quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Eco [3]

No feriado, resolvi não pensar em Laura. Optei por retomar o hábito de manter as rédeas da vida com a firmeza que arranca pedaço das palmas das mãos, tentando afastar a minha guia desse rumo melancólico em que a tragédia amorosa tinha me colocado. Eu decidi que era hora de ser prático, pegar a estrada e viajar. Seria perfeito dizer "viajar com os amigos", não fosse o fato de que eu ainda não havia me reaproximado de nenhum, enclausurado de saudade como estive naquelas semanas. Teria achado patético compartilhar com qualquer deles a falta que a Laura vinha me fazendo.
Mas queria, também é verdade, fazer algo que eu não houvesse feito enquanto estivemos juntos, por uma falsa noção de respeito, por medo de desagradá-la e pelo comodismo próprio das relações consideradas estáveis. Na minha cabeça, fazendo a viagem eu vingava um pouco a vida de solteiro à qual eu renunciei naquele quase um ano de paixão em que eu sentaria, rolaria e daria a patinha a ela por livre e espontânea vontade. Vingava um pouco a estabilidade comodista que talvez só eu atribuísse àquela relação. Esquecia a recente descoberta de que ela se encontrava com o amiguinho distante em vários fins de domingo, depois de sair lá de casa, para falar de mim e se livrar do peso da monogamia que eu lhe impus sem perceber. Válvula de escape que eu secretamente admiro nela, de uma inteligência emocional que nunca passei perto de ter, cego como fico quando estou atordoado com a ideia de pertencer a alguém ou a algo.
Laura sempre repetia a teoria de que, mais cedo ou mais tarde, nos entediaríamos. Essa era uma das suas infinitas teorias, que ela ia desenvolvendo ou repetindo no meio de uma conversa séria, como se tivesse mil e duas premissas e histórias amorosas que a confirmassem e validassem. Tinha também a teoria de que os relacionamentos estão sempre prestes a acabar, e nem por isso a gente podia se desesperar, senão aguava o bom do amor. Ela dizia assim mesmo, nessas palavras. E, ainda, a teoria de que o que vale é ter o mínimo para viver, ocupar-se das próprias coisas e estar bem consigo. Todas as teorias que a preservavam de mergulhar intensamente no que quer que estivéssemos construindo em todas aquelas idas e vindas, e que me fazem reflexivo sobre ter desencadeado a cólera daquele último dia, noto agora.
Hoje faz um mês que acabou. Precisamente. Sou bom com datas. Afastado o véu da romantização de sua figura, tenho aprendido tanto com a ideia que me sobrou a respeito dela e de nós. Sobre quem quero ter, o que quero ser, e principalmente o que não quero. Por outro lado, ainda sinto uma necessidade leal de comunicá-la dos meus afazeres diários, contar a ela do trabalho e do que as pessoas que encontro no elevador desse novo prédio têm me provocado, compartilhar com ela coisas que, seguramente, ela não quer nem saber.
Voltei de viagem sozinho, depois de um fim de semana e do dia de segunda-feira relativamente satisfatórios, no litoral, quase sem pensar nos meus dramas mais ou menos recentes. O mais romântico dos homens consegue se distrair se se detém por algum tempo em porções fartas de pares de peito envoltos em biquínis de cores extravagantes, bebendo cerveja à beira-mar. Torrado de sol e com o nariz descascando, cantarolava pela rodovia um álbum inteiro do Pearl Jam. A minha contribuição para o espetáculo consistia em nãnããnãns e batidas ritmadas no volante. 
A certa altura, começou a tocar Black, uma das únicas que eu sei a letra, já que não sou grande fã. Quando Eddie Vedder sugeriu Tattooed all I see, all that I am and all that I'll be... passou um caminhão. Em cima escrito: Laura. Eu não creria se não estivesse lá: um letreiro enorme numa fonte branca e cursiva. Laura-mãe, Laura-irmã, Laura-filha? Eu não sabia. Do que tinha certeza é que sucumbiria à tentação de reviver a minha Laura assim que chegasse em casa, enquanto relia mentalmente, atônito, o que me dizia aquele painel. Não no para-choque, não numa tatuagem discreta num lugar escondido. O desgraçado pôs a mulher ali, como que na testa, para quem quisesse ver e para quem não quisesse. Talvez tenha cometido o mesmo erro que eu.
Neste fim de feriado, vou decupando novamente o trauma e a delícia que aquela mulher me provocou, muito mais indelével do que qualquer um possa supor. Começo de peito estufado, orgulhoso em dizer que passei três dias quase inteiros sem pensar ou escrever sobre Laura neste diário póstumo do que não sublimei a tempo. Depois vou minguando.
Não é virtude orgulhar-se de ignorá-la, porque escrever sobre me desonera de não vivê-la. Registrar o vento de qualquer geografia, litorânea ou não, varrendo os dias do calendário é ir digerindo que, mesmo que passe, Laura entalhou marcos na pedra fundamental sobre a qual sou construído. Então, assumo mais uma vez a condição de Caminha das expedições dela ao meu córtex.

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