fundo da garganta, como se houvesse leite e ácido sulfúrico fermentando em algum lugar entre as paredes do meu pescoço e as minhas cordas vocais. Temperando o que eu digo, mas mais ainda o que eu penso. Há sempre um retrogosto amargo envolvido neste processo, que vem e volta como se as minhas entranhas estivessem meio que... em decomposição. Este exagero na metáfora me parece adequado, e isso já diz bastante sobre como tenho me sentido enquanto reviso e reavalio todo o dia e os traumas que sofri e espalhei desde 1993 no meio de qualquer momento. Não adianta muito escovar os dentes, porque esse cheiro e esse gosto impregnaram também na parte de trás da minha língua, que eu não alcanço com a escova sem fazer ânsia de vômito nem sob tortura. Ou melhor: sob tortura. Autoinfligida todas as manhãs, depois do almoço e, com sorte, antes de dormir. Um jeito novo de saborear o mundo. Notas de fel misturadas com creme dental. Sempre tendo que me lembrar do bom que as situações tiveram e trouxeram, constantemente tentando reprogramar o cérebro para voltar a enxergar a cor viva que pode reluzir das coisas. Esse incômodo me volta todos os dias em pequenos goles de ar que são devolvidos de algum lugar de dentro do meu corpo (não sei se o estômago, o apêndice, o umbigo ou o dedo do pé) pra dentro da minha boca. Infectando a minha cabeça inteira. Eu pagaria dinheiro para uma cirurgia particular de remoção desses pensamentos intrusivos da cabeça - mas, sabemos, dinheiro não vai resolver. Se fosse só o refluxo, eu deveria apenas tomar menos café, me alimentar melhor, dormir mais cedo e fazer exercício. Se não, talvez deva começar a fumar. Pra que o pulmão, as mãos e os cabelos comecem a combinar com o resto. Bobagem? Eu sei. Mas não tem feito efeito simplesmente ignorar. Eu tenho sentido uma dor no peito que talvez venha de tanto eu tentar abraçar o mundo. Segurar o mundo. Conter o mundo. Cumprir o mundo. Minhas duas mãos dão a volta apertadas contra o meu corpo inteiro. E depois me seguram invisíveis bem no vão entre o osso que abraça o coração e a prótese de silicone. E me paralisam de dentro pra fora. Eu respiro fundo para me acalmar, o aperto piora. Aí parece que a caixa torácica desaprendeu a expandir e quer ficar cada vez menor, uma camada por dentro da outra até quase não dar pra ver, feito boneca russa. Então me vem à mente o conselho de respirar, nem que seja de um jeito curto, em 3 tempos, prender outros 3 e soltar lenta todos os 6. Consigo fazer essa sequência de respiração duas vezes e meia até que o peito volte a doer de novo. Se é que ele tinha parado. Mas nem só de angústia a vida é feita. Quando vivo um momento feliz, embora a coisa toda esteja embotada pela lembrança ultra presente deste gosto, não me basta desejar congelar o momento como quem possa invocá-lo para amenizar o clima de quando o mundo parece derreter ao meu redor. Eu torço sinceramente que isso passe. Eu agradeço a cada recurso e ferramenta que me foram apresentados nesta vida. Até aqueles que eu fui parando de usar, como escrever. A minha cabeça está acelerada de um jeito que eu não pensei que uma cabeça pudesse acelerar. Torço que alguém suspeite com a falta de maquiagem. Com as piadas inapropriadas. Com a demonstração de uma consciência de que tem gente muito pior sorrindo mais. Com o cabelo sem lavar. Torço que alguém suspeite como se, suspeitando, alguém pudesse sugar toda essa sensação ruim de dentro de mim com algo como um aspirador de pó, vasculhando cada um desses tantos cantos sujos enquanto vou deixando de me sentir áspera, indigesta, irritada, inerte. E bom dia novamente. Tomar banho. Escovar os dentes.

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