terça-feira, 19 de julho de 2016

Eco [7]

Há pelo menos outros seis ecos antes deste.
Clique se quiser ler o primeiro, segundo, terceiro, quartoquinto e sexto.

Meus amigos se queixam, com textos compartilhados no Facebook e nas mesas de bar em geral, da cobrança direcionada a nós, todos os caras de vinte e tantos. Da "obrigação social" excruciante de estar formado numa faculdade com um histórico escolar mais ou menos acima da média, ter o início de uma carreira, uma área de atuação definida, o limite razoável do que se pode chamar de sucesso. E dinheiro, é claro. Dinheiro pra tudo, tempo pra tudo e disposição pra tudo. O fardo de ser bem querido, bem articulado, reconhecido. O quanto pesa a expectativa. O quanto bate vontade de largar tudo e fazer um mochilão pela Europa, pela América Latina, sair pedalando sem rumo por aí, ou tocando violão, vivendo da arte e sem amarras.
Entendo, sou até bem sensível aos apelos da minha geração, mas padeço de um mal de outra ordem.
Eu faço parte daquela parcela de caras que, aos vinte e tantos, por qualquer razão, já se encontrou na vida. Não por um mero acaso, sorte, força divina ou coisa que o valha. E não por mérito próprio pura e simplesmente. Um conjunto de ocasiões que pode não ter ocorrido a outras pessoas, e que aproveitei da forma certa, quem sabe. Enfim, como disse, por qualquer motivo aleatório bem combinado com outros motivos aleatórios que poderiam ter sido diferentes. E de fato foram, pra outras pessoas. Eu faço parte daquela parcela de caras que já não tem sobre os ombros o receio de desapontar as pessoas, de morar embaixo da ponte ou de não sentir o cheiro dos louros da vitória. Já venci uma parte das metas que passei a vida inteira ouvindo que deveria vencer.
Não me cabe a causa do adolescente rebelde, da luta contra o sistema capitalista opressor que nos obriga a acumular dinheiro. Não sinto a amarra dos grilhões da expectativa. Sei, conscientemente, que não se vive de vento, que o trabalho dignifica o homem e que não há nada de mau em ter algum dinheiro guardado no banco por previdência. Não me atinge de todo esse impulso jovial, quase pueril, de querer largar tudo, senão por enfado. Não me custa cumprir as tarefas que a sociedade me incumbe de ter, porque até que gosto delas, sabe? Acordo, escovo os dentes e vou pro trabalho. Ganho uma grana no fim do mês, compro comida, viajo de vez em quando.
Sou adulto, saudável, pago as minhas contas, sou querido pelos meus amigos e, não raro, por mulheres interessantes. Troquei de apartamento recentemente, e tudo vai indo bem. O meu emprego me realiza. Realiza o cara empreendedor que eu era na faculdade. Realiza o que a minha família podia esperar de mim. E me dá dinheiro, não muito para ser rico ou ter uma casa na praia, mas o suficiente pra me possibilitar uma série de outras coisas que também me realizam. Eu tenho um carro confortável que me leva a todos os lugares, e há muito eu aprendi que ele não precisava ser importado.
Resumindo, eu tenho tudo e não me contento. Tudo, tudo, não, mas o suficiente para fazer a família orgulhosa e a avó não clamar muito por netos. Meu chefe não exige mais do que produzo e meus professores do colégio, se hoje me vissem, poriam meu nome na lista dos que deram certo (especialmente considerando que formaram donos de multinacionais, médicos, encanadores, advogados, jornalistas, vendedores no farol, desempregados convictos e traficantes).
Outro dia me abordou uma senhora na rua pra pregar a palavra com um livreto desses evangélicos falando em "estafa", palavra que eu não lembro de ter lido em nenhum outro lugar antes e depois vim a saber que pode ser inclusive um estado clínico. Falava que, pra gente se curar da estafa - uma espécie de estado letárgico onde nada mais anima ou entusiasma - só indo à igreja e fazendo o bem pras pessoas sinceramente. Fazer o bem, vá lá. Mas sejamos francos, não dá pra fazer o bem todo dia. E ir à igreja definitivamente não é pra mim, por isso na época acabei me conformando com a minha estafa esporádica.
Mas então eu me dei conta, relendo os últimos escritos e me debruçando na análise da minha própria vida, que quase sempre eu faço drama pra evitar o tédio. Sim, drama pra evitar o tédio. Aqueles momentos em que conscientemente você supervaloriza um pé na bunda corriqueiro, como vem sendo com a Laura, por exemplo. Em que você romantiza uma história que é apenas mais uma história. Em que se concentra demais na suposta sobrecarga de trabalho (veja só, em tempos de crise econômica, já fui capaz de reclamar do excesso de trabalho só pra ter o que falar nos aglomerados de pessoas), no preço do feijão (mesmo podendo comer feijão a semana inteira sem me privar dos outros pequenos luxos, se fosse da minha vontade), numa traição... Estas coisas que não levam a nada e só servem mesmo pra gente não se dar conta do quanto está "estafado" com a própria vida.
Não me entenda mal. Eu sou, de modo geral, feliz pra caralho. Só que caber demais no padrão em tantos segmentos me deixa com um pé atrás em relação ao que já conquistei. Era tudo aquilo o que me diziam, a "vida financeiramente estável" e a "satisfação pessoal e profissional"? Temo que não, embora tanto pior sem elas. É possível que esta felicidade que me venderam fosse um rumo importante pra fazer chegar onde cheguei, vá lá, não é um lugar ruim, mas também não exatamente o que se pode chamar de plenitude-coerente-e-linear-de-euforia-contínua-e-contemplação? Acho que sim, é possível que não seja.
É como se eu tivesse corrido muito, alcançado a fita de chegada com folga, ficado esbaforido uns minutos, olhasse pra trás e o segundo lugar estivesse a milhas de distância. Eu não estou triste por ter vencido, mas já passei tempo o bastante comemorando essa vitória. Felicidade demais, quem diria, entedia. Mas deusmelivre confessar uma coisa dessas numa roda de amigos. Me dirão "seja grato". Como não bastasse o tsunami de hashtag gratidão por todos os lados ultimamente. Quem sabe a hashtag gratidão tenha nascido pra conformar caras como eu. Pra que os caras de vinte e tantos anos, como eu, que já chegaram a algum lugar, como eu, gastem o tempo agradecendo em vez de constatando a própria estafa.
Eu assinto com a cabeça, concordo até, sinto a gratidão pelo que já me aconteceu de bom, porque não sou esse monstro de pessoa que venho parecendo, mas sinto mais, bem no fundo, como se fosse uma tartaruga de barriga e pernas pra cima: o casco diretamente sobre a areia fina morninha. O tempo lindo, aberto. O mar fazendo barulhinho de onda. O clima agradável. E só o que me resta é contemplar o marasmo sem tamanho de ter, como dizem, "chegado lá".
Eu tô aqui paradinho - e estes diminutivos são propositais para dar a medida da minha irritação -, paradinho a esperar a ondinha súbita que sempre vem, querendo que ela me vire de novo, cento e oitenta graus, e finque as minhas patinhas no chão para finalmente voltar a correr.
Mas não vira.
É só outra ondinha-possibilidade de fazer mais um drama pra evitar o tédio.

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