sexta-feira, 17 de abril de 2020

Para ser dito e sangrado

Sangrei. Sangrei como se sangra no início dos ciclos, sabendo que eles pressupõem o fim de uma possibilidade fecunda. Eu tenho agora só um silêncio mútuo, que vai abrindo espaço para tentar reorganizar a importância do que não foi dito pessoalmente e de tudo aquilo ao que a gente se apega sobre as falhas do outro, para tentar perdoar as próprias. Tenho uma dor calma e constante embrulhando a lembrança daquele toque leve da mão nas costas depois de acordar. Era carinho. Cuidado. O último suspiro. E também um adeus. Mas só eu suspeitava. Eu tenho guardada a impressão dos lábios parados recebendo um beijo que pretendia a normalidade. Como se a minha boca estivesse petrificada de uma certeza infinita de viver o fim. Como se eu tivesse absorvido um jeito de reagir que não era meu, com resignação, para comunicar a mensagem na língua adequada. Sangrei ali a tristeza de não corresponder às expectativas. Sangrei minha incapacidade de negar e de lutar contra o desespero crescente dentro do meu peito. Pensei coisas que, com razão, não pude dizer. Disse coisas que não completam o quebra-cabeça, porque me sobram peças. No fim, eu tenho a impressão de que sempre me sobraram. Há mais em mim para ser dito e sangrado do que qualquer idioma consegue alcançar.

Nenhum comentário: