terça-feira, 14 de maio de 2019

Demora em mim

Do tempo que havia um silêncio grudado na boca pra falar de amor. Que eu fazia de conta que não soubesse que dá pra sentir saudade já na presença, e teimava em não sucumbir de idolatria no nosso jeito (sem par, de tão junto, desde o início). Que eu fingia não enxergar o perdão inteiro que se anunciou no reencontro, eu que tive sempre ótima memória. E de nada, nada, nada me valia sem teu traço firme e teu riso largo pra vir à lembrança.
Que dizer agora, que a palavra é fluida? Que o tempo, o desejo, essa mágica - tudo cabe - me mudaram. Mudei eu, e me declaro. Confesso o amor e os pecados sem medo. Visto a camisa. E publico a minha confiança no que sou, és e seremos. Caminha comigo? Vamos juntos. Eu me digo e te bendigo. Faço prece: gasta a pressa com o resto da vida e demora em mim.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Queimada

Relacionar-se é transitar, sempre perigosamente, entre um terreno que é próprio e outro que não é. É lúdico imaginar que estamos num jogo de queimada, mas nem sempre convém arremessar a bola para derrubar o que nos parece ruim ou uma ameaça do outro lado. É preciso saltitar entre as metades deste salão com passos de um ballet bem pensado e na ponta dos pés, arriscando a estadia num território no qual você é convidado para estar ou chega de surpresa. Sempre como visita. O mundo pode ser todo seu, mas é melhor não abusar. Não dá para fazer e acontecer fora de casa. É preciso descalçar os sapatos e respeitar os objetos espalhados pelo chão da casa alheia. Tudo no campo do outro também é particular e sagrado, um pouco estrangeiro, desconhecido, e vez ou outra até inóspito. Tudo está ali por um motivo. E é assim que deve ser, para que ninguém se perca pelo caminho. Ninguém nasceu ontem ou no dia que nos conheceu. Não adianta ir arrancando o que parece erva daninha do chão com toda força, mudando os móveis de lugar, varrendo a poeira fina que ficou a pretexto de fazer uma faxina necessária. E tem ainda aquele papo de Clarice: a gente nunca sabe qual o defeito que sustenta o edifício inteiro. Não se recomenda apontar o dedo na cara, explicando presunçosamente como a vida e a organização do ambiente funcionam. Porque cada templo é cada templo, e se organiza à sua maneira, no seu próprio tempo. É preciso tomar tanto cuidado para não impor as próprias verdades! Para não tentar domar ninguém nas nossas regras. Para não colonizar o outro. Para não colocá-lo ao nosso serviço. Estamos todos atravessando um processo de encontrar a melhor versão de si mesmos, aprendendo a enfeitar e arrumar o nosso espaço. Nem sempre queremos ajuda. Nem sempre estamos dispostos à catequização. Nem sempre precisamos. Há que se ter paciência: para o bem ou para o mal, ninguém volta igual depois de atravessar a fronteira.