terça-feira, 21 de abril de 2020

O gato no retrato

Não quero pedir desculpas
pela pressa
ou pela bagunça
Não quero me arrepender
de ter uma urgência de tudo
Não quero fingir
Que sinto pouco
Parcelado em vezes

Deus me livre encolher
ou ser mastigada
Eu exijo não ser
Um artifício
A serviço do orgulho
como é o gato
naquele retrato

Ando boa pessoa.
Pergunte à manicure
Ou à diarista
É como se a caridade em silêncio
(que me ensinou o meu pai)
Pudesse me redimir desta outra
Cínica
Que também sou eu
E que sabe fazer mais mal
Para si
Do que para os outros

Não tenho sorrido por baixo da máscara
Sequer tenho comido direito
Não tenho tanta certeza assim de que vá passar
E logo
tão logo organize o que dizer
Mando novas notícias
Por enquanto
Sei o que não quero
Não quero fingir
Que sinto pouco

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Para ser dito e sangrado

Sangrei. Sangrei como se sangra no início dos ciclos, sabendo que eles pressupõem o fim de uma possibilidade fecunda. Eu tenho agora só um silêncio mútuo, que vai abrindo espaço para tentar reorganizar a importância do que não foi dito pessoalmente e de tudo aquilo ao que a gente se apega sobre as falhas do outro, para tentar perdoar as próprias. Tenho uma dor calma e constante embrulhando a lembrança daquele toque leve da mão nas costas depois de acordar. Era carinho. Cuidado. O último suspiro. E também um adeus. Mas só eu suspeitava. Eu tenho guardada a impressão dos lábios parados recebendo um beijo que pretendia a normalidade. Como se a minha boca estivesse petrificada de uma certeza infinita de viver o fim. Como se eu tivesse absorvido um jeito de reagir que não era meu, com resignação, para comunicar a mensagem na língua adequada. Sangrei ali a tristeza de não corresponder às expectativas. Sangrei minha incapacidade de negar e de lutar contra o desespero crescente dentro do meu peito. Pensei coisas que, com razão, não pude dizer. Disse coisas que não completam o quebra-cabeça, porque me sobram peças. No fim, eu tenho a impressão de que sempre me sobraram. Há mais em mim para ser dito e sangrado do que qualquer idioma consegue alcançar.